Da guerrilha à presidência: 90 anos do nascimento de Pepe Mujica
José Alberto Mujica Cordano enfrentou prisão e tortura durante ditadura uruguaia; eleito presidente em 2009, seu mandato foi marcado por conquistas sociais e expansão de direitos civis
Há 90 anos, em 20 de maio de 1935, nascia José Alberto Mujica Cordano, o Pepe Mujica, uma das figuras mais icônicas da esquerda latino-americana.
Guerrilheiro do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros, Mujica foi preso e torturado pela ditadura militar uruguaia, passando 13 anos encarcerado sob condições desumanas.
Com a redemocratização, ele se tornou um dos principais líderes da Frente Ampla, muito admirado por seu carisma e discurso franco. Mujica exerceu os cargos de deputado, senador e ministro e, em 2009, foi eleito Presidente do Uruguai.
Seu governo foi um marco histórico da política uruguaia, caracterizado por avanços econômicos, importantes conquistas sociais e uma expansão sem precedentes dos direitos civis. Ao mesmo tempo, ele atraiu enorme admiração por seus hábitos austeros, pela sua humilde e por seu exemplo de integridade.
Juventude e militância no Partido Nacional
José Mujica nasceu no bairro operário de Paso de la Arena, em Montevidéu, Uruguai. Era o filho mais velho de Demétrio Mujica Terra, um agricultor de ascendência basca espanhola, e Lucy Cordano Giorello, uma florista descendente de imigrantes italianos. Mujica tinha seis anos de idade quando seu pai faleceu. Ainda pequeno, ele começou a ajudar a mãe com o cultivo e a venda das flores — desenvolvendo um apego pelo trabalho com a terra que o acompanharia pelo resto da vida.
O jovem frequentou a escola pública local e, mais tarde, ingressou no Instituto Alfredo Vásquez Acevedo, onde pretendia concluir o ensino secundário e prosseguir com a graduação em direito. A necessidade de ajudar no sustento da família, entretanto, o forçou a interromper os estudos.
O pensamento político de Mujica foi fortemente influenciado por sua família — em especial por sua mãe, militante de uma ala progressista do Partido Nacional (ou Partido Blanco), e por seu tio materno, Ángel Cordano, também nacionalista e apoiador do peronismo. Ainda na adolescência, Mujica começou a participar das mobilizações operárias em prol de melhores condições de trabalho.
Mujica ingressou no Partido Nacional em 1956, integrando-se ao grupo dos apoiadores do deputado Enrique Erro, ligado à esquerda nacionalista e aos movimentos sindicais. Bastante comprometido com as atividades partidárias, Pepe seria nomeado secretário-geral da Juventude Nacionalista.
Em 1958, após quase um século de hegemonia do Partido Colorado, os Nacionalistas venceram as eleições e obtiveram o controle do colegiado. Enrique Erro foi nomeado Ministro da Indústria e do Trabalho, mas sua gestão seria breve. Ele foi destituído meses depois, em função de suas críticas à política econômica do novo governo e sua oposição à assinatura de um acordo com o FMI.
Em 1962, Erro e Mujica romperiam definitivamente com o Partido Nacional. Eles fundaram então a União Popular, uma coalizão que unia dissidentes nacionalistas, o Partido Socialista e o grupo Novas Bases. Na eleição seguinte, a União Nacional lançou o socialista Emilio Frugoni como candidato à presidência, mas obteve um desempenho eleitoral frustrante, amealhando pouco mais de 2% dos votos.
Os Tupamaros
Para Mujica, o período foi marcado pela radicalização de seu pensamento político. O triunfo da Revolução Cubana havia inflamado as lutas sociais na América Latina, inspirando a criação de diversas organizações revolucionárias. Ao mesmo tempo, a crise econômica que afligia o Uruguai desde os anos 50 havia causado o aumento da inflação, do desemprego e das desigualdades, fomentando o descontentamento com a política institucional e o crescimento da esquerda radical.
Em 1964, Mujica ingressou no Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros (MLN-T) — uma organização de guerrilha urbana de inspiração socialista, que pregava a luta armada contra a oligarquia e a resistência ao imperialismo. No movimento, ele conheceu a guerrilheira Lucía Topolansky, que se tornaria sua companheira pelo resto da vida.
