Atrocidades do apartheid: 49 anos do massacre das crianças de Soweto
Estima-se que até 700 pessoas foram assassinadas pela polícia da África do Sul; quase todos eram jovens, com idades entre 10 e 20 anos
Há 49 anos, em 16 de junho de 1976, as forças policiais da África do Sul assassinavam centenas de crianças e adolescentes em uma das piores atrocidades cometidas pelo regime do apartheid.
Na manhã daquele dia, milhares de estudantes sul-africanos saíram às ruas de Soweto para protestar contra a imposição do africâner como língua principal de ensino nas escolas — uma política do governo que visava dificultar o acesso dos jovens a um ensino de qualidade.
Embora a manifestação fosse pacífica, os soldados sul-africanos abriram fogo contra a multidão. Estima-se que até 700 pessoas foram assassinadas durante o Massacre de Soweto. Quase todos eram jovens, com idades entre 10 e 20 anos. Em homenagem às vítimas, o dia 16 de junho foi proclamado como um feriado na África do Sul, intitulado “Dia da Juventude”. Internacionalmente, a data marca o “Dia da Criança Africana”, criado pela Organização da Unidade Africana em 1991.
O regime do apartheid
Formalmente criado em 1948 pelo governo da minoria branca, o regime do apartheid institucionalizou as práticas segregacionistas implementadas na África do Sul desde a era colonial. Entre os séculos 17 e 19, a população negra foi sistematicamente expulsa de suas terras, escravizada e submetida a uma série de medidas discriminatórias.
Os europeus criaram várias restrições ao direito dos nativos de adquirir terras. Em seguida, impuseram limites à circulação — criando as bases legais para a futura adoção da Lei do Passe. Por fim, a população negra foi privada do direito ao voto e ao usufruto dos serviços públicos.
A África do Sul tornou-se uma nação independente em 1931, mas os descendentes dos colonizadores optaram por manter inalterada a estrutura segregacionista legada pelos europeus.
No fim dos anos 40, reagindo aos incipientes movimentos emancipacionistas do continente, o Partido Nacional resolveu institucionalizar e ampliar a segregação através do “apartheid” (“separação” em africâner).
O regime impôs leis que reforçavam a hierarquia racial, os princípios eugenistas e a segregação em todos os aspectos da vida. Bairros, escolas, transporte, hospitais, praias e até bebedouros e bancos de praça eram separados por etnia. Os negros foram legalmente reconhecidos como subcidadãos, desprovidos de direitos políticos e civis.
A população negra foi removida à força dos territórios reservados aos brancos e realocada nos chamados “bantustões” — áreas localizadas junto às terras menos produtivas, economicamente inviáveis, desprovidas de serviços e empregos, onde os moradores viviam na miséria absoluta e eram submetidos à violenta opressão do Estado.
A resistência negra se consolidou em torno de organizações como o Congresso Nacional Africano e líderes como Nelson Mandela, mas a severa repressão do regime sul-africano nos anos 60 e 70 levaria à desarticulação da maioria dos grupos, seguida pelo recrudescimento da legislação segregacionista e da criação de leis que visavam consolidar a “supremacia cultural” da população branca.
A Lei de Educação Bantu e o Decreto do Africâner
A educação era um instrumento central para o fortalecimento do regime do apartheid. As escolas sul-africanas eram meios utilizados para garantir a hegemonia política, econômica e cultural da minoria branca e, ao mesmo tempo, reforçar a subserviência e limitar as perspectivas da maioria negra.
Em 1953, o governo sul-africano instituiu da Lei da Educação Bantu, criando um sistema educacional específico para a população negra. A lei determinava que os negros deveriam receber um ensino de qualidade inferior, sendo preparados exclusivamente para exercer trabalhos braçais.
Em um discurso no Parlamento, Hendrik Verwoerd, um dos arquitetos do regime do apartheid, afirmou categoricamente que a função das escolas frequentadas por negros deveria ser a de ensiná-los a se resignarem: “qual é o sentido de ensinar matemática a uma criança bantu se ela não vai usar na prática? Se um nativo está aprendendo que ele vai viver sua vida adulta sob uma política de direitos iguais, ele está cometendo um grande erro”, afirmou.
