Há 55 anos, em 16 de janeiro de 1970, o jornalista Mário Alves era sequestrado, torturado e brutalmente assassinado por agentes da ditadura militar brasileira (1964-1985).
Considerado um dos maiores intelectuais do movimento comunista brasileiro, Mário Alves foi dirigente do PCB, fundador do PCBR e participou ativamente da luta contra o regime ditatorial. Ele foi a primeira vítima da ditadura a ter seu desaparecimento formalmente atribuído ao Estado brasileiro.
Quem foi Mário Alves
Mário Alves de Souza Vieira nasceu em 14 de junho de 1923, na cidade de Sento Sé, no norte da Bahia. Ele era o primogênito dos três filhos de Julieta Alves de Souza e do jornalista Romualdo Leal Vieira. Ainda pequeno, mudou-se com sua família para o Rio de Janeiro, a fim de acompanhar o pai, recém contratado pela imprensa carioca. Retornou à Bahia aos 10 anos de idade, passando a viver em Salvador. Cursou o ginásio no Colégio Estadual da Bahia.
Iniciou sua atividade política ainda na adolescência. Aos 16 anos, Mário se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi um dos fundadores da União do Estudantes da Bahia (UEB) e militante da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Ajudou a coordenar a mobilização antifascista em Salvador e a organizar o movimento de massas que pressionou pela declaração de guerra contra a Alemanha nazista. Liderou também o movimento de oposição ao professor Herbert Parente Fortes, um obstinado defensor do integralismo, conseguindo obter sua expulsão do Ginásio da Bahia.
Em 1943, Mário ingressou no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da Bahia (atual FFCH-UFBA). Em paralelo, iniciou sua carreira no jornalismo, trabalhando como repórter no jornal O Estado da Bahia. No mesmo ano, tomou parte da Conferência da Mantiqueira — congresso que visava reorganizar o PCB, então desarticulado pela repressão do regime de Getúlio Vargas. Na ocasião, o jovem, então com apenas 20 anos, foi eleito para integrar o Comitê Estadual do partido.
Mário e o PCB
A eleição de Mário evidencia seu amplo engajamento nas atividades políticas do PCB. Era um militante enérgico e combativo, de inteligência aguda e retórica invejável. Após sua ascensão à cúpula partidária, o jovem ampliaria ainda mais seu compromisso com a agremiação e com os ideais revolucionários. Desligou-se do jornal O Estado da Bahia, passando a atuar exclusivamente junto à imprensa operária.
Mário foi responsável por dirigir o periódico O Momento — o primeiro jornal lançado pelo PCB após o retorno do partido à legalidade. Conduziu o diário durante a “era de ouro” do partido. Beneficiado pela imagem positiva projetada pela vitória da União Soviética sobre os nazistas, o partido se converteu em uma legenda de massas e obteve excelentes resultados eleitorais nos pleitos seguintes.
Em 1946, Mário iniciou um relacionamento amoroso com Dilma Borges — sua futura esposa e mãe de sua única filha, Lúcia.
O rápido avanço do movimento comunista incomodou a burguesia e ensejou a ação do poder público. Em 1947, a justiça eleitoral cancelou o registro do PCB. No ano seguinte, todos os parlamentares comunistas tiveram seus mandatos cassados. Espelhando a crescente tensão da Guerra Fria, as autoridades brasileiras intensificaram a repressão à esquerda radical. Em todo o país, as redações da imprensa do PCB foram invadidas e depredadas — incluindo a sede do jornal O Momento.
Com o PCB novamente relegado à clandestinidade, Mário se transferiu para São Paulo — onde possivelmente foi incumbido de auxiliar o dirigente comunista Diógenes Arruda Câmara. Ele se dedicou nos anos seguintes à reorganização partidária e retomou sua atividade intelectual, produzindo artigos, discursos e informes. Assumiu também a direção de uma escola do partido no Rio de Janeiro, voltada à formação de quadros.
Na década de 1950, Mário se destacaria como um dos grandes intelectuais do movimento comunista, ao mesmo tempo em que se firmaria como um dos principais dirigentes do PCB. Em 1954, durante o IV Congresso do partido, o jornalista foi eleito membro do Comitê Central. Posteriormente, ele chegaria ao topo da hierarquia partidária, obtendo um assento na seleta Comissão Executiva. Viveu por quase três anos na União Soviética, onde estudou na Escola Superior do Partido Comunista. De volta ao Brasil, assumiu a Secretaria Nacional de Educação Política do PCB e presidiu o conselho da Editorial Vitória — órgão do partido voltado à tradução e publicação de artigos e livros marxistas.
Mário seguiu dirigindo os principais veículos de imprensa do PCB, incluindo os jornais Voz Operária e Imprensa Popular e a revista Novos Rumos. Ele representou o partido em diversos congressos e encontros internacionais — incluindo o VIII Congresso do Partido Comunista da China, ocorrido em 1958.
Cisão do PCB
Nesse mesmo ano, Mário foi um dos redatores da chamada “Declaração de Março” — documento que marcou a alteração do programa do PCB, defendendo a transição pacífica para o socialismo e renunciando à defesa da revolução armada. A mudança foi influenciada pelas denúncias contra Josef Stalin feitas por Nikita Kruschev durante o XX Congresso do Partido Comunista soviético. Esse episódio causaria a cisão do movimento comunista brasileiro, levando os militantes críticos do processo de “desestalinização” a deixarem o partido e fundarem o PCdoB.
