Do chão de fábrica ao Palácio do Planalto: 80 anos de Lula
Em 27 de outubro de 1945, nascia Luiz Inácio Lula da Silva, primeiro presidente brasileiro originário da classe operária, que implementou programas sociais e políticas públicas contra fome, pobreza e desigualdade social
Há 80 anos, em 27 de outubro de 1945, nascia Luiz Inácio Lula da Silva. Oriundo de uma família camponesa do Agreste pernambucano, Lula migrou ainda criança para São Paulo, onde trabalhou como operário da indústria metalúrgica.
Nos anos 70, Lula se consolidou como o principal expoente do Novo Sindicalismo, tendo papel central na rearticulação da luta operária. Ele comandou as históricas greves do ABC Paulista, fundou o Partido dos Trabalhadores e mobilizou as massas na luta contra a ditadura militar.
Eleito em 2002, Lula se tornou o primeiro presidente brasileiro originário da classe operária. Em seus mandatos, ele implementou uma série de programas sociais e políticas públicas que permitiram reduzir a fome, a pobreza e a desigualdade social em níveis inéditos.
Infância e juventude
Luiz Inácio Lula da Silva nasceu em Caetés, então um distrito de Garanhuns, no interior de Pernambuco. Ele é filho de Aristides Inácio da Silva e de Eurídice Ferreira de Melo, a Dona Lindu. Seus pais eram lavradores e a família vivia em uma situação de penúria, submetida à fome e ao flagelo da seca. Moravam em uma casa de taipa de dois cômodos, com chão de terra e sem banheiro. Quatro dos irmãos de Lula morreram quando ainda eram pequenos.
Em 1952, Lula deixou o Agreste pernambucano com sua mãe e os irmãos em um “pau-de-arara”. Viajou por 13 dias para encontrar o pai, que havia arrumado emprego como estivador no Porto de Santos, no litoral paulista. A família estabeleceu moradia em Vicente de Carvalho, um bairro pobre do Guarujá. A convivência familiar era marcada por conflitos. Aristides havia arrumado uma segunda família e agredia Dona Lindu e os filhos constantemente.
Apesar da resistência do pai, que não queria que os filhos estudassem, Lula cursou as primeiras letras no Grupo Escolar Marcílio Dias. Ele começou a trabalhar aos sete anos de idade, engraxando sapatos e vendendo laranjas e tapiocas na estação de barcas de Santos para ajudar nas despesas de casa.
Cansada do comportamento agressivo do marido, Dona Lindu partiu com os filhos para São Paulo, fixando-se no bairro de Vila Carioca, nos arredores de Heliópolis. Lula permaneceu morando com Aristides por um tempo. Após completar 11 anos, foi viver com a mãe na capital paulista.
Lula teve uma série de ocupações informais na adolescência. Em 1960, arrumou seu primeiro emprego com carteira assinada — tornou-se office boy nos Armazéns Gerais Colúmbia, um entreposto de algodão. Em seguida, conseguiu emprego na Fábrica de Parafusos Marte e ingressou no curso de torneiro mecânico do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).
Em 1964, Lula sofreu um acidente de trabalho que levou à amputação do dedo mínimo da mão esquerda. Seguiu, entretanto, trabalhando na fábrica por mais onze meses. Trabalhou ainda na Fris-moldu-car e, posteriormente, assumiu o cargo de torneiro mecânico nas Indústrias Villares, em São Bernardo do Campo.
Novo Sindicalismo
Lula travou contato com o movimento sindical por intermédio de seu irmão, Frei Chico, então militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A princípio, Lula tinha uma visão negativa do sindicalismo, impregnada pela narrativa conservadora promovida pela ditadura. Aos poucos, ele foi adquirindo consciência sobre a importância da mobilização operária e passou a se interessar cada vez mais pelas discussões das pautas trabalhistas.
