Há 181 anos, em 5 de novembro de 1843, tinha início uma das maiores rebeliões de escravizados da história de Cuba — a Revolta de Matanzas, ou Insurreição de Triunvirato. O levante foi liderado por Carlota Lucumí, uma africana de origem Yorubá. A revolta foi violentamente reprimida e Carlota submetida a uma execução brutal. Não obstante, o levante serviria de inspiração para novas rebeliões e para o movimento abolicionista, ao passo que Carlota seria elevada ao status de heroína nacional após o triunfo da Revolução Cubana.
Submetida ao domínio colonial da Espanha desde o fim do século XVI, a ilha de Cuba sediaria um dos mais violentos regimes escravagistas do Caribe ao longo de quase quatro séculos. A princípio, os colonizadores tentaram escravizar a população nativa da ilha, mas as doenças e a repressão violenta levaram ao extermínio dos Taíno e dos Guanahatabey, as duas maiores nações indígenas. Assim, ainda no século XVI, os espanhóis começaram a trazer africanos escravizados para trabalhar nas lavouras.
O comércio de escravizados se intensificou a partir do século XVIII, quando Cuba se consolidou como uma das maiores produtoras de açúcar do mundo. A ilha se tornou um dos maiores destinos do tráfico de escravizados nas Américas, recebendo cerca de 800 mil africanos entre os séculos XVI e XIX. A taxa de letalidade era extremamente alta, refletindo as péssimas condições a que os cativos eram submetidos. Eles chegavam a trabalhar até 20 horas por dia durante as colheitas, viviam amontoados em barracões insalubres e eram frequentemente submetidos a castigos físicos tão severos que levavam à morte.
Reagindo à perversidade do sistema escravagista, os negros iniciaram uma série de rebeliões ainda no século XVIII. Em 1812, influenciado pela Revolução Haitiana, José Antonio Aponte liderou um grande levante que objetivava derrubar o regime escravocrata na ilha. A chamada “Conspiração de Aponte” foi brutalmente esmagada pelas autoridades coloniais, mas ajudou a inflamar a luta pela liberdade na colônia. Nas décadas seguintes, dezenas de levantes de escravizados eclodiram em todas as regiões de Cuba e as fugas de cativos tornaram-se cada vez mais comuns.
Entre 1843 e 1844, a província cubana de Matanzas serviu de cenário a uma sequência de rebeliões de escravizados — englobados no movimento alcunhado “La Escalera”. Em meados de 1843, os cativos do Engenho Acana, localizado no atual município de Limonar, iniciaram os preparativos para uma grande insurreição. O planejamento ficou a cargo de Evaristo e Fermina, dois “Lucumí” — designação dada pelos espanhóis aos escravizados de origem Yorubá, que se destacavam por sua capacidade física e pelo alto rendimento nas tarefas da lavoura.
Evaristo e Firmina buscaram convencer os escravizados a se juntarem à rebelião. Para se comunicarem com os negros dos engenhos vizinhos, os cativos desenvolveram um sistema de códigos transmitidos através de batidas de tambor. Uma primeira tentativa de insurreição ocorreu em 2 de agosto de 1843, mas foi imediatamente esmagada pelos capatazes e lacaios dos engenhos. Capturada na ocasião, Fermina foi acorrentada a grilhões e barbaramente torturada ao longo de semanas.
Com a prisão de Fermina, coube a outra mulher a responsabilidade por retomar a luta contra a escravidão na província de Matanzas. Carlota, também uma africana de origem Yorubá, exortou os escravizados a tomarem parte de uma nova rebelião. Narciso, Felipe e Manuel Gangá também se destacaram como líderes do levante. A revolta teve início na noite de 5 de novembro de 1843, quando os escravizados se armaram com facões e atacaram os capatazes e administradores do Engenho Triunvirato — vizinho ao Engenho Acana. Após eliminarem os escravagistas, os cativos confiscaram as armas de fogo e incendiaram toda a propriedade.
