Segunda-feira, 9 de junho de 2025
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Há 19 anos, em meados de maio de 2006, os moradores de São Paulo vivenciavam uma crise de segurança pública sem precedentes. Uma série de ataques coordenados pela organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) paralisou a cidade de São Paulo, submetendo-a a toques de recolher.

As ações tiveram início em 12 de maio e se espalharam rapidamente pelo estado. A motivação principal foi o incômodo da facção com a transferência de líderes do PCC para presídios de segurança máxima. Delegacias, quartéis, bases da PM e fóruns judiciais foram alvos de ataques e 59 agentes de segurança foram assassinados.

Forças policiais e grupos paramilitares iniciaram uma retaliação violenta. Os alvos, entretanto, não eram criminosos do PCC, mas jovens da periferia. Ao menos 505 pessoas foram assassinadas em um dos piores massacres cometidos pelas forças de segurança do Brasil. Desses, somente 6% tinham antecedentes criminais.

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O PCC

O Primeiro Comando da Capital foi fundado em agosto de 1993, na Casa de Custódia de Taubaté, interior de São Paulo. A princípio, a organização se apresentava como um grupo de autoproteção dos detentos, que visava pressionar o Estado a melhorar as condições do sistema penitenciário — marcado pela superlotação, pelas condições insalubres e pela ausência de políticas eficazes de ressocialização.

O Massacre do Carandiru, ocorrido em outubro de 1992, foi um dos eventos catalisadores para a constituição do grupo. Após uma rebelião dos detentos, a Polícia Militar invadiu o presídio em uma operação que deixou 111 mortos. A “vingança pelas mortes no Carandiru” e o “combate à opressão do sistema prisional” eram citados como objetivos iniciais da organização.

Inspirando-se nas ações de grupos como o Comando Vermelho, o PCC logo se converteria em uma organização criminosa altamente estruturada, caracterizada por uma hierarquia rígida e um estatuto bem definido, que estabelecia e garantia o cumprimento das regras de conduta para os membros.

O encarceramento em massa, a superlotação e a corrupção dos agentes de segurança facilitaram o trabalho do PCC, fornecendo mão de obra abundante a ser recrutada e os meios necessários para consolidar uma extensa rede de comunicação. Em troca da adesão, a organização oferecia proteção, assistência jurídica e apoio para os familiares dos detentos.

Em menos de uma década, o PCC se consolidou como a maior organização criminosa do Brasil, controlando parte substancial do tráfico de drogas e de outras atividades ilícitas. Em 2006, a organização já dominava 90% dos presídios paulistas e exercia controle significativo sobre as comunidades periféricas da Grande São Paulo, aproveitando-se da lacuna gerada pela ausência do Estado.

A primeira grande manifestação de força do PCC ocorreu em 2001, quando o grupo organizou uma onda de rebeliões simultâneas em 29 presídios do estado de São Paulo. O sincronismo dos ataques surpreendeu as autoridades. Os rebelados exigiam o retorno de cinco líderes da facção que haviam sido transferidos da capital paulista para unidades prisionais no interior. A exigência não foi atendida.

Ônibus queimados durante os ataques do PCC
Folha Online/Wikipédia/Caio Guatelli

A onda de ataques

Cinco anos depois da megarrebelião de 2001, o PCC seria responsável por organizar uma grande onda de ataques contra as forças de segurança de São Paulo.

A extorsão praticada por policiais militares contra familiares de membros PCC foi uma das motivações da ação — em especial, o sequestro de Rodrigo Olivatto de Morais, enteado de Marcos Willians Herbas Camacho , o “Marcola”, o líder máximo da facção. Ele foi capturado por um grupo de policiais que exigiu o pagamento de R$ 300 mil reais para libertá-lo.

O estopim que desencadeou a ação do PCC foi a decisão do governo paulista de transferir 765 presos, incluindo o Marcola, para a Penitenciária II de Presidente Venceslau, uma unidade de segurança máxima. A medida foi tomada após escutas telefônicas revelarem planos do PCC para uma onda de rebeliões no Dia das Mães.

A decisão percebida pelo PCC como uma provocação. Logo após o anúncio da transferência, os líderes da facção emitiram um “salve geral” ordenando o início da ofensiva. A partir da noite de 12 de maio, o PCC desencadeou uma série de ações coordenadas. Rebeliões eclodiram simultaneamente em 73 penitenciárias, envolvendo mais de 24 mil detentos e resultando em 129 reféns, entre agentes penitenciários e visitantes.

Fora dos presídios, a facção atacou delegacias, bases da Polícia Militar, quartéis do Corpo de Bombeiros, fóruns judiciais e agências bancárias. Mais de 90 ônibus foram incendiados. A violência se concentrou na Grande São Paulo, mas se estendeu para o interior e o litoral paulista e chegou a outros estados, como o Paraná e o Mato Grosso do Sul, embora com menor intensidade.

Entre os dias 12 e 20 de maio, foram registrados 251 ataques. O pico ocorreu em 14 de maio, com 103 ações contabilizadas em um único dia. Os ataques do PCC causaram a morte de 59 agentes de segurança, entre policiais militares e civis, guardas municipais e agentes penitenciários.

A capacidade de coordenação do PCC, utilizando celulares e uma ampla rede de contatos, revelou um alto nível de organização, surpreendendo as autoridades.

