Há 64 anos, Fidel Castro e Malcolm X protagonizavam um encontro histórico no Hotel Theresa, no Harlem. A reunião ocorreu durante a visita de Fidel a Nova York, para participar da 15ª Sessão da Assembleia Geral da ONU. O encontro se tornou um marco simbólico da interseção entre a luta antirracista dos afro-americanos e a revolução socialista em Cuba, movimentos irmanados na busca por justiça e igualdade — e confrontados pelas mesmas forças reacionárias.
Os Estados Unidos foram um dos primeiros países que Fidel Castro visitou após o triunfo da Revolução Cubana. Em abril de 1959, apenas quatro meses depois da vitória dos guerrilheiros sobre o regime de Fulgencio Batista, o comandante cubano viajou para os Estados Unidos, tentando angariar apoio político e consolidar a legitimidade do governo revolucionário.
A visita foi organizada pela Sociedade Americana de Editores de Jornais. Fidel havia aguçado a curiosidade e cativado parte da opinião pública nos Estados Unidos. Jovem, enérgico, barbudo, usando trajes de revolucionário, ele tinha uma imagem que contrastava com a dos líderes políticos tradicionais.
Além disso, havia comandado uma insurreição que derrubou um regime ditatorial corrupto, fortemente vinculado às máfias internacionais, o que despertou a admiração dos jovens e de parte dos setores progressistas. Quando visitou Nova York, Fidel foi recepcionado como uma celebridade, calorosamente recebido por estudantes e entusiastas de sua façanha revolucionária.
O governo norte-americano, por outro lado, não estava tão empolgado com a visita do líder cubano. A queda de Batista representava o fim de um regime incondicionalmente subserviente aos ditames da Washington. As reformas anunciadas pelo governo de Cuba causavam preocupação na Casa Branca e batiam de frente com os interesses do alto empresariado do país. Assim, quando Fidel compareceu a Washington, o presidente Dwight Eisenhower se recusou a encontrá-lo. O líder republicano preferiu deixar a cidade e ir para um resort jogar golfe.
Fidel foi recebido pelo vice-presidente, Richard Nixon, que o acompanhou em um breve roteiro diplomático.
Durante o encontro, Nixon questionou Fidel sobre a realização de novas eleições em Cuba, o aconselhou a manter distância dos soviéticos e a isolar os comunistas em seu gabinete.
Fidel, entretanto, reafirmou que pretendia aprofundar as reformas sociais e econômicas na ilha — deixando claro que a revolução não era apenas uma troca de regime. Nixon saiu do encontro convencido de que Fidel era “um idealista perigoso” que poderia eventualmente se aliar aos comunistas. O encontro, que Fidel pretendia usar para fortalecer os laços diplomáticos, acabaria servindo para reforçar as diferenças inconciliáveis entre os dois governos.
As relações entre Cuba e Estados Unidos se deteriorariam de forma acelerada nos meses seguintes. O governo cubano levou adiante seu programa de reformas estruturais, confiscando terras para a reforma agrária, nacionalizando empresas estrangeiras e estatizando os bancos privados. Mais de 160 companhias norte-americanas foram expropriadas durante esse processo. Tais ações foram vistas como ameaças diretas aos interesses dos Estados Unidos, que impuseram uma série de medidas retaliatórias.
Em outubro de 1960, o governo norte-americano impôs um embargo comercial contra Cuba e iniciou uma ofensiva diplomática para isolar o país, acusando-o de violar os direitos humanos e suprimir as liberdades civis. O tratamento ameno conferido a Fidel pela imprensa norte-americana em 1959 foi substituído por uma virulenta campanha de satanização.
Foi nesse clima de tensões acirradas que ocorreu a 15ª Sessão da Assembleia Geral da ONU em Nova York. Fidel Castro, chefe da delegação cubana, desembarcou na cidade em 18 de setembro de 1960. O contraste com a visita ocorrida no ano anterior era flagrante. Os apoiadores de Fidel agora tinham de dividir o espaço com uma turba agressiva de exilados reacionários, que protestavam violentamente contra a presença da delegação cubana na cidade. Os manifestantes anticastristas organizaram um piquete em frente ao estabelecimento onde os cubanos iriam se hospedar — o Hotel Shelburne, localizado próximo ao consulado cubano.
