“Um flagrante desrespeito aos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros”. Foi assim que o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, definiu o tratamento conferido aos seus compatriotas pelas autoridades norte-americanas.
No dia 24 de janeiro, um voo vindo dos Estados Unidos chegou a Manaus trazendo 88 cidadãos brasileiros deportados. Eles estavam algemados e acorrentados. Os brasileiros relataram que sofreram ameaças, humilhações e agressões físicas durante o voo, com socos, tapas e murros. Para muitos, os maus tratos começaram ainda antes do voo, nos precários centros de detenção mantidos pelo governo norte-americano.
O tratamento degradante conferido pelo governo dos Estados Unidos aos imigrantes brasileiros contrasta enormemente com a forma como seus imigrantes foram recebidos em nosso país no passado. Há cerca de um século e meio, o fluxo migratório entre as duas nações era o inverso do atual. Milhares de norte-americanos imigraram para o Brasil após a Guerra de Secessão. E ao invés de receberem socos e humilhações, ganharam terras, incentivos fiscais — e até o custeio das passagens.
A Guerra de Secessão
Travada entre 1861 e 1865, a Guerra de Secessão foi o mais sangrento conflito interno ocorrido na história dos Estados Unidos. A guerra dividiu o país em dois, opondo os estados do Norte (União) aos estados do Sul (Confederados). A guerra foi motivada pela resistência sulista à abolição da escravatura e ao modelo econômico que beneficiava os estados setentrionais.
Mais industrializados e dotados de uma estratégia de desenvolvimento baseada no incentivo às atividades comerciais e na produção agrícola em pequenas propriedades, os estados do Norte defendiam medidas protecionistas para o desenvolvimento da indústria nacional, combate à concentração fundiária e o fim da escravidão, de modo a transformar os escravizados em trabalhadores assalariados e consumidores.
Os estados do Sul, por sua vez, eram dependentes da monocultura agroexportadora, fundamentada no latifúndio e no uso quase exclusivo de mão de obra escrava. Dessa forma, os sulistas se opunham às taxas alfandegárias para produtos importados, defendiam políticas de limitação do acesso à terra e, acima de tudo, eram opositores exacerbados do abolicionismo, já que a escravidão era a base de sustentação de seu modelo produtivo.
A eleição do abolicionista Abraham Lincoln para a presidência, em 1860, desencadeou o início do conflito. Os estados do Sul decretaram a separação da União e fundaram um novo país — os Estados Confederados da América, sob a liderança política de Jefferson Davis e o comando militar de Robert Lee.
Os Confederados tomaram a ofensiva, conquistando vitórias em Richmond e Fredericksburg, mas logo foram contidos pelas tropas da União, lideradas por Ulysses Grant e William Sherman, sendo forçados à capitulação em maio de 1865. Após a derrota dos confederados, mais de 4 milhões de negros escravizados foram libertados e a população afro-americana passou a se organizar politicamente para reivindicar seus direitos civis. O conflito, entretanto, deixou um saldo de mais de 600 mil mortos e devastou a infraestrutura dos estados do sul.

A Festa Confederada de Santa Bárbara d’Oeste
A imigração para o Brasil
O inconformismo com a abolição da escravatura, o ressentimento em relação à derrota militar e as dificuldades econômicas do pós-guerra provocaram o maior êxodo populacional já registrado nos Estados Unidos. Pela primeira vez na história, o país assistiu à inversão do fluxo imigratório, quando dezenas de milhares de confederados deixaram o Sul em busca de outras terras onde pudessem se estabelecer e replicar o seu estilo de vida.
O Brasil logo se tornou um dos destinos mais sedutores para esses imigrantes, por suas semelhanças com o Sul dos Estados Unidos. Além de ser sustentado pelo trabalho escravo, o Brasil também possuía um modelo econômico baseado na monocultura agroexportadora e nos grandes latifúndios.
O Brasil possuía ainda um diferencial: um imperador disposto a custear a vinda dos imigrantes. Interessado em incentivar a plantação de algodão no Brasil — cultura em que os norte-americanos se destacavam — e ao mesmo tempo contribuir com o projeto eugenista de embranquecimento da nação, Dom Pedro II ofereceu uma série de incentivos aos confederados: título provisório das terras, condições facilitadas para aquisição de lotes, medição e demarcação de terras por conta do Estado, isenção de tributos para implementos agrícolas, hospedagem gratuita e custeio integral das passagens.
