Dia da Nakba: 77 anos de uma catástrofe em curso
Processo de limpeza étnica permitiu consolidação do Estado de Israel e legitimou regime de apartheid que segue mantendo oprimindo os palestinos
O Dia da Nakba, rememorado anualmente em 15 de maio, é mais do que uma data de memória histórica para o povo palestino. É um símbolo vivo da violência colonial sionista que, desde 1948, submete o povo palestino a uma série interminável de massacres, ao roubo sistemático de suas terras e ao apagamento de sua cultura.
A Nakba (a “Catástrofe”, em língua árabe) é o termo utilizado para designar o processo de limpeza étnica instaurado no território palestino desde a criação do Estado de Israel, que resultou na expulsão de mais de 800 mil pessoas, no assassinato de dezenas de milhares de civis e na destruição de centenas de cidades.
Esse processo de limpeza étnica permitiu a consolidação de Israel como um Estado etnonacionalista e legitimou um verdadeiro regime de apartheid, que, 77 anos após sua fundação, segue mantendo o povo palestino submetido a uma violenta opressão — cuja face mais brutal está exposta agora, no genocídio em curso na Faixa de Gaza.
Os palestinos
A identidade palestina moderna foi moldada ao longo de milhares de anos e reflete a multiculturalidade característica da região do Levante. Os palestinos descendem dos povos que habitavam a região do Crescente Fértil desde a Idade do Bronze — nomeadamente os cananeus, que se estabeleceram naquela área há cerca de 4.000 anos.
Ao longo dos séculos, o povo palestino sofreu influência das sucessivas ondas migratórias e das mudanças políticas na região do Levante. Inúmeras culturas semitas, nômades e indo-europeias também se estabeleceram na região (filisteus, arameus, moabitas, israelitas, etc.) e vários impérios se sucederam no domínio da Palestina — assírios, babilônicos, persas, egípcios, romanos.
No início da Era Cristã, a região passou a receber sucessivas levas de imigrantes árabes. O processo de arabização se intensificou a partir do século 7, após a Conquista Árabe-Muçulmana. Os povos que habitavam a Palestina adotaram progressivamente a língua árabe e se converteram ao islamismo.
A Palestina foi integrada aos Califados Muçulmanos e governada pelas dinastias egípcias. Posteriormente, passou ao domínio dos Cruzados. Em seguida, foi anexada pelo Império Otomano, que a controlou do século 16 até a Primeira Guerra Mundial.
Por mais de 1.300 anos, do período pós-clássico até meados do século 20, a Palestina manteve-se habitada por uma maioria absoluta de árabes palestinos muçulmanos (94% da população) e grupos menores de palestinos cristãos, drusos e judeus.
Esse perfil demográfico e religioso, entretanto, começaria a ser alterado a partir do fim do século 19, quando o sionismo ganhou força e passou a insuflar a imigração judia para a Palestina.
O movimento sionista
O sionismo é um movimento político nacionalista e conservador que surgiu como uma reação ao assimilacionismo — uma tendência que priorizava a integração das comunidades judaicas às sociedades onde estavam estabelecidas.
O principal ideólogo e articulador do sionismo foi o escritor austro-húngaro Theodor Herzl, autor de O Estado Judeu — obra basilar do movimento sionista, onde o autor argumenta que o antissemitismo só seria resolvido quando os judeus dispersos pelo mundo se reunissem em um Estado nacional independente.
A Palestina, então sob domínio otomano, tornou-se o local preferencial para a criação deste “Estado judeu”, com base nos laços históricos e religiosos dos povos israelitas que habitavam a região na Antiguidade.
O sionismo se apresentava como um movimento de autodeterminação do povo judeu — ignorando o fato de que a instalação de um “Estado judeu” onde já existia um outro povo vivendo só poderia ser concretizado através da imposição de um violento projeto colonial.
