Entre a fome e o cárcere: os campos de concentração do Ceará
Antes do regime nazista, o Brasil já possuía uma rede de instalações para confinar e impedir que retirantes da seca chegassem a Fortaleza
No imaginário popular, o termo “campo de concentração” costuma evocar as infames unidades de confinamento do regime nazista, onde milhões de pessoas pereceram entre meados da década de 1930 e o fim da Segunda Guerra Mundial.
Mas, antes mesmo de Hitler ascender ao poder na Alemanha, o Brasil já possuía seus próprios campos de concentração — e eles também serviam de cenário para uma série de atrocidades. Entre 1915 e 1932, o governo brasileiro montou uma rede de instalações para confinar os retirantes da seca no estado do Ceará.
Apelidados de “currais da seca”, os campos de concentração serviam para impedir que os flagelados continuassem se dirigindo até a cidade de Fortaleza, tentando escapar da morte certa nos sertões. A criação dos campos era uma exigência da elite, incomodada com a presença de retirantes maltrapilhos e famintos pelas ruas da cidade.
Ao menos 90 mil pessoas foram forçadas ao confinamento nos campos, cercados por muros e telas de arame farpado e vigiados por soldados armados. Submetidas a condições extremamente insalubres e ao trabalho escravo, dezenas de milhares de pessoas morreram, vitimadas pela fome, por doenças ou pela repressão brutal.
As secas no Nordeste
Os primeiros registros documentais de seca no Nordeste datam já do início da colonização portuguesa. As secas são um fenômeno natural característico da região, marcada pelo clima semiárido, com altas temperaturas, baixa precipitação pluviométrica e escassez de rios perenes.
Não obstante, o modelo econômico agroexportador, baseado em grandes latifúndios e na exploração da mão de obra escrava, foi o fator determinante para que as secas se convertessem em vetores de graves crises famélicas, afetando sobretudo a população mais pobre.
A concentração de terras e de recursos econômicos e hídricos e a negligência do poder público resultaram na morte de milhões de pessoas ao longo dos séculos.
Apesar das condições adversas, a coroa portuguesa estimulou desde cedo o povoamento da área conhecida como “Polígono das Secas”, que viria a se converter na região semiárida mais habitada do planeta.
Ao longo do período colonial e do Brasil Império, as estiagens causaram enormes prejuízos. A seca de 1844-1845 foi tão intensa que motivou o intendente Marcos Antônio de Macedo a idealizar os primeiros projetos de transposição do Rio São Francisco.

Arquivo Nacional/EBC Serviços
A crise de 1877
Em 1877, entretanto, o Nordeste enfrentaria a seca mais grave registrada no país até então. A falta de chuva se prolongou por dois anos, causando a destruição das lavouras e a morte dos rebanhos.
O Nordeste enfrentou uma situação de fome generalizada, à qual se somou uma epidemia de varíola, causando a morte de até 500 mil pessoas — isso é, 5% da população do Brasil. O Ceará foi a província mais afetada, registrando quase 120 mil mortes (ou 15% de sua população).
Fugindo da fome, mais de 100 mil retirantes deixaram o Sertão do Ceará e rumaram para a capital, Fortaleza, gerando um dos maiores deslocamentos de refugiados da história do país. O influxo foi de tal ordem que a população da capital cearense triplicou em questão de meses. Para abrigar os flagelados, o governo montou uma série de acampamentos improvisados, ditos “abarracamentos”.
A presença de uma multidão de sertanejos famintos, esquálidos e esfarrapados, dormindo nas praças e nas ruas, pedindo ajuda aos transeuntes, incomodou enormemente a parcela mais abastada da cidade, que reagiu com protestos enérgicos, eivados de elitismo e preconceito, exigindo das autoridades a remoção dos flagelados.
A Colônia de Sinimbú
Fluxos migratórios similares foram registrados nas demais províncias do Nordeste. No Rio Grande do Norte, o governo enxergou uma oportunidade de capitalizar com a tragédia e simultaneamente estabelecer uma tétrica política de controle social. Em 1878, o presidente da província, José Nicolau Tolentino de Carvalho, fundou a Colônia Agrícola de Sinimbú, entre os municípios de Extremoz e Ceará-Mirim.
Os flagelados eram atraídos à colônia com a promessa de alimentação, moradia e trabalho. Ao chegarem no local, entretanto, eram confinados, submetidos ao trabalho escravo e à violência brutal. Os cativos eram mantidos em instalações insalubres e punidos com o uso de forquilhas e espancamentos com porrete. Muitos morriam em função dos maus-tratos e tinham seus corpos largados em campo aberto, para serem devorados por animais.
A Colônia de Sinimbú seria fechada poucos meses após sua inauguração, mas estabeleceu um “modus operandi” que seria retomado décadas mais tarde.
A seca de 1915 e o campo do Alagadiço
Em 1915, o Nordeste voltou a ser assolado por uma grande seca, que se prolongaria por dois anos e resultaria em mais de 100 mil mortes. O Ceará foi, novamente, o estado mais afetado.