Em 1969, Lula foi eleito como suplente da diretoria no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Diadema. Extrovertido e dotado de boa retórica, ele logo começou a angariar apoio dos trabalhadores para assumir cargos de representação. Em 1972, tornou-se primeiro-secretário e em 1975 foi eleito presidente do sindicato, com 92% dos votos.
Em sua gestão, Lula lutou de forma aguerrida pela reposição dos salários e defendeu a independência sindical. A autonomia dos sindicatos e o foco na mobilização da base seriam as características centrais do chamado “Novo Sindicalismo” — movimento que buscava romper com o modelo de “sindicalismo pelego” imposto pela ditadura, subserviente ao Estado e aos interesses patronais.
Identificado com as ideias do Novo Sindicalismo, Lula foi conquistando cada vez mais apoio de sua categoria. Em 1978, ele foi reeleito presidente do sindicato e intensificou a mobilização em prol de melhores salários.
Em maio de 1978, uma greve convocada por Lula contou com a adesão de 235 mil trabalhadores. O movimento se expandiu ao longo do ano, chegando a mobilizar quase 540 mil funcionários. Lula também liderou os metalúrgicos durante a greve geral de 1979, quando 180 mil trabalhadores do ABC Paulista cruzaram os braços, paralisando a produção de 600 fábricas da região, incluindo multinacionais como Ford e Volkswagen.
A intensidade do movimento grevista assustou a ditadura. Os trabalhadores foram duramente reprimidos pelas forças policiais e perseguidos pelos aparelhos repressivos do regime, que utilizou as Leis Antigreve para sancioná-los. Mesmo sofrendo forte repressão, a greve se prolongou por 41 dias.
Em 1980, Lula organizaria uma gigantesca manifestação de trabalhadores no dia 1º de Maio, atraindo mais de 80 mil pessoas para um comício histórico no Estádio de Vila Euclides. Uma nova greve convocada ainda em 1980 levou 300 mil metalúrgicos a paralisarem as linhas de produção.
A ditadura novamente tentou debelar o movimento apelando para a repressão. O Ministério do Trabalho interveio nos sindicatos do ABC Paulista, afastando 42 dirigentes. Lula foi preso pelo DOPS e processado com base na Lei de Segurança Nacional.
Ao invés de intimidar os trabalhadores, a repressão serviu como combustível para a expansão da luta operária, sedimentando o Novo Sindicalismo como o grande protagonista da resistência à ditadura. A essa altura, Lula não era apenas uma importante liderança sindical. Ele havia se transformado em um dos grandes expoentes da luta de toda a sociedade brasileira contra o regime.
Líder do Partido dos Trabalhadores
Em 10 de fevereiro de 1980, Lula presidiu o ato de fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) — a primeira legenda organizada no Brasil após a reforma partidária que aboliu o bipartidarismo.
O PT já surgiu como uma das principais agremiações da esquerda brasileira, congregando o apoio de mais de 400 organizações sindicais e movimentos sociais, além do movimento estudantil, dos setores progressistas da Igreja Católica, dos artistas, dos intelectuais e de vários ex-militantes de organizações trabalhistas e revolucionárias.
Em 1982, Lula se lançou como candidato do PT ao governo do estado de São Paulo. Ele terminou a disputa em quarto lugar, amealhando 1,1 milhão de votos. O resultado o decepcionou e ele cogitou desistir das disputas eleitorais. Foi Fidel Castro quem o aconselhou a continuar. “Não existe na história da humanidade outro metalúrgico que já tenha conseguido um milhão de votos”, argumentou o revolucionário cubano.
Em 1983, Lula liderou mais uma greve geral, dessa vez contra o decreto 2.045 que limitava os reajustes salariais e aprofundava a política de austeridade e arrocho promovida pela ditadura militar sob os auspícios do FMI. A greve mobilizou mais de dois milhões de trabalhadores de 35 categorias, tornando-se um marco histórico do sindicalismo brasileiro e ensejando a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), a maior central sindical da América Latina.
