Arte, política e transgressão: 115 anos de Pagu
Escritora, poetisa e jornalista Patrícia Rehder Galvão foi presa em 23 ocasiões ao longo de sua vida e amargou a tortura nos porões do regime de Getúlio Vargas
Há 115 anos, em 9 de junho de 1910, nascia a escritora, poetisa e jornalista Patrícia Rehder Galvão, mais conhecida como Pagu. Vinculada à primeira geração modernista, ela iniciou sua produção cultural no contexto do Movimento Antropofágico e se converteu um dos maiores ícones da vanguarda intelectual dos anos 20.
Filiada ao Partido Comunista, Pagu atuou na organização da classe operária e se tornou a primeira mulher a ser presa por motivos políticos no regime republicano. Foi também a autora de “Parque Industrial”, o primeiro romance brasileiro a ter operários como protagonistas.
Pagu foi presa em 23 ocasiões ao longo de sua vida e amargou a tortura nos porões do regime de Getúlio Vargas. Ela teve ainda uma prolífica atuação como jornalista e foi uma importante agitadora cultural no campo do teatro amador e da dramaturgia experimental.
Os anos iniciais
Patrícia Rehder Galvão nasceu em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo, em uma família de classe média alta. Era a terceira dos quatro filhos do advogado Thiers Galvão de França e da dona de casa Adélia Rehder. Aos três anos, mudou-se com a família para a capital paulista, passando a residir no bairro operário do Brás.
Interessada desde cedo pela literatura, Patrícia iniciou sua carreira como escritora aos 15 anos, quando conseguiu um emprego de articulista no “Brás Jornal”. Cursou o magistério na Escola Normal, ao mesmo em que frequentava os cursos de literatura e artes cênicas do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.
A experiência no conservatório aproximou Patrícia das vanguardas artísticas. Ela teve aulas com Mário de Andrade e se aproximou de Guilherme de Almeida, que atuava como secretário na instituição. Também ficou amiga do poeta Raul Bopp, que lhe dedicou um conhecido poema e cunhou o apelido “Pagu”, que a acompanharia pelo resto da vida.
O apelido foi criado a partir de um engano. Bopp acreditava que a jovem se chamava “Patrícia Goulart” e juntou as iniciais dos nomes para formar a palavra “Pagu”. O poema de Bopp, intitulado “Coco de Pagu”, exaltando os olhos e a beleza de Patrícia, foi publicado em vários jornais — despertando curiosidade sobre a identidade moça.
Não era só a aparência de Pagu que chamava a atenção. Ela era conhecida pela personalidade forte e pelo comportamento libertário e transgressor. Frequentava os endereços da boemia, bebia em público, fumava, falava palavrões e se relacionava com quem bem quisesse — escandalizando a sociedade conservadora de uma São Paulo repleta de resquícios provincianos.
O Movimento Antropofágico
O espírito libertário de Pagu a transformaria na musa do movimento modernista — e encantaria o casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Ela se tornou frequentadora assídua das festas, saraus e recitais sediados no casarão da Alameda Barão de Piracicaba, a residência de Oswald e Tarsila.
Sob influência do casal, Pagu aderiu ao Movimento Antropofágico. Teorizado pelos modernistas em meados da década de 20, o movimento propunha a assimilação contextualizada das linguagens artísticas das vanguardas europeias, adaptando-as à realidade brasileira e às características autóctones da cultura nacional.
Em 1929, Pagu passou a colaborar com a “Revista de Antropofagia”, para a qual criou uma série de esboços e ilustrações. Ela também escreveu uma série de poemas e crônicas — marcados pela ruptura com os cânones da poesia tradicional e pelas críticas aos costumes, hábitos e convenções da burguesia paulistana.
No fim dos anos 20, Pagu e Oswald de Andrade iniciaram um relacionamento amoroso, a despeito do escritor ainda estar casado com Tarsila. O casamento chegou ao fim em 1929, causando um grande escândalo nos círculos modernistas.
Pagu e Oswald se casaram em abril do ano seguinte, em uma cerimônia pouco ortodoxa, organizada no Cemitério da Consolação, em frente ao jazigo da família do noivo. A escritora estava grávida na ocasião — o que seria outro escândalo. Em setembro de 1930, Pagu deu à luz seu primeiro filho, Rudá de Andrade.