O hotel havia sido reservado com muita antecedência e os cubanos pagaram US$ 5 mil adiantados pelo serviço. No dia seguinte, entretanto, o gerente do hotel informou que o governo cubano teria de pagar uma “taxa de segurança” de US$ 20 mil, em função dos protestos que estavam sendo realizados na frente do estabelecimento e dos potenciais riscos que a presença da delegação trazia para o hotel.
Fidel se recusou a pagar a taxa, afirmando que a responsabilidade por coibir ataques ao hotel era da polícia de Nova York. Ameaçado de despejo pelo gerente do Shelburn, o líder cubano o chamou de “gangster” e partiu com sua delegação. Um emissário procurou por vagas em Manhattan, mas todos os hotéis consultados negaram hospedagem aos visitantes — certamente intimidados pelo governo norte-americano ou influenciados pelo sentimento anti-cubano em ascensão.
O episódio serviria ainda para alimentar a campanha de vilanização na imprensa. Os jornais disseram que a delegação cubana havia sido expulsa por seu “comportamento incivilizado”. Os cubanos foram acusados de levar prostitutas, usar drogas e até mesmo apagar charutos nas tapeçarias de luxo do hotel. Um jornal chegou a dizer que a delegação cubana levou galinhas vivas para serem preparadas dentro das suítes do Shelburn — e que os cubanos atiraram os ossos das aves pelas janelas, acertando os transeuntes nas ruas.
Fidel se dirigiu até a sede da ONU, onde denunciou o que ocorrera no Shelburn como um estratagema do governo norte-americano para impedir que a delegação cubana participasse da Assembleia Geral. E deixou claro que o plano não iria funcionar: “Se necessário, vamos acampar aqui nos jardins da ONU, que são território internacional”, afirmou. E demonstrando que não estava blefando, mandou um funcionário da delegação comprar barracas de camping.
Percebendo que o líder cubano falava sério, os funcionários da ONU tentaram resolver o problema antes que as barracas fossem montadas — e, de fato, conseguiram viabilizar uma oferta de hospedagem gratuita no Commodore. Mas a delegação cubana receberia outra proposta, que Fidel julgou muito mais simbólica: ficar hospedada no Hotel Theresa, no bairro do Harlem — reduto da comunidade afro-americana e dos imigrantes latinos de Nova York.
A ideia partiu de Malcolm X, expoente do nacionalismo negro e um dos principais líderes da Nação do Islã. Malcolm havia se firmado com uma voz central do movimento negro, destacando-se por sua postura combativa. Ele defendia que população afro-americana deveria fazer uso de “todos os meios necessários” em sua resistência e criticava a passividade e a condescendência das maiores correntes do movimento dos direitos civis. O discurso de Malcolm atraiu muitos seguidores, que sentiam a necessidade de radicalização da luta contra a opressão racial e acreditavam que as ações não violentas e as campanhas institucionais haviam fracassado na tentativa de pôr fim à segregação institucional.
Malcolm X apresentou a proposta de abrigar a delegação cubana no Harlem à “Fair Play for Cuba” — FPFC, uma organização de apoiadores da Revolução Cubana. Conrad Lynn, militante do movimento negro e membro do FPFC, viabilizou a hospedagem no Hotel Theresa, que pertencia ao empresário afro-americano Love Woods.
O jornalista Robert Taber, um dos fundadores da FPFC, levou a mensagem até Raúl Roa Kouri, representante de Cuba junto à ONU, que, por sua vez, informou Fidel Castro sobre a proposta. O comandante cubano aceitou de imediato e comunicou à decisão à secretaria-geral da ONU: “Vou para o Harlem porque é lá que vivem os negros, é lá que vive a classe trabalhadora, é lá que vivem os latino-americanos. É para lá que vamos porque nossa revolução é a revolução dos humildes, a revolução dos pobres, a revolução da integração racial e do antirracismo.”