O sionismo não tratava, portanto, de autodeterminação do povo judeu, mas sim da supressão do direito à autodeterminação do povo palestino. Os ideólogos do sionismo, entretanto, dissimulariam esse fato através da pregação mística (o regresso a uma suposta “terra prometida” para “o povo escolhido”) e pelo revisionismo histórico (a concepção de que a Palestina seria “uma terra sem povo para um povo sem terra”).
Em 1897, Herzl organizou o I Congresso Sionista em Basileia, Suíça, onde teve início a campanha internacional para criação do “lar dos judeus” na Palestina. Além de angariar apoio da burguesia judaica, a ideia de Herzl foi encampada com entusiasmo pela plutocracia capitalista ocidental.
Esse apoio decorria do fato de que Herzl assegurava que o Estado judeu serviria como um enclave da Europa no Oriente Médio. Em suas próprias palavras: “um pedaço de fortaleza contra a Ásia, uma sentinela avançada da civilização contra a barbárie”. Criava-se, assim, um vínculo indissociável entre sionismo e imperialismo. Converter a Palestina em um Estado judeu garantiria à burguesia ocidental e judaica uma fortaleza para conter o avanço do nacionalismo árabe e dos movimentos anticoloniais e anti-imperialistas que se encontravam em franca expansão no Oriente Médio.
A criação de Israel
A derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial forneceu as condições perfeitas para que o projeto do Estado judeu avançasse, pois permitiu ao Reino Unido assumir o controle da Palestina. O mandato britânico foi referendado pelos Acordos de San Remo, que mencionavam a necessidade de criar na Palestina “um lar nacional para o povo judeu”, reafirmando o conteúdo da Declaração de Balfour.
A população palestina jamais foi consultada a respeito do projeto sionista para usurpar o seu território. Rejeitando o projeto de Estado judeu, os palestinos organizaram uma série de revoltas populares entre 1920 e 1929, além de uma prolongada guerrilha contra o mandato britânico, levada a cabo a partir de 1936.
O Reino Unido reprimiu brutalmente as revoltas palestinas, decretando prisões em massa, demolindo casas e assassinando inúmeras lideranças. A repressão enfraqueceu a resistência palestina, deixando-a mais vulnerável aos eventos subsequentes que culminariam na Nakba.
Ao mesmo tempo, o movimento sionista, apoiado pela burguesia ocidental, passou a promover a imigração clandestina em massa de colonos judeus para a Palestina. Entre 1920 e 1940, a população judaica na Palestina saltou de 60 mil para 400 mil pessoas.
Os sionistas também financiaram a criação de grupos paramilitares como o Irgun, Stern e Haganá, responsáveis por coordenar ações armadas, massacres e atentados terroristas contra os civis palestinos, visando intimidá-los e forçá-los a abandonarem suas propriedades e aldeias.
Paralelamente às ações paramilitares e de colonização, o movimento sionista conduziu uma campanha cultural bem-sucedida, difundindo a ideia de que os judeus tinham um “direito histórico e sagrado” de ocupar a Palestina.
Por fim, o macabro genocídio dos judeus pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial demoliria as eventuais resistências à reivindicação do movimento sionista sobre a necessidade de criar uma nação judaica independente.
Em 1947, como resultado da articulação política internacional conduzida pelo movimento sionista e apoiada pelas potências ocidentais, a Assembleia Geral da ONU aprovou a fundação do Estado de Israel, criado a partir das terras desmembradas da Palestina. Conforme a resolução da ONU, Israel ficaria com 56,4% do território (incluindo as terras mais férteis) e o Estado palestino com 42,9%. A cidade de Jerusalém seria administrada pela ONU.

Fotografia de Beno Rothenberg / Wikimedia Commons
A Nakba
Em 14 de maio de 1948, os britânicos se retiraram da Palestina e o Estado de Israel foi oficialmente instalado. Contrariando a resolução da ONU, entretanto, Israel impediu a criação de um Estado palestino, dando continuidade à política de colonização dos territórios árabes.