As escolas negras eram deliberadamente sucateadas. Recebiam menos recursos, tinham professores mal remunerados e instalações precárias, com salas superlotadas e falta de materiais didáticos. Matérias essenciais foram reduzidas na grade curricular ou substituídas por aulas que preparavam os jovens para o trabalho agrícola, fabril e doméstico.
Em 1974, o governo sul-africano intensificaria os ataques à educação da população negra, promulgando o Decreto Médio do Africâner. A lei determinava que, a partir de 1975, o ensino de matemática e estudos sociais seria realizado exclusivamente na língua africâner — língua de raiz germânica e influência neerlandesa, símbolo das origens coloniais europeias e do regime segregacionista.
A legislação também previa que o inglês seria empregado para ministrar ciências gerais e disciplinas práticas. Já as línguas nativas, como o zulu e o xhosa, seriam banidas da maioria dos cursos. Podiam ser empregadas somente apenas em aulas de religião, música e educação física.
A adoção do africâner prejudicaria a grande maioria dos professores e estudantes das escolas negras, que não dominavam a língua. A medida provocou indignação generalizada entre os estudantes negros — sobretudo após tomarem conhecimento de que seria facultado aos estudantes brancos o direito de escolher a língua que seria utilizada em seus cursos escolares.

Antoinette Sithole e Mbuyisa Makhubo carregam corpo de Hector Pieterson, jovem de 12 anos morto durante Massacre de Soweto
Fotografia de Sam Nzima / Via Wikipedia
Os protestos estudantis
A promulgação do Decreto Médio do Africâner ocorreu em um período marcado por profundas mudanças políticas na África Subsaariana, em meio ao avanço do movimento anticolonial e ao processo de independência de nações como Moçambique, Angola e Zimbábue.
Esse contexto de avanço das lutas anticoloniais inspiraria não apenas os estudantes, mas também revigoraria o movimento contra o apartheid. Desde a prisão dos líderes do Congresso Nacional Africano e do banimento do Partido Comunista, a luta antiapartheid estava se reorganizando em torno do Movimento de Consciência Negra (BCM no acrônimo em inglês), organização liderada por Steve Biko.
Criado no fim dos anos 60 e inspirado nas ideias de autores como Frantz Fannon, Léopold Senghor e Aimé Césaire, o BCM argumentava que a libertação da população negra não dependia apenas da luta armada, mas sobretudo de uma mudança no estado psicológico das massas, que permitisse à população resgatar a autoconfiança e neutralizar o efeito do discurso supremacista, que fomentava a resignação e a subserviência.
Assim, o BCM buscava reforçar a identidade negra, promover a autoestima e o orgulho negro, valorizar a herança cultural nativa, rejeitando o discurso da inferioridade imposta pelo sistema do apartheid. Esse movimento teria enorme ressonância entre os jovens sul-africanos, gerando a convergência entre o movimento estudantil e a luta contra o apartheid.
Steve Biko e os militantes do BCM tiveram papel fundamental na articulação da reação estudantil ao Decreto Médio do Africâner — sobretudo em Soweto, um distrito negro de Joanesburgo, onde os estudantes estavam organizando uma série de reuniões para desenvolver uma estratégia de oposição à nova lei.
Apoiados pelo BCM, os estudantes de Soweto organizaram os comitês de ação, envolvendo os professores e as comunidades escolares do distrito. Em 30 de abril de 1976, os alunos da Escola Orlando West Junior realizaram uma passeata com cartazes exigindo direitos iguais e a revogação do decreto que instituía o uso do africâner nas escolas negras.
O Massacre de Soweto
A manifestação dos alunos da Orlando West Junior ensejou o início de uma grande greve dos estudantes e inspirou outras escolas de Soweto a aderirem ao movimento. Sob a liderança de Teboho Tsietsi Mashinini, um estudante de 19 anos, o Conselho Representativo dos Estudantes de Soweto convocou uma grande manifestação a ser realizada no dia 16 de junho de 1976.
