Atrocidades do ódio racial: 10 anos do Massacre da igreja de Charleston
Supremacista branco Dylann Roof invadiu Igreja Metodista Episcopal Africana Emanuel e abriu fogo contra os fiéis, assassinando nove pessoas
Há dez anos, em 17 de junho de 2015, a cidade de Charleston, na Carolina do Sul, servia de cenário ao mais grave ataque racial contra uma igreja negra na história dos Estados Unidos.
Naquela noite, um supremacista branco chamado Dylann Roof ingressou na Igreja Metodista Episcopal Africana Emanuel e abriu fogo contra os fiéis, assassinando nove pessoas — incluindo o reverendo Clementa Pinckney, um dos mais importantes líderes da comunidade afro-americana no estado. A igreja foi escolhida por seu longo histórico de engajamento na luta contra a escravidão e a opressão racial.
O tratamento conferido ao assassino após a captura contrastou com a truculência policial em abordagens a suspeitos negros, gerando revolta. Os policiais chegaram a levar Roof para comer um lanche no Burger King.
O massacre de Charleston reacendeu os debates sobre o racismo sistêmico nos Estados Unidos, levando à remoção da bandeira confederada do capitólio da Carolina do Sul e fortalecendo o movimento pela retirada dos monumentos confederados das cidades norte-americanas.
A Igreja AME
Fundada em 1816, a Igreja Metodista Episcopal Africana Emanuel (Igreja AME) é a mais antiga igreja episcopal negra dos Estados Unidos. A congregação está intimamente relacionada à história da resistência dos afro-americanos contra a escravidão e a opressão racial.
A igreja foi criada por iniciativa de Richard Allen, um ex-escravizado que conseguiu comprar sua alforria. Sua fundação era uma resposta à segregação racial das igrejas metodistas brancas, que frequentemente excluíam ou limitavam a participação os negros nas pregações e em atividades religiosas.
Allen se tornaria o primeiro bispo negro dos Estados Unidos e teve um papel ativo no combate à escravidão. As congregações da Igreja AME eram espaços de acolhimento aos escravizados, fornecendo cursos de alfabetização, realizando coletas de fundos para a compra de cartas de liberdade e até auxiliando na fuga de cativos através da “Underground Railroad”.
O ex-escravizado Denmark Vesey, um dos fundadores da congregação AME em Charleston, na Carolina do Sul, foi responsável por planejar uma grande revolta de escravizados em 1822. O movimento foi traído e a revolta foi sufocada ainda na fase conspiratória, resultando na execução de Vesey e outras 35 pessoas.
Como retaliação pela participação dos paroquianos na revolta, a igreja de Charleston foi incendiada. O edifício foi reconstruído pelos fiéis, mas a congregação seria obrigada a fechar as portas novamente em em 1834, quando as igrejas negras foram banidas no estado. A congregação funcionou clandestinamente até 1865, quando a Guerra de Secessão chegou ao fim e a escravidão foi abolida nos Estados Unidos.

Fiéis se reúnem na Igreja Metodista Episcopal Africana Emanuel, dias após o Massacre de Charleston
Wikimedia Commons/Jerome Socolovsky
As igrejas negras e a luta contra a segregação
Após a abolição da escravatura, as igrejas negras se consolidariam como importantes centros de organização política das comunidades afro-americanas.
Mais do que espaços de espiritualidade, as igrejas eram organizações que supriam a lacuna deixada pela negligência do Estado, fornecendo educação, assistência social, oportunidades de emprego e redes de apoio e auxílio mútuo — algo extremamente valorizado em uma sociedade profundamente marcada pela exclusão e pela violência racial.
Durante a era das Leis Jim Crow, as igrejas negras foram cruciais para a articulação do movimento pelos direitos civis, organizando protestos e marchas contra a segregação e pressionando as autoridades a adotarem leis que garantissem a igualdade racial. Alguns dos mais proeminentes líderes do movimento antirracista eram reverendos das igrejas negras — nomeadamente o pastor Martin Luther King.