Iniciou-se, assim, um processo de imigração em massa de confederados para o Brasil. Estima-se em até 20.000 o número de colonos norte-americanos que aportaram em nosso país na década de 1860.
Os confederados se estabeleceram em várias regiões do Brasil. Alguns preferiram as áreas urbanas, tais como Rio de Janeiro, São Paulo e Desterro (atual Florianópolis). Outros se assentaram em áreas rurais do Paraná, Pernambuco (sobretudo Caruaru), Amazonas (colônias em Itacotiara e Manaus) e Pará (na cidade de Santarém).
Santa Bárbara d’Oeste e Americana
As colônias norte-americanas mais significativas, entretanto, surgiram no interior de São Paulo, na região de Santa Bárbara d’Oeste. Foi nessa cidade que William Hutchinson Norris, ex-senador do Alabama, fundou a chamada “Colônia Norris”, que logo prosperou com o cultivo de algodão e exploração de mão de obra escrava.
O sucesso de Norris incentivou a chegada de outros confederados, que estabeleceram inúmeras propriedades agrícolas na região. A quantidade de imigrantes norte-americanos era tão grande que o local ganhou o apelido de “Vila dos Americanos”, ou “Vila Americana”, terminando por dar origem à atual cidade de Americana — emancipada de Santa Bárbara d’Oeste em 1924.
Na região, os confederados continuaram a praticar o estilo de vida que mantinham no sul dos Estados Unidos. Com os lucros obtidos pelo cultivo do algodão, os imigrantes norte-americanos diversificaram seus negócios. Clement Willmot, por exemplo, foi o fundador da Tecelagem Carioba, que se tornou uma das maiores indústrias têxteis da América Latina.
Os imigrantes confederados também foram responsáveis por ampliar enormemente presença de igrejas protestantes no país. Junius Newman, reverendo da Igreja Metodista Episcopal do Sul dos Estados Unidos, inaugurou em Santa Bárbara d’Oeste a primeira congregação metodista do Brasil e financiou a vinda de dezenas de missionários norte-americanos para a região. A partir da década de 1870, os primeiros missionários presbiterianos, adventistas e batistas também se estabeleceram na cidade.
A herança confederada
A imigração norte-americana para o Brasil continuou significativa até a década de 1880, declinando de forma abrupta após a abolição da escravatura em 1888. A maioria das colônias foram eventualmente abandonadas e muitos dos confederados retornaram aos Estados Unidos.
Na região de Santa Bárbara d’Oeste e Americana, a presença de imigrantes norte-americanos seria suplantada em larga escala pela chegada dos imigrantes italianos entre o fim do século 19 e o primeiro terço do século 20. A deferência aos confederados, entretanto, manteve-se intacta nessas cidades por muito tempo. E a bandeira dos confederados — banida de muitas instituições governamentais dos Estados Unidos por sua associação histórica ao racismo, apologia à escravidão e à supremacia branca — enfeitou por muito tempo chegou a estampar os símbolos oficiais da cidade de Americana por vários anos.
Mas era Santa Bárbara d’Oeste que ocorria a celebração mais polêmica do legado dos confederados. Por mais de 30 anos, em todo o mês de abril, a cidade servia de palco para a Festa Confederada. O evento era celebrado no Cemitério do Campo, onde os restos mortais dos primeiros Confederados estão sepultados.
O cenário era marcado pela profusão de bandeiras confederadas, espalhadas por todos os cantos. Os homens se vestiam com réplicas dos uniformes dos veteranos da Guerra de Secessão, enquanto as mulheres usavam vestidos de época. Na playlist, música country e folk e, evidentemente, “Dixie” — o hino dos Confederados.
A festa deixou de ser realizada em 2019, após intensa pressão de organizações do movimento negro. Em 2022, a Câmara de Vereadores de Santa Bárbara d’Oeste aprovou uma lei proibindo a realização de eventos que utilizem símbolos racistas na cidade.
No ano passado, a associação responsável pelo evento informou que a celebração irá retornar, com algumas mudanças: passará a se chamar Festa Americana e aposentará o uso das bandeiras confederadas.