Há 30 anos, em 8 de novembro de 1994, o Conselho de Segurança da ONU criava o Tribunal Penal Internacional para Ruanda. O órgão tinha por objetivo julgar as atrocidades e violações de direitos humanos ocorridas durante o genocídio em Ruanda, que ocorreu entre abril e julho de 1994.
O genocídio, instigado pelas autoridades hutus contra a minoria tutsi, resultou na morte de mais de um milhão de pessoas.
O conflito étnico entre tutsis e hutus tem sua origem na colonização da África por europeus. Os grupos conviviam em relativa harmonia no Reino de Ruanda desde ao menos o século 11, quando estabeleceram uma aliança que dividia as responsabilidades de cada povo — os tutsis concentrando o poder militar e os hutus respondendo pelas funções sacerdotais.
No fim do século 19, o Reino de Ruanda foi submetido ao domínio colonial alemão. Visando romper a resistência ao domínio estrangeiro, os alemães passaram a privilegiar a minoria tutsi (15% da população) na concessão de funções administrativas, de forma a provocar rivalidade entre os grupos e isolar politicamente a maioria hutu (84% dos ruandeses). O tratamento diferenciado era justificado com base em uma narrativa de que os tutsis eram um povo racialmente superior, em função de sua alegada ascendência etíope.
Com o advento da Primeira Guerra Mundial, a Bélgica assumiu o controle de Ruanda e passou a exercer um domínio colonial ainda mais agressivo. Os belgas deram continuidade à prática de favorecimento da minoria tutsi como estratégia de controle social.
Em 1935, os colonizadores belgas oficializaram uma política de divisão da população ruandesa em castas, com a emissão de cartões de identidade que conferiam mais ou menos direitos conforme a etnia de cada indivíduo.
Paralelamente, a narrativa da superioridade étnica dos tutsis seria progressivamente substituída por um discurso de estigmatização e mitificação de suas origens nos círculos religiosos. Missionários passaram a promover o mito de que os tutsis seriam descendentes de Cam, personagem bíblico amaldiçoado por zombar de seu pai, Noé. O tratamento diferenciado concedido pelos administradores coloniais e a mitificação religiosa alimentaram o ressentimento dos hutus contra a minoria tutsi.
Hutus x tutsis
Após a independência de Ruanda em 1962, os hutus tomaram o poder e passaram a marginalizar a minoria tutsi. A disputa por terras, conflitos políticos e sucessivas crises financeiras alimentaram cada vez mais a cizânia entre os grupos. Perseguidos pelo Exército ruandês, os tutsis começaram a deixar o país. Em 1989, o país, muito dependente da exportação do café, mergulhou em uma grave crise econômica quando o preço da commodity despencou 50% nos mercados internacionais. A crise resultou numa queda de 40% na renda das exportações e o país ficou à beira do colapso, enfrentando a maior crise alimentar de sua história.
Em meio à emergência humanitária, o presidente do país, Juvénal Habyarimana, filiado ao partido de extrema direita Movimento Republicano Nacional por Democracia e Desenvolvimento, passou a culpar os tutsis pelos problemas nacionais e intensificou o autoritarismo e a repressão.
Habyarimana aboliu liberdades civis, cortou investimentos em infraestrutura e programas sociais e aumentou os gastos militares.
Reagindo à repressão da gestão de Habyarimana, a Frente Patriótica de Ruanda — FPR, organização formada por guerrilheiros tutsis exilados em Uganda e dissidentes hutus — organizou uma tentativa de intervenção, invadindo o país em outubro de 1990, quando teve início a Guerra Civil de Ruanda.
O conflito se estendeu por três anos, até a assinatura do Acordo de Arusha — armistício mediado pela ONU em 1993, que criou um governo de transição composto por hutus e tutsis. O presidente Habyarimana, entretanto, seguiu conduzindo esforços para impor seu domínio sobre o país e submeter a minoria tutsi.
Ainda em 1993, Habyarimana criou as “Interahamwe” — milícias hutus treinadas e equipadas pelo Exército ruandês com o objetivo deliberado de confrontar os tutsis. No mesmo ano, Habyarimana entregou os órgãos públicos de comunicação do país a facções hutus extremistas, que passaram a exaltar as diferenças entre as etnias e a incitar publicamente a caça aos tutsis, além de veicular boatos frequentes acusando a minoria de planejar um massacre contra os hutus.
O genocídio foi planejado com meses de antecedência. O governo ruandês passou a distribuir fuzis de assalto AK-47, granadas, facões, machados e outras armas para civis da maioria hutu e alocou tropas armadas com 30.000 homens por todo o país. Foram gastos mais de 134 milhões de dólares na preparação do genocídio, com parte substancial do armamento sendo financiado pela França e por outras nações ocidentais.
Membros do governo passaram a repetir o argumento de que todos os problemas de Ruanda seriam resolvidos se a minoria tutsi fosse exterminada.
O início do genocídio
Em 6 de abril de 1994, o presidente Habyarimana foi morto em um atentado que derrubou o seu avião. A ação foi imediatamente atribuída ao tutsis ligados à FPR. O Exército ruandês e a guarda presidencial imediatamente entraram em ação, incitando os grupos armados hutus a se engajarem no extermínio da minoria tutsi.
Os massacres em larga escala começaram no dia seguinte à morte de Habyarimana, em 7 de abril de 1994. Soldados, milicianos e civis armados instigados pelas autoridades políticas hutus saíram pelas ruas da capital, Kigali, executando todos os tutsis, hutus moderados e demais grupos que faziam oposição ao governo de extrema direita do país. A matança logo se espalhou por todas as regiões de Ruanda e não poupou ninguém, nem mesmo crianças de colo.
O genocídio causou um gigantesco fluxo de tutsis tentando deixar o país, mas as autoridades hutus montaram bloqueios nas saídas das cidades, obrigando todos os fugitivos a mostrarem a carteira de identidade nacional, onde havia o registro da etnia. Todos os cidadãos com a identificação tutsi eram sumariamente executados.
As milícias também iniciaram buscas nas residências, massacrando e saqueando as propriedades dos tutsis. A violência sexual foi abundante, registrando-se estupro em massa de centenas de milhares de mulheres e crianças tutsis.
A brutalidade do genocídio chocou o mundo, mas os Estados Unidos e as nações aliadas europeias, que tinham preferências comerciais pelo domínio político dos hutus, ignoraram o massacre e pressionaram a ONU a não intervir.
O governo da França, que ajudou militarmente Habyarimana na guerra contra a FPR, também não fez qualquer esforço para interromper o massacre. Mesmo quando o genocídio já estava em andamento, as autoridades francesas se negaram a transportar cidadãos da minoria tutsi que os procuraram pedindo ajuda durante as operações de evacuação.
O massacre somente foi encerrado mais de três meses depois, em 15 de julho de 1994, quando a FPR, auxiliada por tutsis que sobreviveram ao genocídio e voluntários oriundos do Burundi, conseguiu subjugar as tropas do governo ruandês.
Em 8 de novembro de 1994, foi criado o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, responsável por julgar os principais líderes políticos, religiosos e militares responsáveis por incitar, apoiar e conduzir o genocídio. O primeiro-ministro do governo interino, Jean Kambanda, foi condenado por genocídio e cumpre pena até hoje em Mali.
Aproximadamente 75% dos membros do governo ruandês foram presos. Atualmente, há dois feriados nacionais para rememorar o genocídio em Ruanda. O revisionismo ou a negação do genocídio são considerados crimes no país.