Os rebeldes partiram em seguida para o Engenho Acana, onde libertaram Fermina e os outros cativos. Após a tomada dos dois engenhos, muitos negros da região, tanto escravizados quanto libertos, se juntaram à sublevação. As ofensivas contra os escravizadores continuaram e Carlota desempenhou papel crucial no movimento. Ela liderou as tropas rebeldes durante os ataques às fazendas e engenhos de Sabanilla del Encomendador, Guanábana e Santa Ana, logrando a libertação de centenas de escravizados. O movimento se destacou pela ampla participação feminina. Além de Carlota e Fermina, destacaram-se combatentes como Carmita, Juliana, Filomena e Lucía, entre muitas outras.
O levante dos escravizados de Cuba teve repercussão internacional e causou preocupação nas autoridades norte-americanas. Poucos dias após o início da rebelião, a Marinha dos Estados Unidos enviou um navio de guerra para Cuba, sob comando do contra-almirante Chauncey. Ele fora incumbido pelo governo norte-americano de oferecer ajuda aos colonizadores espanhóis para esmagar a rebelião.
O governo espanhol orientou as autoridades coloniais a reprimirem severamente o movimento. O capitão geral Leopoldo O’Donnell foi incumbido de organizar as ações. Ele ordenou a prisão de milhares de negros na província de Matanzas, incluindo os libertos, e instaurou um “reinado de terror” na região. A população negra foi submetida a violentos interrogatórios, marcados por espancamentos, torturas e assassinatos — o que levou o ano de 1844 a ser apelidado na história cubana como “o ano das chicotadas”.
Além das tropas regulares de O’Donnell, os donos de engenho, fazendeiros, traficantes de escravos e administradores coloniais também enviaram homens para auxiliar no combate aos rebeldes. Em março de 1844, uma coluna de guerrilheiros comandados por Carlota foi apanhada em uma emboscada na Fazenda San Rafael. Os rebeldes recusaram a rendição e lutaram contra as forças coloniais até a morte.
Conforme os documentos espanhóis, ao menos 56 negros foram mortos durante a operação. Dezenas de rebeldes foram presos e forçados a retornar à escravidão. Um pequeno grupo conseguiu escapar e se refugiou no pântano de Ciénaga de Zapata, onde um quilombo foi erguido. As fontes divergem sobre o destino de Carlota. Alguns relatos afirmam que a guerreira Yorubá morreu durante a batalha, portando um facão em sua mão. Outras apontam que Carlota foi capturada viva e condenada a uma execução cruel, tendo seus membros atados a quatro cavalos para ser desmembrada.
A rebelião de Matanzas e a coragem de Carlota inspiraram novos levantes de escravizados — que se fortaleceram a partir da década de 1860, em paralelo com o desenvolvimento do movimento independentista cubano. Os colonizadores, entretanto, totalmente dependentes da mão de obra escrava, resistiram ao máximo a essas pressões. Em 1886, Cuba se tornou o penúltimo país das Américas a abolir a escravidão — precedendo somente o Brasil.
A figura de Carlota foi por muito tempo demonizada na historiografia oficial cubana — um fenômeno que persistiu mesmo após o país conquistar sua independência da Espanha. Os escravizados rebelados eram retratados como pessoas sádicas e cruéis, que cometeram “atos de selvageria e barbárie” contra os colonizadores euro-americanos.
Essa narrativa somente foi contestada a partir da década de 1960, após o triunfo da Revolução Cubana, quando a figura de Carlota passou a ser associada à luta popular contra a opressão, o racismo e a tirania. Carlota foi então convertida em uma heroína nacional, identificada como uma precursora dos movimentos revolucionários e do ideário socialista de igualdade e justiça social. Um monumento a Carlota e aos escravizados rebeldes foi erguido nas ruínas do antigo Engenho Triunvirato, em Matanzas.
Nos anos 70, Carlota foi homenageada emprestando seu nome a uma importante operação militar conduzida por Cuba no continente africano. Entre 1975 e 1991, o governo cubano executou a Operação Carlota, que visava auxiliar as tropas do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em sua luta contra as forças reacionárias da UNITA e da FNLA, apoiadas pela África do Sul. A operação teve papel decisivo no enfraquecimento do regime segregacionista do apartheid e ajudou a assegurar a independência da Namíbia.