Autor desconhecido/Wikimedia Commons
A militância no Partido Comunista
Para Pagu, a década de 30 seria marcada pela intensificação de sua atividade política. O Brasil vivia um contexto de forte agitação social. A quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929 trouxe impactos profundos para o país, forçando o fim do arranjo institucional da política do café com leite e levando à eclosão da Revolução de 1930 e ao início da Era Vargas.
Crítica do regime oligárquico da Primeira República, Pagu viajou para a Argentina e para o Uruguai no início dos anos 30, a fim de se encontrar com Luiz Carlos Prestes, líder exilado do movimento tenentista. Durante essas viagens, a escritora estabeleceu um prolífico contato com a vanguarda modernista de Buenos Aires e com os militantes do Partido Comunista da Argentina.
Em 1931, Pagu e Oswald de Andrade se filiaram ao Partido Comunista do Brasil (antigo PCB). No mesmo ano, o casal lançou o jornal “O Homem do Povo” — periódico de inspiração socialista que se destacaria pelas críticas à burguesia brasileira. No jornal, Pagu contribuía com ilustrações e assinava a coluna “A Mulher do Povo”, abordando a luta pela emancipação feminina e criticando as “feministas de elite”.
A linha combativa do periódico incomodou os setores conservadores — a ponto de o jornal sofrer um empastelamento perpetrado por estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Após o lançamento de sua oitava edição, “O Homem do Povo” seria encerrado por ordem do governo.
Em agosto de 1931, Pagu tomou parte de um protesto organizado por militantes comunistas e por estivadores em greve do Porto de Santos. O ato foi brutalmente reprimido pela polícia, que abriu fogo contra os manifestantes — atingindo fatalmente Herculano de Sousa, um operário negro que morreu agonizando nos braços de Pagu.
A participação no ato rendeu a Pagu sua primeira prisão. Ela foi a primeira mulher a ser encarcerada por motivos políticos no período republicano e ficou detida por quase três meses. A escritora passaria a ser monitorada pelos órgãos de inteligência do governo e se tornaria um alvo frequente da polícia. Ao longo de sua vida, Pagu foi presa em 23 ocasiões.
Em 1933, Pagu publicou seu primeiro livro, intitulado “Parque Industrial”. Lançado sob o pseudônimo “Mara Lobo”, a obra foi o primeiro romance brasileiro a ter operários como protagonistas. O livro é um marco da literatura proletária, enfocando temas como a desigualdade social, a exploração da classe trabalhadora e a opressão de gênero.
A viagem pelo mundo a prisão
A publicação de “Parque Industrial” intensificou o assédio policial contra a autora. Pagu resolveu então passar um período fora do país, iniciando um périplo por Estados Unidos, Japão, China, União Soviética, Polônia, Alemanha e França. Durante a viagem, a escritora produziu matérias para jornais brasileiros e travou contato com importantes personalidades, tais como Sigmund Freud, André Breton e Paul Éluard.
Na Manchúria, Pagu fez amizade com o imperador Pu Yi, o último monarca da Dinastia Qing. Foi o imperador que forneceu à escritora as primeiras sementes de soja que dariam origem ao cultivo do cereal no Brasil.
Na França, Pagu utilizaria documentos falsos para se filiar ao Partido Comunista Francês. Descoberta, ela foi novamente presa e rotulada como espiã. A brasileira quase foi deportada para a Alemanha nazista, sendo salva graças à intervenção do embaixador Souza Dantas, que conseguiu convencer o governo francês a extraditá-la para o Brasil.
Por aqui, os comunistas também estavam na mira do governo. A Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma frente antifascista vinculada ao PCB, radicalizava cada vez mais o discurso contra o regime de Getúlio Vargas. Em julho de 1935, a organização seria posta na ilegalidade com base na Lei de Segurança Nacional.
Quatro meses depois, militares filiados à ANL e ao PCB deram início ao Levante Comunista — insurreição que mobilizou unidades militares em Natal, Recife e Rio de Janeiro. A revolta foi esmagada em poucos dias, mas serviu de pretexto para que o governo Vargas iniciasse uma repressão brutal contra os comunistas, resultando na prisão de milhares de pessoas.