As forças paramilitares sionistas iniciaram de imediato um projeto de limpeza étnica, expulsando a população palestina. Foi o início do êxodo palestino, ou Nakba. Na mitologia fundacional do Estado de Israel, a expulsão do povo palestino costuma ser justificada como uma consequência da Guerra Árabe-Israelense, travada entre 1948 e 1949, mas essa narrativa não resiste aos fatos históricos.
Em uma anotação feita em seu diário em 1895, — isso é, 53 anos antes da fundação de Israel — o fundador do movimento sionista já preconizava a expulsão dos palestinos: “tentaremos expulsar a miserável população local para fora das fronteiras […] negando-lhes qualquer emprego em nosso país”, afirmou Herzl.
A mesma ideia foi expressa por Moshe Sharett, segundo chefe de governo de Israel, ainda em 1914: “Nós não viemos para uma terra vazia a fim de herdá-la, mas sim para conquistá-la do povo que a habita e que a governa pela virtude de sua língua e de sua cultura selvagem”.
Em 1918, Chaim Weizann, líder do Congresso Sionista Mundial e futuro presidente de Israel, comparou os palestinos às “rochas da Judeia, isso é, “obstáculos que devem ser removidos de um caminho difícil”. E David Ben-Gurion, expoente do chamado “sionismo progressista”, afirmou em 1938, dez anos antes da Nakba, que apoiava a transferência compulsória dos palestinos — e que não via “nada de imoral nisso”.
Não por acaso, a estratégia militar para expulsar os palestinos já estava pronta antes mesmo da criação do Estado de Israel. O Plano Dalet, elaborado no outono de 1947 pelo alto comando do Haganá, previa o ataque contra centenas de cidades e vilarejos palestinos, a expulsão em massa dos moradores e uma série de medidas para impedir o retorno dos nativos.
Estima-se que aproximadamente 800 mil palestinos foram expulsos de suas terras em 1948 — cerca de 85% de toda a população palestina que vivia no território designado à Israel pelo plano de partilha da ONU. Acossados pela violência, eles foram forçados a fugir para os países vizinhos ou se tornaram refugiados nos bolsões da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.
Além de expulsar os moradores, Israel destruiu aproximadamente 600 cidades palestinas, visando erradicar os registros históricos árabes, e deu início a um processo de hebraização do território. Inúmeras mesquitas e edificações históricas para o povo palestinos foram destruídas.
Por meio desse processo de limpeza étnica, os palestinos, que eram a maioria absoluta em 15 dos 16 distritos de Israel em 1947, tornaram-se grupos minoritários em todo o país em apenas um ano.
Além da perda de suas casas, os palestinos sofreram o confisco de terras e propriedades. Estima-se que mais de 4,2 milhões de acres foram tomados por Israel, incluindo terras agrícolas, pomares e propriedades urbanas.
A Lei de Propriedade de Ausentes, promulgada pelo governo israelense em 1950, autorizou o confisco de todas as terras de palestinos que foram expulsos, transferindo-as para colonos judeus ou para o Estado de Israel.
Os massacres
Em meio à expulsão dos palestinos, as forças sionistas deram início a uma campanha de massacres e chacinas contra a população civil. Essas ações não apenas visavam a conquista de territórios, mas também incutir medo e provocar a fuga em massa dos palestinos, consolidando a supremacia demográfica judaica nas áreas destinadas ao Estado de Israel.
Somente no ano de 1948, os paramilitares israelenses realizaram cerca de 70 massacres contra aldeias e cidades palestinas, matando mais de 15 mil pessoas.
Um dos piores massacres ocorreu nas cidades de Lida e Ramla, atacadas pelas forças israelenses em julho de 1948, durante a Operação Dani. Os soldados das brigadas Yiftach e Kiryat iniciaram uma ofensiva brutal contra a população civil, matando um número estimado em até 1.700 pessoas. Os sobreviventes foram forçados a deixar as cidades durante as chamadas “Marchas da Morte”.