A atuação política e a crescente influência das igrejas negras incomodaram os grupos supremacistas, gerando reações violentas. Elas se tornariam alvos frequentes de ataques perpetrados por organizações e milícias racistas como a Ku Klux Klan (KKK). Na primeira metade do século 20, centenas de igrejas negras foram depredadas e incendiadas nos Estados Unidos.
Em setembro de 1963, no auge do movimento pelos direitos civis, um atentado a bomba organizado pela KKK matou quatro meninas negras e deixou outras 22 pessoas feridas em uma Igreja Batista de Birmingham, no Alabama. A comoção diante do ataque seria um dos fatores que demoveram a oposição conservadora no Congresso, possibilitando a aprovação da Lei dos Direitos Civis em 1964.
A despeito do avanço da legislação antirracista e das muitas vitórias do movimento negro nas últimas décadas, os ataques racistas contra igrejas da comunidade afro-americana continuam ocorrendo com frequência nos Estados Unidos. Conforme relatado em uma audiência no Congresso organizada em 1997, mais de 150 igrejas negras foram destruídas em incêndios criminosos entre os anos de 1989 e 1996.
O Massacre de Charleston
Na noite de 17 de junho de 2015, por volta das 20h, Dylann Roof, um supremacista branco de 21 anos, entrou na Igreja AME de Charleston durante uma reunião de estudo bíblico conduzida pelo reverendo Clementa Pinckney.
O grupo de fiéis, composto majoritariamente por idosos, recebeu Roof calorosamente, convidando-o a participar do estudo. Ele permaneceu sentado ao lado do pastor Pinckney durante aproximadamente uma hora, ouvindo explicações sobre as Escrituras.
Quando os membros do grupo iniciaram uma oração, Roof se levantou abruptamente, sacou uma pistola Glock calibre 45 e começou a disparar contra os fiéis. Ele recarregou a arma várias vezes, enquanto proferia insultos raciais e dizia frases como “vocês estupram nossas mulheres e estão tomando o nosso país”.
Nove pessoas foram mortas durante o massacre — seis mulheres e três homens, com idades entre 26 e 87 anos, todos negros. Entre as vítimas estava o reverendo Clementa Pinckney.
Além de pastor da igreja, Pinckney era um importante líder político da comunidade afro-americana, tendo servido como membro da Câmara dos Representantes e do Senado da Carolina do Sul.
Como parlamentar, Pinckney se dedicou a denunciar a violência policial contra a comunidade negra. Ele convocou protestos e defendeu a adoção do uso das câmaras corporais nos uniformes dos policiais após a morte de Walter Scott, um homem negro de 50 anos que foi baleado oito vezes pelas costas por um agente de North Charleston.
As outras vítimas eram Cynthia Graham Hurd (bibliotecária), Susie Jackson (membro do coral da igreja), Ethel Lee Lance (sacristão), Depayne Middleton-Doctor (pastor), Tywanza Sanders (barbeiro), Daniel Simmons (pastor), Sharonda Coleman-Singleton (fonoaudióloga) e Myra Thompson (professora de estudos bíblicos).
Três pessoas sobreviveram ao ataque: Polly Sheppard, poupada por Roof para que pudesse “contar a história”; Felicia Sanders, que se fingiu de morta enquanto protegia sua neta; e a própria neta, uma criança de cinco anos.
O assassino
Dylann Roof, nascido em 1994, era um desempregado de Eastover, Carolina do Sul, uma região predominantemente afro-americana. Ele abandonou o ensino médio e vivia isolado, passando grande parte de seu tempo jogando videogame e consumindo conteúdo online.
Roof se radicalizou por meio de sites de extrema-direita e fóruns virtuais de apologia à supremacia branca. Nas redes sociais, o jovem posava para fotos com as bandeiras dos Estados Confederados, da antiga Rodésia e da África do Sul na era do apartheid.