Sob a liderança de Raúl Sendic, os Tupamaros se consolidariam como uma das organizações guerrilheiras mais combativas da América do Sul, acumulando uma série de façanhas memoráveis.
Os guerrilheiros costumavam organizar ações de expropriação junto a bancos, cassinos e armazéns de grandes empresas. Essas operações serviam tanto para financiar o movimento quanto para distribuir alimentos e dinheiro junto a comunidades carentes do Uruguai.
Os Tupamaros também realizavam ataques a alvos militares e sequestro de burocratas, banqueiros e diplomatas, visando pressionar o governo uruguaio a libertar presos políticos. Em 1970, o grupo foi responsável por capturar e executar Dan Mitrione — um agente da CIA incumbido de ensinar técnicas de tortura para grupos de extermínio e órgãos repressivos das ditaduras militares sul-americanas.
Mujica participou tanto de ações armadas quanto do planejamento logístico das operações urbanas. Em outubro de 1969, ele ajudou a organizar a Tomada de Pando — uma das operações mais ousadas executadas pelos Tupamaros, quando um grupo de dezenas de combatentes ocupou diversos prédios públicos da cidade.
O guerrilheiro se envolveu em diversos enfrentamentos armados contra as forças uruguaias. Ele quase morreu em uma dessas ações, recebendo seis tiros durante um confronto em um bar de Montevidéu. Mujica foi preso quatro vezes entre 1969 e 1972 — e conseguiu escapar em duas ocasiões.
A fuga da prisão de Punta Carretas é um dos episódios mais conhecidos da resistência uruguaia. Em 6 de setembro de 1971, Mujica e outros 110 presos políticos ligados aos Tupamaros escaparam da prisão utilizando uma rede de túneis cavados a partir de 25 celas, concretizando uma das fugas mais engenhosas da história.

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A prisão e a ditadura militar uruguaia
Mujica foi novamente preso em 1972. Dessa vez, ele ficaria encarcerado por 13 anos, até 1985. Vários membros dos Tupamaros teriam o mesmo destino, sobretudo a partir de 1973. Nesse ano, o presidente uruguaio Juan María Bordaberry, apoiado pelas Forças Armadas, liderou um autogolpe, ordenando a dissolução do parlamento e suspendendo a Constituição.
Tinha início assim a ditadura militar uruguaia, que se estenderia por 12 anos. O regime foi marcado pela forte repressão política, com violações sistemáticas dos direitos humanos, censura e supressão das liberdades democráticas.
A exemplo das demais ditaduras sul-americanas, o governo uruguaio se integrou à Operação Condor — um consórcio de regimes militares apoiado e financiado pelos Estados Unidos, que visava assassinar opositores e eliminar as organizações de esquerda. Centenas de pessoas foram torturadas e assassinadas no Uruguai e mais de 300 mil civis foram forçados ao exílio.
No cárcere, Mujica foi submetido a espancamentos, torturas e privações brutais. Ele vivia em confinamento solitário, em uma cela insalubre, sem banheiro, com pouca água e comida. Ele foi forçado a se alimentar de moscas para sobreviver e chegou a perder os dentes em função da desnutrição. A experiência lhe causou traumas e problemas psicológicos, levando-o a experimentar episódios de alucinação e delírio.
Mujica foi utilizado como um dos nove reféns da ditadura militar, ao lado de outros líderes Tupamaros, como Raúl Sendic e Eleuterio Fernández Huidobro. A medida servia para impedir novas ações do movimento. Caso os Tupamaros retomassem as atividades, os reféns seriam eliminados.
No início dos anos 80, os militares uruguaios, pressionados pela crise econômica e crescente perda de apoio popular, iniciaram as negociações para a redemocratização. Em 1984, os generais e líderes da oposição firmaram o Pacto do Clube Naval, que previa a libertação dos presos políticos, anistia para os crimes ocorridos durante o regime e o retorno das eleições livres.
A redemocratização e a Frente Ampla
Mujica foi libertado em março de 1985, junto com centenas de prisioneiros. Pouco tempo depois, os Tupamaros anunciaram o abandono da luta armada e o início de uma nova fase de atuação política institucional.
A fim de reforçar os laços com a classes populares, Mujica criou as “mateadas” — reuniões abertas onde os Tupamaros compartilhavam mate e conversavam com as pessoas sobre os objetivos do movimento, a luta armada, a experiência no cárcere e os problemas do país.