O Massacre de Deir Yassin, uma vila localizada perto de Jerusalém, deixou cerca de 130 mortos, incluindo 30 crianças. A matança foi conduzida pela Haganah, principal milícia sionista, na madrugada de 9 de abril de 1948. Testemunhos de sobreviventes relatam mutilações, torturas e violência sexual. O massacre foi amplamente divulgado pelos próprios soldados israelenses, a fim de espalhar o medo entre as comunidades locais.
Tantura, uma pacífica vila costeira de pescadores na região de Haifa, foi atacada pela Brigada Alexandroni na madrugada de 22 para 23 de maio de 1948. Mesmo após a rendição dos moradores, os soldados israelenses fuzilaram cerca de 200 pessoas desarmadas. Os corpos foram enterrados em uma vala comum, hoje coberta por um estacionamento que serve aos turistas de um balneário.
A cidade de Safsaf, na região da Galileia, foi atacada durante a Operação Hiram, uma campanha israelense que visava consolidar o domínio sobre o norte da Palestina. As tropas israelenses executaram cerca de 70 pessoas — a maioria dos quais estavam rendidos e com as mãos amarradas. A vila foi completamente despovoada e entregue para colonos.
Outros massacres de grande porte ocorreram nas comunidades de Al-Dawayima (cerca de 200 mortos, incluindo muitas mulheres e crianças), Saliha (cerca de 70 mortos) e Abu Shusha (entre 60 e 70 mortos). As forças sionistas também realizaram ataques contra as tribos de beduínos, notabilizando-se o Massacre de Arab al-Mawasi.
A Nakba em curso
A Nakba não se encerrou em 1948. Ela é um processo contínuo, perpetuado por políticas de Estado que legitimam a ocupação militar, o roubo de terras, a colonização e a violência contra o povo palestino.
Diversas organizações internacionais, incluindo a Human Rights Watch, a Anistia Internacional e até mesmo a Comissão Econômica e Social para a Ásia Ocidental da ONU, já caracterizaram as políticas de Israel como um sistema de apartheid, que segrega os palestinos e os rebaixa à condição de subcidadãos.
A população de origem árabe que reside em Israel está submetida a diversas formas de discriminação institucional, tendo menos direitos do que a população judia e enfrentando limitações em áreas como educação, moradia e acesso às terras. Essa legislação discriminatória está em grande parte fundamentada na Lei do Estado Nação, que estabeleceu a existência de Israel como um etnoestado judeu, marginalizando as demais identidades.
Desde 1967, Israel mantém a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental como territórios sob ocupação. A população palestina nesses locais responde à lei marcial, enquanto os colonos judeus estão sujeitos à legislação civil.
A construção de assentamentos ilegais nos territórios ocupados fragmenta cada vez mais os remanescentes dos territórios palestinos, inviabilizando a possibilidade de se criar um Estado funcional. Ao mesmo tempo, os palestinos enfrentam restrições de mobilidade, confisco de terras, demolições de casas e o assédio e a violência constante dos colonos.
Os refugiados palestinos seguem até hoje sem ter o direito de retornar às suas casas ou receber compensação pelas expropriações. Em contraste, a Lei do Retorno permite que qualquer pessoa de ascendência judaica, nascida em qualquer lugar do mundo reivindique e obtenha a cidadania israelense — uma contradição que deixa evidente o caráter segregacionista do Estado de Israel.
É na Faixa de Gaza, entretanto, que a percepção da continuidade da Nakba se faz mais evidente. Desde 2007, Gaza sofre com o bloqueio imposto por Israel, resultando na escassez de alimentos, água potável, medicamentos e eletricidade.
Desde outubro de 2023, Israel submete a Faixa de Gaza a uma verdadeira ofensiva genocida, que já matou mais de 50 mil palestinos — a maioria do quais mulheres e crianças.
Ao lado da matança de civis, Israel tem buscado devastar toda a infraestrutura essencial — bombardeando hospitais, escolas e conjuntos residenciais. A ofensiva é uma tática deliberada para tornar Gaza inabitável e forçar os palestinos sobreviventes a deixarem o território, permitindo que Israel complete o processo institucional de limpeza étnica iniciado em 1948.