Ainda na tarde de 19 de setembro, a delegação cubana chegou ao Harlem e ocupou 30 quartos do Hotel Theresa. O governo norte-americano ainda pressionou o dono do hotel a mudar de ideia, mas Woods manteve-se fiel ao compromisso assumido. O estabelecimento hasteou a bandeira cubana em sua fachada e por alguns dias se transformou em um “hotel presidencial”. A notícia logo se espalhou pela região e um grupo de apoiadores da Revolução foi até a entrada do hotel manifestar solidariedade com a delegação cubana.
Fidel e Malcolm X tiveram uma breve e histórica reunião naquela mesma noite — um encontro de 15 minutos, que simbolizava a convergência das lutas populares e revolucionárias contra os sistemas de opressão. E não foi difícil notar que, qualquer que fosse a reivindicação — luta antirracista, movimentos anticoloniais, direitos civis das minorias, direitos dos trabalhadores, anti-imperialismo — eram sempre os Estados Unidos, os países europeus e os representantes das classes dominantes que se posicionavam como antagonistas.
Os dois líderes conversaram sobre as demandas dos afro-americanos e do povo cubano. Falaram sobre o recente golpe de Estado que derrubara o líder congolês Patrice Lumumba. Trocaram pensamentos sobre racismo e os obstáculos comuns às suas lutas. Compartilharam pensamentos e visões de mundo. Malcolm fez questão de frisar que a percepção dos afro-americanos sobre a Revolução Cubana era distinta da narrativa da grande imprensa: “Você vai ver que as pessoas aqui no Harlem não são tão vulneráveis à propaganda anti-Cuba que divulgam no centro da cidade”. E sobre as relações entre Estados Unidos e Cuba, Malcolm pontuou: “Se o Tio Sam está te perseguindo, é porque você é um homem bom”.
O líder afro-americano determinou que seus companheiros da Nação do Islã ficassem de guarda nos arredores do hotel para proteger a comitiva cubana. “Não vai ter nenhum anti-castrista aqui — nós os expulsaremos. Eles que lutem contra a Ku Klux Klan, ou contra o Conselho dos Cidadãos Brancos. Eles que gastem um pouco dessa energia arrumando a própria casa. Não venham aqui no Harlem nos dizer quem nós deveríamos ou não deveríamos receber. Ou logo haverá menos anti-castristas no mundo”, assegurou Malcolm.
A presença da delegação cubana no Hotel Theresa transformou o Harlem na sede de um “congresso alternativo” das Nações Unidas. O bairro que nunca havia sido visitado por um chefe de Estado agora dava as boas-vindas a líderes como Nikita Khruschev, Kwame Nkrumah, Jawaharlal Nehru e Gamal Abdel Nassar — além de recepcionar uma série de intelectuais renomados, de Allen Ginsberg a Charles Wright Mills. Serviria também por alguns dias como um enclave das forças anti-imperialistas no centro financeiro do próprio império.
Quando o presidente norte-americano Dwight Eisenhower excluiu Cuba de um banquete oferecido aos líderes latino-americanos, Fidel mandou organizar no Hotel Theresa um jantar alternativo, recebendo como convidados os trabalhadores do Harlem. O bairro também abrigou uma histórica manifestação em solidariedade a Cuba, convocada pelo Partido Comunista dos Estados Unidos, sob a liderança de Benjamin Davis.
Os cubanos deixaram o Hotel Theresa no dia 28 de setembro — dois dias após Fidel realizar um notório discurso de mais de quatro horas na Assembleia Geral da ONU, denunciando os crimes do governo norte-americano e as atrocidades do imperialismo. Na volta para casa, os cubanos seriam novamente afrontados com uma provocação: a aeronave oficial do país foi confiscada pelas autoridades norte-americanas, que alegaram a necessidade de “saldar dívidas” do governo cubano. A delegação cubana teve que voltar a Havana em um avião emprestado pela União Soviética.