Há 56 anos, em 26 de junho de 1968, ocorria no Rio de Janeiro a Passeata dos Cem Mil. O protesto, convocado como um ato repúdio à repressão e violência da ditadura militar brasileira, foi a maior manifestação popular ocorrida desde o golpe de 1964 e um marco na luta pela restauração da democracia no Brasil.
Desde o golpe que derrubou o presidente João Goulart, o movimento estudantil havia se consolidado como um dos principais núcleos de oposição à ditadura militar — e, consequentemente, também se transformou em um dos principais alvos do regime. A sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) foi metralhada e incendiada logo após a quartelada e militares invadiram os campi de universidades em todo o país. Em novembro de 1964, o governo sancionou a Lei Suplicy de Lacerda, decretando o fechamento da UNE e das demais entidades estudantis e criminalizando as atividades políticas do movimento. Os militares também intervieram na gestão das universidades públicas e iniciaram o expurgo dos oposicionistas.
Apesar da truculência, os estudantes seguiram protestando. Em 1965, os alunos da Universidade de São Paulo (USP) organizaram uma greve que contou com adesão massiva, paralisando completamente a instituição. No ano seguinte, em solidariedade aos manifestantes agredidos pela polícia durante um ato em Belo Horizonte, estudantes de vários estados realizaram protestos. No Rio de Janeiro, os universitários ocuparam o prédio da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para demonstrar sua oposição à proposta do governo de cobrar anuidade nas universidades públicas. Um enorme contingente policial invadiu a instituição e espancou os estudantes no episódio conhecido como “Massacre da Praia Vermelha”.
Também em 1966, já atuando na clandestinidade, a UNE organizou seu 28º Congresso, sediado no porão da Igreja de São Francisco de Assis, em Belo Horizonte. Na ocasião, a entidade denunciou os acordos ilegais celebrados pelo Ministério da Educação e pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), visando impor uma reforma educacional antidemocrática e avançar a privatização das universidades públicas.
No 29º Congresso da UNE, realizado em Valinhos, a organização voltou a alertar os estudantes sobre a ingerência internacional na política educacional do governo e criticou a política de contenção de salários. Em resposta, os estudantes organizaram uma onda de manifestações em todo o país.
Os conflitos entre a ditadura militar e o movimento estudantil atingiram o seu ápice em 1968. Em 28 de março daquele ano, a polícia do Rio de Janeiro reprimiu brutamente um protesto dos estudantes contra o fechamento do restaurante Calabouço — um estabelecimento que oferecia refeições a preços acessíveis, frequentado por estudantes de origem humilde. Durante a ação, o comandante da tropa, Aloísio Raposo, executou com um tiro a queima-roupa o estudante secundarista Edson Luís Lima Souto. O universitário Benedito Frazão Dutra, também foi baleado na invasão, morreu alguns dias depois no hospital.
Gostou do conteúdo? Acesse o link e leia mais da Pensar a História.
O assassinato de Edson causou uma onda imediata de indignação e revolta. Seu corpo foi levado pelos próprios estudantes para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, onde foi velado publicamente. No dia seguinte, cerca de 60 mil pessoas acompanharam o cortejo fúnebre até o Cemitério São João Batista. O sepultamento se converteu em um grande ato político, com manifestantes gritando palavras de ordem contra a ditadura, ao passo que os estudantes realizavam manifestações concomitantes em outras capitais.
Novos enfrentamentos ocorreram no dia 4 de abril, quando duas missas de sétimo dia em memória de Edson foram celebradas na Igreja da Candelária. Quando a missa realizada pela manhã terminou, a cavalaria da Polícia Militar e os agentes do DOPS cercaram e agrediram as pessoas na saída da igreja, deixando dezenas de feridos. Temendo que a mesma ação violenta ocorresse após a missa celebrada à noite, os padres saíram à frente do público e organizaram um corredor humano até a Avenida Rio Branco. Não obstante, os agentes da repressão voltaram a atacar os populares nos arredores da igreja. Cerca de 600 pessoas foram presas ao longo do dia.
Os estudantes retornaram às ruas já no fim de maio, ecoando os levantes organizados pelos jovens na Europa no mesmo período. Em São Paulo, professores e estudantes ergueram barricadas para enfrentar a polícia. Em Belo Horizonte e Brasília, os protestos foram sufocados com violência e prisões em massa. No Rio de Janeiro, uma passeata realizada no dia 18 de junho terminou com a prisão de diversos estudantes, incluindo o presidente da UNE, Jean Marc von der Weid. Os manifestantes se reuniram no dia seguinte na reitoria da UFRJ para articular ações em prol da libertação de Jean e dos demais presos políticos, mas a polícia interveio na assembleia e prendeu outros 300 estudantes.
Em 21 de junho, uma nova passeata foi organizada no Rio de Janeiro. Como de costume, as provocações dos agentes da repressão começaram já no início do ato. Quando passavam em frente à embaixada dos Estados Unidos, os manifestantes foram atacados com tiros. Os estudantes revidaram atirando pedras contra a embaixada. A passeata prosseguiu, mas já próximo do encerramento do protesto, um grande contingente policial voltou a atacar os manifestantes. A agressão gratuita incomodou os populares que observavam o ato. Os trabalhadores se uniram aos estudantes e começaram a enfrentar os policiais com paus e pedras.