Lula também foi um dos principais articuladores do movimento das “Diretas Já”, que reivindicava abertura política completa e eleições diretas para a Presidência da República. A campanha mobilizou milhões de pessoas, levanto multidões aos atos organizados por todo o Brasil. Mesmo derrotado no parlamento, o movimento ajudou a erodir as bases de sustentação do regime.
Em 1986, Lula foi eleito deputado federal com a maior votação da história até então. Ele comandou a bancada do PT que participou da Assembleia Nacional Constituinte e ajudou a elaborar emendas para inclusão de pautas como igualdade de gênero, sufrágio irrestrito e universalização de direitos sociais como educação e saúde na Constituição de 1988.
Lula foi o candidato do PT ao pleito de 1989 — a primeira eleição direta para a Presidência da República desde a redemocratização. O petista chegou ao segundo turno, mas foi derrotado pelo candidato conservador Fernando Collor, egresso da ARENA e filiado ao Partido da Reconstrução Nacional (PRN).

Lula discursando para metalúrgicos em 1979
Folha de S. Paulo/Wikicommons
Lula voltou a disputar a Presidência pelo PT nas eleições de 1994 e 1998, perdendo nas duas ocasiões em primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso (FHC), do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Tornou-se o principal opositor da política econômica de FHC, criticando o avanço do receituário neoliberal e a política de privatização das empresas estatais.
O líder petista ajudou a avançar as iniciativas de cooperação entre as organizações de esquerda latino-americanas, base da ação coordenada que se estabeleceria durante a chamada “Onda Rosa” — a ascensão de governos de esquerda na região, registrada a partir de 1998.
Lula também organizou as “Caravanas da Cidadania”, que visitaram 359 cidades em 7 estados, visando ouvir as demandas e articular o diálogo com a população nas regiões mais remotas e negligenciadas do país.
Um operário na Presidência
Com uma estratégia de moderação das pautas e suavização da retórica, Lula venceu a eleição presidencial de 2002, derrotando o candidato tucano José Serra no segundo turno.
Ainda durante a campanha, Lula se comprometeu com uma política de conciliação com amplos setores da sociedade, buscando constituir uma base de apoio heterogênea, reunindo desde partidos de esquerda até legendas fisiológicas e de centro-direita.
Lula também buscou apoio do empresariado por meio da manutenção de políticas favoráveis ao mercado e concessões aos setores liberais. A chamada “carta ao povo brasileiro” foi interpretada como um aceno ao setor financeiro e um compromisso de que não haveria rupturas bruscas com o modelo econômico vigente no país.
Malgrado os limites da estratégia de conciliação, Lula implementou uma série de programas sociais e políticas públicas que possibilitaram o aumento expressivo da renda média dos trabalhadores e permitiram a redução da pobreza e da desigualdade social em níveis inéditos no país.
Durante o governo Lula, o Brasil reduziu a pobreza extrema em 75% e praticamente erradicou a fome crônica — façanha que rendeu ao mandatário o título de “campeão mundial do combate à fome”, outorgado pela ONU. Um estudo produzido pela Fundação Getúlio Vargas identificou que, entre 2003 e 2008, 32 milhões de brasileiros experimentaram ascensão social, passando a integrar a classe média.
As transformações continuarem no segundo mandato do petista. Reeleito em 2006, Lula implementou programas que permitiram quadruplicar o ingresso de jovens no ensino superior, ampliou os empregos formais, criou programas de acesso ao crédito, combateu o déficit habitacional e aumentou de forma expressiva os investimentos em saúde e educação.
Paralelamente, o Brasil retomou o crescimento econômico e manteve o ambiente de estabilidade e baixa inflação. Registrando expansões médias do PIB de 4% ao ano, o Brasil se tornou a 6ª maior economia do mundo, consolidando-se como uma potência emergente.
O país investiu fortemente nas relações diplomáticas Sul-Sul, buscando alicerçar sua autonomia e estreitar os laços com os governos não alinhados a Washington, além de ingressar na articulação de organizações alternativas aos sistemas financeiros ocidentais derivados dos Acordos de Bretton Woods — nomeadamente o grupo dos “BRICS”.