Pressionado pela elite a não permitir que os retirantes perambulassem pelas ruas de Fortaleza e temendo a possibilidade de saques e invasões, o governador do Ceará, Benjamin Barroso, ordenou a construção do primeiro campo de concentração do estado.
Situado em Fortaleza, no bairro do Alagadiço, o campo serviu ao confinamento de 8 mil flagelados, vistos como uma “ameaça à ordem social”.
Os retirantes não podiam deixar o confinamento e eram mantidos em condições sub-humanas. A comida e a água eram escassas e de má qualidade e as doenças se proliferavam sem qualquer controle, ceifando inúmeras vidas. Os cativos também eram forçados a trabalhar em obras públicas e privadas e submetidos a espancamentos e torturas pelos soldados.
O sofrimento no campo de concentração do Alagadiço motivou a escritora Rachel de Queiroz a publicar “O Quinze”, obra em que descreve o sítio como um “atravancamento de gente imunda, de latas velhas e trapos sujos”. O confinamento durou até dezembro de 1915, quando a estiagem arrefeceu.
Os “currais da seca” de 1932
Dezessete anos depois, em 1932, uma seca ainda mais intensa e prolongada se abateu sobre o Nordeste.
Mais uma vez, o governo do Ceará, então sob comando de Roberto Carneiro de Mendonça, retomou a estratégia de erguer campos de concentração para aprisionar os retirantes — dessa vez em larga escala e com o apoio do governo de Getúlio Vargas, que financiou a construção por meio da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS).
Foram erguidos sete novos campos de concentração nas cidades de Fortaleza, Senador Pompeu, Crato, Quixeramobim, Cariús, Quixadá e Ipu. Os campos eram estrategicamente erguidos próximos às linhas férreas, para interceptar os retirantes antes que chegassem a Fortaleza.
Oficialmente, 90 mil flagelados foram aprisionados nessas instalações, mas muitos historiadores acreditam que a cifra verdadeira pode ser bem maior. Em um discurso relacionando as ações de seu governo para atenuar o flagelo da seca, Vargas chegou a dizer que os campos de concentração do Ceará abrigaram “mais de um milhão de pessoas”.
Os campos eram oficiosamente chamados de “currais”, explicitando a intenção desumanizadora da iniciativa. Os retirantes eram literalmente tratados como animais, que deveriam ser mantidos confinados para não incomodar os ricos com sua “miséria, sujidade e caos”.
Para atrair os sertanejos, as autoridades os ludibriavam com promessa de trabalho — principalmente para a Companhia Inglesa Norton Griffiths, que então construía uma barragem no estado. Outros tantos eram conduzidos à força.
A vida nos “currais”
Após adentrarem as instalações, os prisioneiros eram obrigados a raspar os cabelos e a usar vestes feitas com sacos de farinha. Alimentavam-se de punhados de comida oferecidos uma única vez por dia, através de uma janela de um prédio administrativo. Só podiam sair do campo para trabalhar como escravos na construção de ferrovias, ruas e açudes.
Os campos consistiam em um amontoado de barracas pequenas e insalubres, circundadas por cercas com arame farpado, sob vigilância constante. Quase não havia água e a as condições sanitárias eram péssimas. Os cativos que se rebelassem eram espancados, torturados e, não raramente, assassinados.
Milhares de internos faleceram de inanição, insolação, maus-tratos e doenças como tifo e sarampo. As taxas de letalidade eram muito elevadas. No campo de concentração de Patu, localizado em Senador Pompeu, estima-se que 12.000 dos 20.000 prisioneiros pereceram.
O número exato de mortos é desconhecido, uma vez que os campos não emitiam certidões de óbito. Os corpos eram enterrados em valas coletivas ou abandonados junto aos leitos ferroviários.
Os “currais da seca” do Ceará seguiram em operação até o fim da estiagem, em 1933. Muitos dos sobreviventes foram enviados em seguida para o trabalho forçado nos seringais da Amazônia.
O apagamento histórico
O conhecimento público dos horrores cometidos pelos nazistas após o fim da Segunda Guerra Mundial constrangeria os defensores de programas eugênicos e do encarceramento em campos de concentração, desencorajando a construção de novas instalações do tipo no Ceará.
Nas décadas seguintes, o poder público trataria de apagar os vestígios dos “currais”, mantendo-os ausentes dos livros didáticos e das iniciativas de valorização da memória.
No Sertão cearense, a cidade de Senador Pompeu abriga as ruínas do único campo de concentração que não foi demolido — o Campo de Patu, tombado pelo patrimônio histórico estadual. São doze construções em estilo neocolonial, onde funcionaram os edifícios administrativos, os galpões e armazéns.
A população da cidade se empenha em manter viva a memória dos horrores praticados no local. Desde 1982, a comunidade organiza a Caminhada da Seca, para relembrar e homenagear os que pereceram no cativeiro.
A marcha percorre quatro quilômetros, do centro da cidade até o Cemitério da Barragem, construído em torno das valas comuns onde mais de mil pessoas foram enterradas.
Nesse local, junto a uma grande cruz, os populares deixam dezenas de garrafas de água como oferendas às almas das vítimas da seca, da negligência e da perversidade das elites.
