Há 155 anos, em 16 de agosto de 1869, o Exército brasileiro protagonizava um dos episódios mais deploráveis da Guerra do Paraguai: o extermínio de mais de 3.300 crianças paraguaias, forçadas a se alistarem como soldados durante a Batalha de Acosta Ñu (ou Batalha de Campo Grande).
O conflito foi uma das batalhas derradeiras da Guerra do Paraguai, que já estava com seu desfecho definido. A data da batalha, 16 de agosto, marca o Dia das Crianças no Paraguai, como homenagem às vítimas do massacre.
De 1864 a 1870, a Guerra do Paraguai foi o maior e mais devastador conflito armado já ocorrido no continente americano. A guerra se originou do choque de interesses políticos e econômicos das nações do Cone Sul. A concorrência do Brasil e Argentina pela supremacia política sul-americana, as disputas territoriais e tentativas de assegurar o domínio sobre a navegação e as rotas comerciais da Bacia da Prata já haviam causado uma série de atritos na região — as muitas campanhas da chamada “Questão do Prata”. A situação se agravaria na década de 1860, com a emergência do conflito civil entre as facções políticas do Uruguai e a política expansionista adotada pelo governo paraguaio.
O estopim do conflito foi a intervenção brasileira no Uruguai. Desde 1863, o Brasil fornecia apoio político e militar à rebelião comandada por Venancio Flores e pelo Partido Colorado contra os governos de Bernardo Berro e de seu sucessor, Atanasio Aguirre — ambos do Partido Blanco. O apoio brasileiro aos rebeldes uruguaios incomodou Solano López, presidente do Paraguai e principal aliado dos Blancos.
Diante do acirramento do conflito, López advertiu que uma invasão brasileira ao Uruguai seria considerada um ataque ao próprio Paraguai. Ignorando o ultimato, o governo brasileiro despachou tropas para o Uruguai em agosto de 1864, a fim de depor Aguirre. Em represália, o mandatário paraguaio ordenou a apreensão do navio brasileiro “Marquês de Olinda”, que navegava pelo Rio Paraguai rumo ao Mato Grosso, transportando o presidente da província, Frederico Carneiro de Campos.
Em dezembro de 1864, as tropas paraguaias invadiram o Mato Grosso, dando início à guerra. Seguiram-se novas incursões das tropas de Solano López contra o território argentino (invasão da província de Corrientes) e a tentativa de ocupar o Rio Grande do Sul. Respondendo à ofensiva paraguaia, Brasil, Argentina e o governo colorado do Uruguai firmaram o Tratado da Tríplice Aliança em maio de 1865.
Numericamente superiores e mais bem organizadas, as forças de Solano López conseguiram impor avanços nos primeiros meses do conflito, mas o cenário logo seria alterado com a reorganização das tropas aliadas. Em junho de 1865, a esquadra paraguaia foi derrotada na Batalha Naval do Riachuelo. O combate teve um peso significativo para alterar os rumos da guerra, dando aos aliados o controle dos rios da Bacia do Prata. Seguiu-se uma potente campanha aliada, com vitórias estratégicas nas batalhas de Passo da Pátria, Estero Bellaco, Tuiuti e Curuzu.
Em outubro de 1866, Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, assumiu o comando das forças aliadas, substituindo o presidente argentino Bartolomé Mitre. Caxias reestruturou e reequipou o Exército brasileiro e liderou o bem sucedido cerco a Fortaleza de Humaitá — sustentáculo do sistema defensivo paraguaio. As tropas brasileiras avançaram então rumo ao sul do país, dizimando as unidades militares paraguaias durante as batalhas da Dezembrada (Itororó, Avaí, Lomas Valentinas e Angostura).
Por fim, em janeiro de 1869, as tropas aliadas tomaram a capital paraguaia, Assunção. Solano López foi intimado a se render, mas conseguiu fugir, refugiando-se na Cordilheira dos Altos.
A essa altura, o desfecho da guerra já estava selado. O Exército paraguaio havia sido dizimado, a capital fora capturada e o país estava em ruínas. Boa parte do comando militar aliado considerava que a guerra estava concluída — a começar pelo comandante das tropas, Duque de Caxias, que não via sentido em prolongar o conflito. “Quanto tempo, quantos homens, quantas vidas e recursos precisaremos empunhar para terminar a guerra, para converter em fumaça e pó toda a população paraguaia, para matar os fetos nos ventres das mulheres?”, questionou o militar em uma carta endereçada ao imperador dom Pedro II.
Essa não era, entretanto, a avaliação do monarca brasileiro. Pedro II insistia que a guerra deveria continuar até que Solano López se rendesse ou fosse capturado.
Gostou do conteúdo? Acesse o link e leia mais da Pensar a História.
Alegando razões de saúde, Caxias deixou o teatro de operações e retornou ao Brasil. Pedro II nomeou então o seu genro, Gastão de Orléans, o Conde d’Eu, como comandante das tropas aliadas. A escolha teria um custo doloroso para os paraguaios. Conde d’Eu ajudou a transformar um conflito que já estava vencido em uma guerra suja, conduzindo algumas das ações mais sádicas registradas na Guerra do Paraguai durante a caçada a López.
