Há 61 anos, em 11 de junho de 1963, o monge budista vietnamita Thich Quang Duc se autoimolava em protesto contra a perseguição religiosa do ditador Ngo Dinh Diem. As imagens do sacrifício de Quang Duc chocaram o mundo e despertaram atenção internacional para as políticas repressivas e os abusos de direitos humanos cometidos pelo governo do Vietnã do Sul.
O movimento pela independência do Vietnã foi um dos processos históricos mais atribulados do século 20. Submetido ao domínio colonial francês desde o século 19 e invadido pelas tropas japonesas durante a Segunda Guerra Mundial, o Vietnã proclamou sua independência em 1945. A França não reconheceu a independência da antiga colônia, dando início à Guerra da Indochina. O conflito se estendeu por oito anos e terminou com a vitória dos combatentes vietnamitas sobre as forças francesas na Batalha de Dien Bien Phu.
Em 1954, a Conferência de Genebra reconheceu a independência do Vietnã, mas determinou a divisão do país ao meio, em consonância com as divisões ideológicas da Guerra Fria. Na porção setentrional do território, foi criada a República Democrática do Vietnã, ou Vietnã do Norte, uma nação socialista, aliada à União Soviética e China, sob a liderança do revolucionário Ho Chi Minh, o arquiteto da independência vietnamita. Na parte meridional, foi instalado o governo do Vietnã do Sul, um Estado capitalista fortemente apoiado pelos Estado Unidos, a princípio sob comando do imperador Bao Dai.
Para Washington, o controle estrito sobre o Vietnã do Sul era visto como um passo estratégico para limitar a expansão do comunismo no Sudeste Asiático. Assim, já em 1955, o governo norte-americano apoiou um golpe de Estado que depôs o imperador Bao Dai, transformou o território em uma república e instituiu Ngo Dinh Diem como presidente. Anticomunista fervoroso, Diem havia morado nos Estados Unidos durante vários anos e era muito próximo de Wesley Fishel, um influente acadêmico da Universidade de Michigan que também trabalhava como informante da CIA. Fishel articulou o contato entre Diem e a Casa Branca.
Posteriormente, Fishel também lideraria a criação do Grupo Consultivo do Vietnã — um programa de apoio do governo norte-americano ao Vietnã do Sul, responsável por elaborar as políticas públicas implementadas no país e até mesmo por redigir boa parte da constituição sul-vietnamita.
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Comprometido a converter o Vietnã do Sul em um Estado vassalo subordinado à Casa Branca e a empregar todos os seus recursos na guerra contra o governo socialista do Vietnã do Norte, Diem teve apoio irrestrito dos Estados Unidos às suas ambições políticas. Assim que assumiu o governo sul-vietnamita, ele iniciou a construção de um regime autocrático e autoritário, que logo se tornou uma ditadura. Diem limitou os direitos civis e iniciou uma repressão brutal contra a esquerda, organizações sindicais e os movimentos sociais. Prisões arbitrárias, torturas e execuções extrajudiciais contra comunistas e opositores políticos se tornaram comuns. A polícia secreta, entregue ao comando do irmão de Diem, Ngo Dinh Nhu, conduziu uma série de massacres e chacinas contra adversários do regime.
Diem pertencia à minoria católica do Vietnã do Sul. Ele nutria uma profunda ojeriza pelo budismo e enxergava a comunidade budista como mais propensa a aderir ao ideário comunista do Vietnã do Norte. Assim, o ditador passou a implementar uma série de políticas de favorecimento aos católicos. O governo sul-vietnamita privilegiava o ingresso de católicos na administração pública e nos cargos de destaque da Forças Armadas. Também criou dispositivos que facilitavam a concessão de terras e concedeu vantagens comerciais e incentivos fiscais aos católicos. Ao mesmo tempo, o governo cortava recursos destinados à comunidade budista.
O favorecimento aos católicos e a perseguição à comunidade budista, que então representava quase 90% da população do país, erodiram o pouco apoio popular que restava ao ditador. O descontentamento com o governo já era enorme. O autoritarismo e a corrupção endêmica do regime, eivado de práticas nepotistas e de favorecimento a aliados, já tinham minado a confiança da população. Os budistas também criticavam a persistência da Guerra do Vietnã e o completo desinteresse do governo sul-vietnamita em abrir negociações.
Diem reagiu ao descontentamento popular dobrando a aposta. O ditador ampliou as práticas de discriminação e repressão aos budistas, instituindo uma política oficial de perseguição religiosa. Os budistas tiveram seus direitos civis suprimidos, foram proibidos de frequentar as escolas públicas e utilizar vários serviços e benefícios ofertados pelo governo. A gestão de Diem também ordenou a distribuição de armas de fogo para que os católicos criassem suas próprias milícias. Como resultado, líderes católicos associados ao regime e às forças de segurança iniciaram a formação de verdadeiros exércitos particulares. Essas milícias conduziram uma onda de ataques violentos contra a comunidade budista, depredando, saqueando e incendiando templos e realizando atentados terroristas.