A reação foi brutal: os policiais abriram fogo contra a população e helicópteros sobrevoaram a Avenida Rio Branco jogando bombas de efeito moral e gás lacrimogênio em cima dos manifestantes. A ação, denominada “Sexta-Feira Sangrenta”, se estendeu por várias horas. Conforme os registros hospitalares, o conflito resultou na morte de 28 pessoas (ou três, segundo a versão dos militares) e deixou centenas de feridos. Mais de mil pessoas foram presas.
O massacre conduzido pelos agentes da repressão repercutiu de forma bastante negativa na opinião pública. A ação foi criticada por parte da imprensa, líderes religiosos e parlamentares. Pressionado, o regime militar deu seu aval para que uma nova manifestação da oposição fosse realizada.
O ato foi marcado para o dia 26 de junho de 1968 e divulgado como um protesto contra as mortes e a violenta repressão da ditadura militar. A organização ficou a cargo do grupo liderado por Vladimir Palmeira, então presidente da União Metropolitana dos Estudantes (UME). No entanto, foi a ampla adesão dos mais variados setores da sociedade à convocatória dos estudantes que tornou a passeata um evento singular.
Ao contrário do que vinha ocorrendo até então, a mobilização não ficou restrita ao movimento estudantil. Trabalhadores, organizações sindicais, jornalistas, intelectuais, artistas e líderes religiosos se engajaram ativamente para viabilizar a passeata.
Na manhã do dia 26 de junho, milhares de pessoas já aguardavam na Cinelândia o início do ato. Quando a passeata teve início às 14 horas, o público já era estimado em mais de 50 mil pessoas. À medida em que os manifestantes avançavam pelo trajeto entoando gritos de guerra e ostentando uma enorme faixa com os dizeres “abaixo a ditadura, povo no poder”, os populares aderiam em peso ao ato.
Uma hora após o início da marcha, o público já havia dobrado: mais de 100 mil pessoas ocupavam a Avenida Rio Branco para protestar contra o regime. Era a maior manifestação popular realizada desde o golpe de 1964 — e um dos maiores protestos já registrados na história do Brasil até então.
Diversas personalidades proeminentes da cultura brasileira estiveram presentes Passeata dos Cem Mil: ícones da MPB como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Nara Leão e Edu Lobo; atores e atrizes como Grande Otelo, Paulo Autran, Eva Wilma, Marieta Severo, Tônia Carrero e Norma Bengell, a escritora Clarice Lispector, o cineasta Cacá Diegues, o poeta Vinícius de Moraes e muitos outros. Diversos militantes do movimento estudantil, que se destacariam futuramente na luta contra a ditadura e na política institucional, também estiveram presentes no evento, incluindo José Dirceu, Vera Silvia Magalhães, Luís Travassos, César Benjamin, Alfredo Sirkis e Fernando Gabeira.
A manifestação se prolongou por três horas. Por todo o trajeto, os manifestantes colaram cartazes e deixaram pichações com frases como “abaixo o imperialismo”, “libertem nossos presos” e “o povo organizado derruba a ditadura”. Quando a marcha se concentrava em frente à Igreja da Candelária, Vladimir Palmeira fez um emocionante discurso relembrando a morte de Edson Luís e exortando a participação popular na luta contra o regime ditatorial. A marcha foi encerrada às 17 horas, em frente à Assembleia Legislativa, sem registro de nenhum incidente.
Uma comissão de representantes foi criada durante o ato para levar as reivindicações do movimento estudantil ao general Costa e Silva. O grupo pedia a libertação dos estudantes presos, a ampliação das verbas para a educação, restauração dos direitos políticos e civis e o fim da censura. O governo recebeu a comissão, mas rejeitou prontamente todos os pedidos.
Diante da recusa, os estudantes organizaram mais uma manifestação: a Passeata dos 50 Mil, realizada em 4 de julho de 1968, marcada por gritos de guerra mais radicalizados e uma postura mais assertiva dos manifestantes. Em paralelo, o movimento operário também começava a se agitar, como demonstrado pela grande greve dos metalúrgicos em Osasco que teve início pouco tempo depois.
Os protestos causaram enorme incômodo no governo, que foi surpreendido pela capacidade de mobilização e articulação com outros setores da sociedade demonstrada pelo movimento estudantil. Assim, em 5 de julho de 1968, o regime militar baixou um decreto proibindo as manifestações em todo o território nacional. A repressão contra o movimento estudantil foi intensificada.
Em agosto de 1968, os militares invadiram a Universidade de Brasília (UnB). Dois meses depois, a polícia reprimiu o 30º Congresso da UNE, realizado em Ibiúna, prendendo 900 estudantes. Em novembro do mesmo ano, a ditadura promulgou o AI-5, suspendendo os direitos políticos e as garantias constitucionais que ainda vigoravam, inaugurando o período mais repressivo do regime, conhecido como “Anos de Chumbo”, marcado pelo uso recorrente de tortura, desaparecimentos e assassinatos de opositores.