A perversidade do comandante brasileiro se somou à insensatez do presidente paraguaio, resultando em uma das batalhas mais atrozes da história militar. Sem homens para mandar para o campo de batalha e disposto a sacrificar seu próprio povo para cumprir a promessa de “morrer lutando pela Pátria”, Solano López começou a recrutar idosos, mulheres, adolescentes e crianças para o Exército paraguaio. Os registros históricos mostram meninos de nove, 10, 11 anos de idade sendo enviados para a linha de frente. López chegou a ordenar a suspensão das aulas para que as crianças pudessem ser enviadas para a guerra.
Em meados de 1869, Conde d’Eu retomou a campanha militar no Paraguai, comandando uma tropa de 22 mil soldados (sendo cerca de 20 mil brasileiros, mil argentinos e mil uruguaios) durante uma expedição à Cordilheira dos Altos. Em 12 de agosto, as tropas aliadas chegaram a Piribebuy — localidade que estava servindo como capital provisória do Paraguai desde a queda de Assunção.
O comando aliado intimou a rendição da cidade, mas o líder da guarnição paraguaia, Pedro Pablo Caballero, rejeitou a ordem. Seguiu-se um confronto desigual, opondo 20 mil soldados aliados a 1.600 combatentes paraguaios, incluindo um grande número de crianças. Os paraguaios foram derrotados após cinco horas de batalha.
Tomada a cidade, os aliados cometeram diversos atos de violência contra os militares e os civis. Conde d’Eu ordenou a execução dos prisioneiros de guerra — incluindo Pedro Pablo Caballero, que foi degolado na frente de sua esposa. O comandante brasileiro também teria ordenado que o hospital da cidade fosse incendiado, o que resultou na morte de centenas de pacientes que estavam dentro do prédio.
Uma barbárie ainda pior ocorreria quatro dias depois, quando as tropas aliadas chegaram a Caacupé. Conde d’Eu acreditava que Solano López estava escondido na cidade, mas o líder paraguaio já havia se retirado para Caraguatay alguns dias antes. Visando impedir que os soldados paraguaios fossem ao encontro de López, Conde d’Eu enviou uma divisão da cavalaria brasileira para interceptá-los na passagem de Campo Grande, nos arredores da atual cidade de Eusebio Ayala.
As tropas brasileiras e paraguaias se encontraram na manhã de 16 de agosto de 1869, dando início à Batalha de Acosta Ñu. Mais uma vez, a desproporção de forças era evidente. Comandadas por Bernardino Caballero, as tropas paraguaias somavam 3,8 mil combatentes — a grande maioria dos quais eram crianças portando armas obsoletas e de curto alcance. Do lado dos aliados, mais de 20 mil soldados, adultos e bem armados, portando modernos rifles Spencer.
Seguiu-se um verdadeiro massacre, que se estendeu por oito horas. Sem conseguir oferecer resistência, as tropas paraguaias tentaram recuar até a margem oposta do Rio Juquerí, mas foram alvejadas pelo fogo cerrado da artilharia aliada. Os soldados brasileiros atravessaram o rio e deram continuidade ao ataque devastador — na prática, um cruel infanticídio.
Muitos soldados paraguaios eram tão jovens e estavam tão debilitados que mal conseguiam empunhar as armas. No livro Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai”, o jornalista brasileiro Júlio José Chiavenato detalhou a barbárie de Acosta Ñu: “as crianças de seis a oito anos, no calor da batalha, aterrorizadas, se agarravam às pernas dos soldados brasileiros, chorando, pedindo para que não os matassem. Eram degoladas no ato”.
Os relatos da obra de Chiavenato seriam posteriormente contestados, mas a documentação historiográfica coeva confirma que os soldados aliados, de fato, travaram uma batalha contra crianças. Participante da batalha, o general brasileiro Dionísio Cerqueira registrou suas impressões: “o campo ficou repleto de mortos e feridos do lado inimigo, entre os quais nos causava muita pena, pelo número elevado, os soldadinhos, cobertos de sangue, com as perninhas quebradas. Alguns nem sequer haviam atingido a puberdade”.
Mais de 3.300 crianças e adolescentes paraguaios foram mortos durante a Batalha de Acosta Ñu. Do lado brasileiro, 50 soldados perderam a vida. A disparidade dos números reforça o argumento de que a batalha foi, na verdade, um massacre hediondo.
Acosta Ñu foi a última grande batalha da Guerra do Paraguai. O conflito seria encerrado sete meses depois, em março de 1870, com a morte de Solano López na Batalha de Cerro Corá.
A guerra arrasou o Paraguai. Estima-se que o conflito tenha matado entre 50% e 70% da população do país — incluindo 90% da população masculina. O Paraguai ficou sob ocupação militar estrangeira por uma década e sofreu o desmembramento de quase 40% de seu território. O processo de desenvolvimento autônomo que marcou a trajetória paraguaia em meados do século 19 foi bruscamente interrompido e substituído por um longo período de crise econômica e estagnação, levando o país a se tornar um dos mais pobres do continente.
Desde 1948, o aniversário da Batalha de Acosta Ñu, 16 de agosto, é celebrado no Paraguai como “Dia das Crianças”. A data é um feriado nacional em memória dos jovens soldados assassinados pelas forças aliadas — e o episódio segue até hoje como um dos elementos mais utilizados para fomentar o sentimento nacionalista paraguaio.
Em 2019, por ocasião do 150º aniversário da batalha, o governo paraguaio inaugurou o Monumento às Crianças Mártires de Acosta Ñu, erguido próximo ao campo da batalha, na cidade de Eusebio Ayala.