A extração de petróleo da camada do pré-sal, o avanço do setor petroquímico e da construção civil e a recomposição da indústria naval deram um peso crescente ao Brasil, que passou a expandir sua atuação em mercados antes dominados pelos Estados Unidos e por países europeus.
Golpe, prisão e retorno
Lula deixou o governo com as maiores taxas de aprovação da história, com 83% dos entrevistados avaliando sua gestão como ótima ou boa. A alta popularidade facilitou a eleição de Dilma Rousseff, que venceu o pleito de 2010, tornando-se a primeira mulher a assumir a Presidência do Brasil.
Dilma deu continuidade aos programas sociais de seu antecessor e ampliou os investimentos em infraestrutura e serviços públicos. Também conseguiu reduzir o desemprego para o menor patamar da história.
A partir de 2013, no entanto, o Brasil mergulhou em uma grave crise econômica e política. A eclosão das manifestações de 2013 e dos protestos contra a Copa do Mundo de 2014 tornaram-se fatores de desestabilização do governo petista. Ao mesmo tempo, o país amargou o fim do ciclo de alta dos preços das commodities e assistiu a rápida degradação da situação fiscal.
Dilma e as estatais brasileiras foram ilegalmente monitorados por programas de vigilância e espionagem em massa operados por agências de inteligência do governo dos Estados Unidos. O PT, por sua vez, tornou-se alvo de uma virulenta campanha midiática de vilanização e criminalização de suas lideranças.
Lula foi submetido a uma verdadeira guerra jurídica movida no âmbito da Operação Lava Jato, auxiliada pelo Departamento de Justiça dos EUA. Em abril de 2018, o líder petista seria alvo de mais uma prisão política, justificada por meio de um processo comprovadamente viciado, conduzido em conluio entre o juiz Sérgio Moro e o promotor Deltan Dallagnol, com o objetivo de impedir sua participação no pleito presidencial. A manobra possibilitou que Jair Bolsonaro assumisse a Presidência.
Lula passou 580 dias preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba. Sua detenção foi internacionalmente denunciada como uma prisão política. Ele foi solto em novembro de 2019, após o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar como inconstitucional a prisão em segunda instância.
As condenações de Lula foram anuladas em março de 2021 pelo STF, após a comprovação de uma série de irregularidades processuais e da admissão da parcialidade de Sérgio Moro na condução dos casos. Desde então, Lula obteve 26 vitórias consecutivas na justiça. Os processos referentes às condenações anuladas foram posteriormente arquivados por falta de provas. Lula foi inocentado em todos os demais processos.
Em abril de 2022, o Comitê de Direitos Humanos da ONU concluiu que a Operação Lava Jato agiu com parcialidade e violou os direitos políticos, as garantias constitucionais e a privacidade de Lula.
Com seus direitos políticos restaurados, Lula se candidatou à Presidência no pleito de 2022. Tornou-se, assim, o único presidente brasileiro a ser eleito para um terceiro mandato. Sua vitória possibilitou refrear o ciclo de políticas destrutivas iniciado após o golpe de 2016 e intensificado sob o governo Bolsonaro — ainda que em um contexto bastante desfavorável e com um congresso dominado pela extrema-direita e pelas legendas fisiológicas.
A retomada dos programas sociais, dos investimentos e das políticas públicas possibilitou que o Brasil interrompesse o processo de empobrecimento da classe trabalhadora. Desde 2023, mais de 25 milhões de pessoas deixaram de passar fome e a insegurança alimentar grave foi reduzida em 85%. Em 2025, o Brasil saiu novamente do Mapa da Fome da ONU.
A taxa de desemprego sofreu queda expressiva e o percentual da população empregada no mercado formal está em expansão. A renda média dos trabalhadores também tem registrado sucessivas altas e já ultrapassou o recorde histórico de 2012.