O jornalista permaneceu filiado ao PCB, mas desenvolveria um olhar cada vez mais crítico sobre a política reformista defendida pelo secretário-geral do partido, Luiz Carlos Prestes. Em 1961, Mário se tornou o primeiro dirigente do PCB a visitar Cuba — experiência que o levou a contestar a tese da aliança com a burguesia nacional defendida pela direção do PCB.

Mário Alves, dirigente do PCB e um dos fundadores do PCBR, foi torturado e morto pela ditadura brasileira
Essas divergências partidárias se acentuariam após o golpe militar de 1964. Mário Alves foi responsável por publicar o primeiro texto questionando a linha política seguida pelo PCB diante da quartelada, criticando a ausência de uma estratégia de mobilização da classe trabalhadora.
Em junho de 1964, Mário foi preso. Ele permaneceria na cadeia por um ano, até ser libertado por força de habeas corpus. Posteriormente, teve seus direitos políticos cassados por 10 anos. Após sua soltura, o jornalista intensificou as críticas à direção do PCB e à decisão do partido de não apoiar a luta armada. As críticas lhe renderam punições: ele foi afastado da Comissão Executiva, removido da direção do jornal Voz Operária e transferido para Belo Horizonte.
Mário, no entanto, estava longe de ser uma voz isolada. O núcleo de militantes incomodados com a linha política do PCB era cada vez maior, levando à criação de um bloco dissidente denominado Corrente Revolucionária, da qual participavam nomes como Apolônio de Carvalho, Joaquim Câmara Ferreira, Carlos Marighella e Jacob Gorender. As bases estudantis ligadas ao PCB também romperam com a direção do partido, passando a reivindicar autonomia e a buscar aproximação com outras organizações, tais como o PCdoB e a POLOP.
As tensões atingiram o ápice em 1967, quando a direção do PCB expulsou os militantes da Corrente Revolucionária. A partir de então, os dissidentes expulsos se organizaram em novos grupos. Em abril de 1968, Mário Alves, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho fundaram o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). A organização rejeitava a estratégia da “resistência pelas vias institucionais” adotada pelo PCB, defendendo uma linha política mais radical e combativa, englobando a mobilização das massas nas cidades e a luta armada no campo.
Apesar das dificuldades, o PCBR conseguiu instalar bases no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e parte do Nordeste e logo deu início às ações de propaganda revolucionária e às operações armadas nos centros urbanos — incluindo ações expropriatórias. Essas operações logo fizeram com que o partido se convertesse em um alvo preferencial dos agentes da ditadura.
Torturado e morto pela ditadura
No fim de 1969, Salatiel Teixeira Rolim, um dos fundadores do PCBR, foi preso pela polícia. Submetido à tortura, Salatiel acabou por entregar os nomes de seus companheiros e os endereços utilizados pelo partido. As informações serviram de base para uma sequência de operações que desarticularam o PCBR, levando à captura de toda a cúpula do partido.
Mário Alves foi preso no Rio de Janeiro na noite de 16 de janeiro de 1970, logo após deixar sua residência no bairro da Abolição. Os agentes o levaram até o 1º Batalhão da Polícia do Exército, localizado na Tijuca, onde funcionava uma central do DOI-CODI. Ali, o jornalista foi submetido a uma brutal sessão de tortura, que se estendeu por oito horas. Pouco tempo depois, Mário faleceu. A execução foi testemunhada por vários presos políticos, incluindo René Carvalho, Antônio Carlos de Carvalho e Raimundo Teixeira Mendes.
Jacob Gorender detalhou a ação no livro Combate nas Trevas: “horas de espancamentos com cassetetes de borracha, pau-de-arara, choques elétricos, afogamentos. Mário se recusou a dar quaisquer informações e, naquela vivência da agonia, ainda extravasou o temperamento através de respostas desafiadoras e sarcásticas. Impotentes para quebrar a vontade de um homem de físico débil, os algozes o empalaram usando um cassetete de madeira com estrias de aço.”
Mário Alves tinha 46 anos quando foi assassinado. Sua viúva, Dilma Borges, empreendeu uma busca incessante por informações sobre o paradeiro do marido — e chegou a ser ameaçada e submetida a interrogatórios quando questionou oficiais das Forças Armadas.
Dilma se tornaria uma das precursoras do movimento dos familiares de desaparecidos políticos. Em 1981, ela moveu uma ação declaratória buscando responsabilizar o Estado brasileiro pelo desaparecimento de seu marido. Seis anos depois, em 1987, a União admitiu sua responsabilidade pela prisão e morte do jornalista. Foi a primeira vez em que a União reconheceu sua responsabilidade por um desaparecido político.
Em maio de 2013, o Ministério Público Federal denunciou cinco agentes do regime militar pelo sequestro e tortura de Mário Alves. A denúncia, entretanto, foi rejeitada pela Justiça Federal, sob a justificativa de ausência de provas. O crime segue impune até hoje. Os restos mortais de Mário Alves nunca foram encontrados.