A manifestação reuniu cerca de 20.000 pessoas. A grande maioria eram crianças e adolescentes em idade escolar. Havia também havia muitos professores, que iam à frente da multidão, a fim de desestimular possíveis reações às provocações dos policiais. A manifestação crescia espontaneamente à medida que marchava pela cidade, alimentada pela adesão de populares a cada quarteirão.
O protesto foi cuidadosamente organizado, com os líderes estudantis coordenando rotas para convergir no Estádio de Orlando, onde seriam feitos os discursos. Os manifestantes entoavam palavras de ordem contra o apartheid e carregavam cartazes com mensagens como “Abaixo o africâner!”, “Queremos direitos iguais!” e “Libertem nossos líderes!”
Quando os estudantes chegaram à área de Orlando West, encontraram uma barreira policial fortemente armada, com agentes acompanhados por cães e veículos blindados. Como os estudantes não revidavam às constantes provocações, os policiais resolveram agir, lançando os cães contra a multidão.
As crianças reagiram ao ataque jogando pedras contra os policiais. Era o pretexto aguardado para iniciar a repressão. Os policiais abriram fogo contra a multidão, matando dezenas de pessoas. Entre as primeiras vítimas do ataque estavam o menino Hector Pieterson, de 12 anos, e Hastings Ndlovu, de 15 anos.
A imagem do corpo de Héctor sendo carregado pelos estudantes Mbuyisa Makhubo e Antoinette Sithole, capturada pelo fotógrafo Sam Nzima, se tornaria uma das imagens mais conhecidas do massacre e foi publicada em jornais de todo o mundo.
Os ataques da polícia contra os estudantes prosseguiram ao longo do dia, resultando na morte de centenas de pessoas. Conforme a notícia do massacre se espalhou, Soweto entrou em convulsão. Jovens enfurecidos depredaram e incendiaram as lojas e os prédios do governo.
Os protestos se estenderam pelos dias seguintes e a repressão foi brutal. O governo sul-africano ampliou o efetivo policial e mobilizou unidades do exército para esmagar a revolta. A ação resultaria em mais um banho de sangue, com centenas de jovens sendo executados sumariamente pelos agentes do governo. Os policiais invadiam hospitais em busca de feridos e perseguiam os manifestantes em suas casas.
Número de vítimas e reações ao massacre
Os relatos oficiais do governo sul-africano registraram apenas 23 mortes, mas as estimativas independentes apontavam que até 700 estudantes foram assassinados durante o Massacre de Soweto. Quase todas as vítimas eram crianças e adolescentes com idades entre 10 e 20 anos. Ao menos 4000 pessoas ficaram feridas.
O massacre das crianças de Soweto enfureceu a comunidade negra sul-africana. Protestos e manifestações eclodiram por todo o país e trabalhadores de várias cidades entraram em greve. Mais uma vez, o governo reagiu violentamente aos protestos. Em Port Elizabeth, 33 pessoas morreram durante as manifestações. Na Cidade do Cabo, a repressão aos atos deixou 92 mortos.
Apesar da repressão, a matança de Soweto inflamou a luta popular contra o apartheid, levando a África do Sul a mergulhar em um período de enorme agitação política, ampliando enormemente a pressão sobre o governo racista da minoria-branca.
O massacre também causou consternação internacional, originando uma onda de protestos pelo mundo e levando o Conselho de Segurança da ONU a aprovar a Resolução 392, condenando as ações do governo sul-africano.
Não obstante, Henry Kissinger, Secretário de Estado dos Estados Unidos, ignorou solenemente o massacre ao se reunir com o premiê da África do Sul, John Vorster, apenas uma semana depois, durante um evento na Alemanha Ocidental.
Os dois voltariam a se encontrar em algumas semanas na cidade de Pretória, sob fortes protestos dos manifestantes sul-africanos, que foram novamente alvejados pela polícia. Enquanto os corpos tombavam sem vida no chão, Kissinger negociava a participação de empresas norte-americanas na extração de minérios na Rodésia.