Pagu seria novamente presa em 1936, acusada de participação no levante. Sentenciada a dois anos de prisão, a escritora foi submetida a espancamentos e torturas brutais. “Passavam-se as horas e os dias e as semanas e o sangue escorrendo e os verdugos se revezando para me vencerem ou me enlouquecerem”, descreveu a autora.
Em 1937, Pagu conseguiu fugir do cárcere, mas foi capturada pela polícia no ano seguinte e condenada a mais dois anos de cadeia. A escritora seria libertada em 1940, em péssimo estado de saúde. Pesava apenas 44 quilos, sofria de depressão profunda e carregava sequelas físicas e traumas emocionais.
Os anos 40
Após sua libertação, Pagu rompeu com o Partido Comunista. Identificando-se agora como trotskista, ela relatou sua frustração com a falta de apoio do partido e a decepção que tivera em sua experiência na União Soviética. Antes disso, Pagu já havia se separado de Oswald de Andrade, farta das aventuras extraconjugais do escritor.
Ainda em 1940, a Pagu iniciou um relacionamento com o jornalista Geraldo Ferraz. Ele seria seu companheiro pelo resto da vida e pai de seu segundo filho, Geraldo Galvão, nascido em 1941. Pagu trabalharia como jornalista nos anos seguintes, além de escrever crônicas e contos policiais para periódicos de São Paulo e Rio de Janeiro.
Em 1945, Pagu publicou seu segundo romance, “A Famosa Revista”, escrito em colaboração com Geraldo Ferraz e repleto de críticas cáusticas ao Partido Comunista. Ela também retomaria a militância política, escrevendo artigos para o jornal “Vanguarda Socialista”, fundado por Mário Pedrosa, e trabalharia como correspondente para a agência France-Presse.
Ainda em parceria com Geraldo Ferraz, Pagu produziria crônicas, artigos e traduções de obras estrangeiras para o Suplemento Literário do Diário de São Paulo. A intensa produção intelectual também era um meio ao qual a escritora recorria para tentar superar a depressão.
Em 1949, Pagu sobreviveria a uma tentativa de suicídio. Ela escreveu sobre o episódio no panfleto “Verdade e Liberdade”: “Uma bala ficou para trás, entre gazes e lembranças estraçalhadas… Agora, saio de um túnel. Tenho várias cicatrizes, mas estou viva… Apesar dos dez anos que abalaram meus nervos e minhas inquietações, transformando-me nesta rocha vincada de golpes e de amarguras, destroçada e machucada, mas irredutível.”
Os últimos anos
Filiada ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), Pagu concorreu ao cargo de deputada estadual nas eleições de 1950, mas não obteve sucesso. Nos anos 50, a autora desenvolveria um crescente interesse pelo teatro, frequentando a Escola de Arte Dramática de São Paulo. Ela escreveu a peça “Fuga e Variações”, traduziu “A Cantora Careca” de Eugène Ionesco e dirigiu a montagem de “Fando e Liz”, de Fernando Arrabal.
Em 1954, Pagu se mudou para Santos com sua família. Ela se tornaria uma importante agitadora cultural na cidade, participando ativamente do fomento ao teatro amador e à dramaturgia experimental. Pagu liderou a campanha pela construção do Teatro Municipal, presidiu a União dos Teatros Amadores e coordenou o Primeiro Festival de Teatro Amador de Santos e Litoral.
Pagu foi diagnosticada com câncer de pulmão em 1960. A escritora viajou para a França a fim de realizar um procedimento cirúrgico, mas o tratamento foi pouco efetivo. Acamada e debilitada pela doença, Pagu viu sua depressão se agravar. Ela tentou novamente o suicídio, que não foi consumado pela intervenção do marido.
Patrícia Rehder Galvão faleceu em Santos, em 12 de dezembro de 1962, aos 52 anos de idade. A autora deixou uma série de textos inéditos, que seriam postumamente organizados e publicados, dando origem a livros como “Safra Macabra” (coletânea de contos policiais) e “Autobiografia Precoce” (baseada em um texto de 1940).
A vida e o legado de Pagu foram retratados em várias obras cinematográficas, incluindo o documentário “Eh Pagu, Eh!”, de Ivo Branco (1982) e o filme “Eternamente Pagu”, de Norma Benguell (1988). Ela também foi homenageada na canção “Pagu”, de Rita Lee e Zélia Duncan, e no samba-enredo da escola X-9 no carnaval de Santos.