Em um site intitulado “The Last Rodhesian”, registrado em seu nome, Roof expressava abertamente sua admiração pelos regimes segregacionistas da África Meridional e dizia desejar que os Estados Unidos retornassem ao estado de segregação racial da era pré-direitos civis. Ele também compartilhava artigos de ideólogos racistas, teorias conspiratórias e ataques a negros, judeus, latinos e asiáticos.
Roof publicou um manifesto em seu site citando o assassinato de Trayvon Martin como um catalisador para sua radicalização, alegando que o caso o levou a pesquisar sobre “crimes de negros contra brancos” e a concluir que o assassino George Zimmerman estava com a razão.
Conforme as investigações revelaram, Roof passou ao menos seis messes planejando o massacre e escolheu deliberadamente a Igreja AME em função de seu simbolismo para a comunidade afro-americana. Ele chegou a avisar aos seus amigos e vizinhos que pretendia realizar o ataque, mas não foi levado a sério.
Prisão e julgamento
Dylann Roof foi capturado no dia posterior ao massacre, quando uma cidadã de Shelby, Carolina do Norte, reconheceu o veículo descrito em alertas policiais e informou as autoridades.
Roof foi preso sem resistência. O tratamento que recebeu dos policiais que o capturaram contrastava enormemente com a agressividade direcionada aos membros da comunidade negra.
Os agentes tomaram o cuidado de vestir Roof com um colete à prova de balas e tentaram protegê-lo das lentes dos fotógrafos enquanto o conduziam pacificamente ao carro. Quando o assassino reclamou que estava com fome, os policiais decidiram levá-lo a um restaurante da rede Burger King e pagaram o seu lanche.
Os promotores federais pediram o indiciamento de Roof por 33 crimes, incluindo nove homicídios, três tentativas de homicídio, crimes de ódio e violação de liberdade religiosa. Ele foi condenado por todas as acusações e, em janeiro de 2017, tornou-se o primeiro indivíduo nos Estados Unidos a ser sentenciado à pena de morte por crimes de ódio federais.
Em 2021, um tribunal de apelação confirmou a sentença. Roof permanece aguardando a execução no corredor da morte.
Durante o julgamento, o assassino demonstrou enorme frieza e falta de remorso. Em um diário encontrado em sua cela, Roof escreveu: “Gostaria de deixar bem claro que não me arrependo do que fiz. Não me arrependo. Não derramei uma lágrima pelas pessoas que eu matei.”
Impacto do massacre
O massacre de Charleston ocorreu em um momento de crescente tensão racial nos Estados Unidos, após uma sucessão de mortes de cidadãos negros em abordagens policiais e a subsequente fundação do movimento Black Lives Matter.
Uma série de vigílias, atos e manifestações foram organizados para homenagear as vítimas, reivindicar a punição do assassino e exigir o fim da violência policial. Entre as consequências imediatas do massacre estava a intensificação do debate sobre a bandeira confederada, um símbolo associado à escravidão e à supremacia branca
As várias fotografias de Dylann Roof ostentando a bandeira circularam amplamente, reacendendo as críticas sobre sua presença em espaços públicos, monumentos e edifícios governamentais da Carolina do Sul.
Em 22 de junho de 2015, a governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, anunciou a decisão de remover a bandeira confederada do capitólio estadual — medida que foi referendada pela legislatura estadual em julho do mesmo ano. Grandes redes varejistas como Wal-Mart, Amazon e Sears anunciaram que deixariam de vender mercadorias estampadas com a bandeira confederada.
A retirada de monumentos e memoriais celebrando os comandantes do exército confederado também foi impulsionada após o ataque. De 2015 em diante, mais de 160 monumentos confederados foram removidos das cidades norte-americanas ou derrubados por manifestantes.
O massacre também reacendeu os debates sobre o controle de armas, legislação de crimes de ódio e a radicalização de jovens atraídos por conteúdos de extrema-direita na internet. Nesses casos, entretanto, nenhum avanço foi concretizado.