Operando em conjunto com o Exército e as forças policiais, as milícias católicas iniciaram uma ofensiva para forçar os budistas a se converterem ao catolicismo. Para isso, os agentes chantageavam as comunidades, ameaçando-as com o confisco de propriedades e realocação. Aldeias inteiras tiveram de se submeter à conversão em massa ao catolicismo para evitar os reassentamentos forçados. As terras confiscadas eram preferencialmente disponibilizadas para uso de entidades católicas. Como resultado dessa política, a Igreja Católica se tornou a maior proprietária de terras do Vietnã do Sul.
O ápice do descontentamento dos budistas com o regime sul-vietnamita ocorreu quando o governo passou a banir a realização de eventos e limitar o uso de símbolos budistas. A comunidade budista foi proibida de hastear a sua bandeira durante o Vesak — data sagrada em que se comemora o aniversário de Buda. Os budistas reagiram à proibição organizando um grande protesto. O ato foi duramente reprimido pelas forças policiais, que atiraram contra a multidão, matando nove pessoas e deixando dezenas de feridos.
Apesar da repressão, os budistas seguiram protestando. Em junho de 1963, um grupo de 350 monges organizou uma procissão em Saigon para denunciar os abusos do governo do Vietnã do Sul e exigir liberdade de culto. Quando a procissão se aproximava do Palácio Presidencial, o monge Thich Quang Duc levou a cabo o protesto que chocou o mundo: após encharcar suas vestes com gasolina, o monge se sentou na posição de lótus e recitou os versos do “Namo Amitabha”, um mantra budista. Em seguida, acendeu um fósforo e ateou fogo em sou próprio corpo. Quang Duc permaneceu impassível enquanto seu corpo ardia em chamas, sem gritar ou esboçar qualquer tipo de reação.
A autoimolação de Quang Duc foi registrada pelo fotógrafo norte-americano Malcolm Browne, correspondente da Associated Press no país. A perturbadora imagem do monge em chamas estampou as capas de jornais do mundo inteiro no dia seguinte. Ela se tornaria uma das fotografias mais famosas do século 20 e renderia ao seu autor o Pulitzer e o prêmio de Foto do Ano da World Press Photo.
Para os budistas, uma peculiaridade histórica aumentaria o impacto do sacrifício de Quang Duc: o coração do monge permaneceu quase intacto, embora seu corpo tenha sido carbonizado pelas chamas. Quang Duc tornou-se não apenas um mártir político, mas também foi reverenciado como uma figura sagrada — um Bodisatva, como são chamados os seres iluminados que estão mais próximos de atingir o estado de Buda.
O episódio atraiu a atenção da comunidade internacional para a perseguição religiosa sofrida pelos budistas no Vietnã do Sul, gerando forte pressão sobre o regime de Diem e constrangendo seus aliados na Casa Branca. Visando acalmar a opinião pública, o regime sul-vietnamita chegou a simular uma trégua, mas não demorou para que os ataques aos budistas voltassem a ocorrer. O ditador chegou a ordenar a destruição de um pagode dedicado a Quang Duc e mandou confiscar o coração preservado do monge.
Comovida pelo sacrífico de Quang Duc, a população sul-vietnamita apoiou em peso os protestos dos budistas. Manifestações cada vez maiores foram registradas por todo o país, com a ocorrência de outros episódios de autoimolação. O isolamento político e a insatisfação popular começaram a desestabilizar o regime de Diem, afastando seus aliados.
A persistência da convulsão social por meses impeliu o governo dos Estados Unidos e o Exército sul-vietnamita à ação. Em 1º de novembro de 1963, Ngo Dinh Diem foi deposto por um golpe militar e assassinado. Nguyen Cao Ky e Nguyen Van Thieu assumiram a chefia do regime sul-vietnamita e tentaram neutralizar as manifestações, mas mantiveram diversas das políticas discriminatórias instituídas por Diem.
Os budistas, por sua vez, assumiriam um papel cada vez mais preponderante na oposição à Guerra do Vietnã e na luta pela democratização do país, culminando com a eclosão do Levante Budista de 1966. Unidos no “Movimento de Luta”, líderes budistas, estudantes e militares sublevados iniciaram um grande movimento de greves, protestos e tomada de instalações do governo, forçando por alguns dias a interrupção das operações militares contra o Vietnã do Norte.
A ditadura sul-vietnamita reagiu associando os protestos à “infiltração comunista”. Com ajuda dos Estados Unidos, o Exército debelou violentamente as manifestações, massacrando centenas de civis.