O pânico tomou conta de São Paulo. Em 15 de maio, a cidade entrou em um “lockdown” informal. Boatos, disseminados por bilhetes e transmitidos “boca a boca”, alertavam sobre ataques a escolas, shoppings e pontos de ônibus e determinavam toques de recolher.

Escolas e universidades suspenderam as aulas. O comércio fechou, o transporte público foi limitado e as ruas ficaram totalmente desertas. Os aeroportos de Congonhas e Guarulhos foram evacuados por ameaças de bombas.

O banho de sangue na periferia

Os ataques organizados pelo PCC começaram a arrefecer a partir de 14 de maio, mas o banho de sangue estava só no começo. Sedentos por vingança, os policiais militares e grupos de extermínio saíram às ruas. Os alvos da retaliação, entretanto, não foram os criminosos do PCC, mas a população da periferia.

O Brasil testemunharia nos dias seguintes um dos maiores massacres cometidos pelas forças de segurança em toda a sua história. O revide dos policiais matou quase dez vezes mais do que os ataques do PCC. Ao menos 505 civis foram mortos no período — sobretudo por execuções sumárias, com tiros na cabeça. A grande maioria das vítimas eram jovens negros. Somente 6% tinham antecedentes criminais.

Um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Conectas Direitos Humanos identificou indícios de participação policial em 122 execuções, especialmente nas periferias de São Paulo, Guarulhos, Diadema e São Bernardo do Campo. As vítimas eram moradores de favelas, sem qualquer vínculo com o PCC.

Relatos de testemunhas e laudos periciais confirmaram disparos à queima-roupa, ausência de confronto e manipulação de cenas de crime, com armas plantadas para simular “resistência seguida de morte”. Organizações como a Human Rights Watch e a Justiça Global denunciaram a resposta policial como uma “matança seletiva”, comparável a episódios como a Chacina da Candelária.

Um dos casos mais emblemáticos da barbárie registrada durante os crimes de maio foi a Chacina do Parque Bristol.

Na noite de 14 de maio, cinco jovens estavam conversando na rua de um bairro periférico da Zona Sul de São Paulo quando foram abordados por um carro escuro, sem identificação. Homens encapuzados e armados desceram do veículo e abriram fogo contra o grupo, matando três pessoas. Um dos sobreviventes seria executado pouco tempo depois. Nenhum dos jovens tinha passagem pela polícia.

No dia seguinte, uma família inteira foi exterminada em Santos. Eddie Joey de Oliveira e sua companheira, Ana Paula Gonzaga dos Santos, grávida de nove meses, caminhavam até uma padaria quando foram abordados por homens encapuzados saídos de um veículo. Após uma ríspida discussão, Ana Paula teria descoberto que um dos homens era policial. Ela foi então executada com um tiro na cabeça. Eddie foi morto logo em seguida, com dois disparos. Antes de partir, um dos encapuzados atirou contra a barriga da mulher pronunciado a frase “filho de bandido, bandido é”.

Outra vítima do massacre policial foi o gari Edson Rogério Silva dos Santos. Ele havia feito uma cirurgia e tinha saído às ruas para buscar um remédio. No dia 15 de maio, ao parar em um posto de gasolina para abastecer sua moto, foi abordado violentamente e ameaçado por policiais. Edson chegou a ser liberado, mas foi assassinado pouco tempo depois, quando estava a caminho de sua residência.

As reações

No dia 16 de maio, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma matéria afirmando que o governo paulista teria feito um acordo com a cúpula do PCC para pôr fim aos ataques. A negociação envolveria o fim do regime de observação, a instalação de 60 televisores nas áreas comuns dos presídios, ampliação do período do banho de sol, autorização para visitas íntimas, etc.

As chacinas vitimaram centenas de pessoas que não tinham antecedentes criminais ou quaisquer vínculos com organizações criminosas. Mesmo assim, as ações da polícia foram defendidas pelo governador Cláudio Lembo, que havia assumido interinamente o governo desde a saída de Geraldo Alckmin.

As investigações sobre as mortes foram marcadas por omissões e encobrimentos. A Polícia Civil e o Ministério Público estadual arquivaram a maioria dos casos, alegando “legítima defesa” dos policiais. Laudos periciais foram negligenciados, e testemunhas sofreram intimidações.

Um grupo de 79 promotores de São Paulo chegou a assinar ofícios reconhecendo “a eficiência da resposta da Polícia Militar” no “restabelecimento da ordem pública”. A grande mídia também deu apoio às ações da polícia. Em um editorial no Fantástico, o jornalista Pedro Bial chegou a dizer que os agentes representavam “a linha de frente da democracia”.

Em 2009, a Conectas Direitos Humanos, com apoio de familiares, pediu a federalização das investigações. O procurador-geral Rodrigo Janot reconheceu “falhas e omissões gravíssimas” nos processos e determinou a transferência dos casos para o Ministério Público Federal, mas poucos policiais foram punidos.

A federalização dos inquéritos é uma das principais bandeiras do movimento Mães de Maio, que reúne familiares das vítimas dos massacres de 2006. Há 19 anos, o grupo luta pela responsabilização dos agentes de segurança envolvidos nos crimes, além de se dedicar a denunciar outros episódios de violência do Estado e a reivindicar a desmilitarização das forças policiais.