Em 1989, os Tupamaros foram admitidos na Frente Ampla, uma coalização de partidos de esquerda e centro-esquerda. Nesse mesmo ano, Mujica fundou o Movimento de Participação Popular (MPP), reunindo ex-Tupamaros e militantes oriundos de outras organizações da esquerda radical.
O MPP se consolidaria como principal partido da Frente Ampla, e Mujica, conhecido por seu discurso franco e carisma popular, se tornaria uma das lideranças mais populares da esquerda. Em 1994, ele foi eleito deputado por Montevidéu, integrando a 44ª legislatura. Em 1999, tornou-se senador, assumindo uma defesa vigorosa das demandas dos setores populares.
Na eleição de 2004, a Frente Ampla conquistou a maioria dos votos e Tabaré Vázquez assumiu a presidência — marcando o primeiro governo de esquerda da história do Uruguai e encerrando a centenária alternância entre Nacionalistas e Colorados no comando do país.
Entre 2005 e 2008, Mujica ocupou o cargo de ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca no governo Vázquez. A passagem pelo ministério ajudou a solidificar sua imagem como um líder próximo do povo, dotado de visão humanista e genuinamente interessado em garantir o bem-estar dos pequenos produtores.
O governo de Mujica
A popularidade de Mujica o levou a ser escolhido como candidato da Frente Ampla para suceder Tabaré Vázquez. Na eleição de 2009, o ex-guerrilheiro foi eleito presidente do Uruguai, derrotando o conservador Luis Alberto Lacalle, do Partido Nacional.
O governo de Mujica foi um marco na história do Uruguai, sendo caracterizado por avanços econômicos, importantes conquistas sociais e uma ampliação sem precedentes dos direitos civis.
A economia uruguaia registrou um crescimento médio anual de 5,4% durante o governo de Mujica. O desemprego caiu de 13% para 6%, o menor patamar da série histórica, ao passo que o salário-mínimo cresceu mais de 250%.
Mujica implementou programas de transferência de renda e de apoio à população em situação de vulnerabilidade, além de ampliar a cobertura do Cartão Uruguai Social — programa de subsídio para famílias carentes.
A combinação de crescimento econômico elevado e expansão da rede de proteção social permitiu uma redução expressiva da incidência da pobreza, que caiu de 40% para 11% da população. Durante o mandato de Mujica, o Uruguai atingiu o nível mais baixo de desigualdade da história do país.
O governo Mujica também instituiu uma série de reformas que transformaram o Uruguai em uma referência internacional na promoção dos direitos civis. A aprovação da Lei 19.172 fez com que o Uruguai se tornasse o primeiro país do mundo a legalizar a produção, venda e consumo de maconha sob regulamentação estatal — uma medida de grande importância para o combate ao narcotráfico e à violência urbana.
Em 2012, o governo uruguaio também instituiu a descriminalização do aborto, permitindo a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana. E em 2013, foi sancionada a Lei 19.075, legalizando o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
No âmbito da política externa, Mujica foi um defensor da integração latino-americana, participando ativamente do Mercosul, da Unasul e da Celac.
O ex-guerrilheiro também foi muito elogiado por sua simplicidade e pelo estilo austero. Ele rejeitou os privilégios presidenciais, optando por continuar vivendo em sua humilde chácara em Rincón del Cerro. Doava 90% de seu salário para programas sociais e era um crítico resoluto do consumismo, do egoísmo e da cultura individualista do capitalismo.
Últimos anos
Mujica deixou a presidência do Uruguai em março de 2015, com uma taxa de aprovação de 69%. A ótima imagem de seu governo garantiu a continuidade da governança da Frente Ampla, com o retorno de Tabaré Vázquez à chefia do poder executivo.
Em 2015, Mujica foi novamente conduzido ao cargo de senador, mas renunciou em agosto de 2020, em função da pandemia de Covid-19 e de sua saúde fragilizada por uma doença autoimune e pela insuficiência renal.
Ele continuou politicamente ativo, participando de eventos da Frente Ampla, apoiando a campanha presidencial de Yamandú Orsi e dando palestras sobre mudanças climáticas, consumismo e justiça social.
Mujica faleceu em 13 de maio de 2025, aos 89 anos de idade, vitimado pelo câncer. Sua morte gerou comoção mundial. Mais de 40 mil pessoas acompanharam seu cortejo fúnebre e o velório em Montevidéu.
