Há 144 anos, em 24 de junho de 1880, nascia o marinheiro João Cândido, o “Almirante Negro”. João Cândido foi o líder da Revolta da Chibata — uma insurreição contra os castigos físicos, soldos miseráveis e maus-tratos impostos aos marinheiros negros.
João Cândido nasceu na Fazenda Coxilha Bonita, na cidade gaúcha de Encruzilhada do Sul, filho de pais escravizados. Ingressou na Marinha de Guerra aos 13 anos de idade como grumete e cursou a Escola de Aprendizes de Porto Alegre. Em 1895, foi transferido para o Rio de Janeiro, onde se destacou como marinheiro.
Elogiado por sua habilidade como timoneiro, viajou pela América, África e Europa. Também tomou parte da expedição de 1903, que disputou com a Bolívia a posse do território do Acre. Em 1909, João Cândido integrou um grupo de marinheiros enviados para o Reino Unido para aprender a operar os navios de guerra brasileiros que estavam sendo construídos nos estaleiros britânicos — os encouraçados Minas Gerais e São Paulo e o cruzador Bahia. Durante a estadia no Reino Unido, tomou conhecimento sobre a revolta dos marinheiros russos, ocorrida em meio à Revolução de 1905, e sobre o motim dos tripulantes do Encouraçado Potemkin.
Ao longo de sua estadia na Europa, João Cândido observou as diferenças entre o oficialato britânico e o brasileiro no trato com os subordinados. Último país das Américas a abolir a escravidão, o Brasil mantinha valores escravocratas fortemente arraigados em todas as instituições — sobretudo nos ramos militares, que foram reforçados como instrumentos de controle social após a abolição. A Marinha do Brasil se tornara uma espécie de “reformatório” para jovens negros, retirados da sociedade por serem vistos como “suscetíveis à criminalidade” e treinados sob uma lógica de obediência irrestrita à hierarquia e de valorização da ordem e da disciplina — ao mesmo tempo em que eram integrados ao aparato bélico-repressivo a serviço da burguesia brasileira.
A estrutura organizacional da Marinha, por sua vez, refletia a segregação racial da sociedade escravagista. Enquanto a tripulação era composta quase exclusivamente por jovens negros e pobres, os oficiais encarregados dos navios eram todos brancos e provenientes da classe média e da pequena burguesia. Essa estrutura evocava a dinâmica repressiva da escravidão, resultando em um sistema autoritário e racista, onde os marinheiros eram, na prática, tratados como os escravizados — e, a exemplo dos cativos, frequentemente punidos com chibatadas.
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O uso da chibata como castigo corporal na Marinha do Brasil havia sido oficialmente abolido logo após a queda da Monarquia, com a promulgação do Decreto Nº. 3, assinado pelo Marechal Deodoro em 1889. Os oficiais da Marinha de Guerra, entretanto, seguiam aplicando o cruel castigo à revelia da lei. Mesmo quando denunciadas na imprensa, as chibatadas eram solenemente ignoradas, pois a sociedade brasileira, habituada às cenas de negros sendo açoitados por brancos, não via motivos para se incomodar. Além de terem seus corpos retalhados com chibatadas, os marinheiros brasileiros eram submetidos a outras punições degradantes e diversas formas de humilhação.
Soldos miseráveis, comida de má qualidade e jornadas desumanas completavam o quadro de abusos que causaram na categoria uma insatisfação generalizada no começo do século 20. Assim, os marinheiros se organizaram politicamente para reivindicar melhorias nas condições de trabalho, elegendo João Cândido para liderar as ações. Foram realizadas diversas tentativas pacíficas de apelar ao bom senso das autoridades em prol de mudanças — todas em vão. Os marinheiros decidiram, então, partir para uma mobilização mais radical, organizando um levante.
O motim estava programado para ocorrer em 25 de novembro de 1910, mas a punição de Marcelino Rodrigues de Menezes com 250 chibatadas provocou a ira dos marinheiros, que decidiram antecipar a rebelião. Em 22 de novembro, os marujos se armaram e tomaram de assalto o encouraçado Minas Gerais. O capitão do navio, João Batista das Neves, reagiu violentamente, chegando a ferir um dos revoltosos enquanto ordenava aos berros que os marinheiros se entregassem. Os sublevados reagiram. Seguiu-se um tumulto que resultou na morte de quatro oficiais e quatro marinheiros.
Sob a liderança de João Cândido e gritos de “abaixo a chibata”, 2.379 marinheiros aderiram ao levante, assumindo o controle de seis embarcações, incluindo quatros navios de guerra ancorados na Baía de Guanabara — Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro. Os marinheiros içaram bandeiras vermelhas indicando a insurreição e apontaram 80 canhões para a cidade do Rio de Janeiro, ameaçando bombardear a capital federal caso suas reivindicações não fossem atendidas.
Os revoltosos exigiam o fim dos castigos físicos, soldos dignos e anistia aos sublevados. Como prova de que não estavam blefando, os marinheiros chegaram a disparar um tiro de advertência, alarmando as autoridades.
A revolta se estendeu por cinco dias, até que o marechal Hermes da Fonseca, recém-empossado presidente da República, concordou em cumprir as condições, encerrando o levante em 27 de novembro. Não obstante, já no dia seguinte, o governo promulgou um decreto que autorizava a expulsão e punição dos marinheiros sublevados, rompendo o acordo sobre a anistia. Dos mais de 2.300 marinheiros que participaram da revolta, 1.216 foram expulsos, 600 foram presos e outros 105 foram condenados a trabalhos forçados nos seringais da Amazônia — dos quais 14 foram fuzilados durante a viagem. João Cândido foi preso e enviado para a Fortaleza da Ilha das Cobras, onde foi encarcerado em um calabouço com outros 17 marujos.
Durante a prisão, os marinheiros foram torturados, privados de água e comida e embebidos em ácido fênico. Dos 17 detidos, apenas João Cândido e João Avelino Lira sobreviveram. Após sair da Ilha das Cobras, João Cândido foi internado no Hospital Nacional dos Alienados, sob a alegação de que era insano. Ficou meses trancafiado no manicômio até que o diretor da instituição, Juliano Moreira, se convencesse de que o marinheiro não era louco.
Liberado do sanatório, foi enviado para uma prisão comum, onde sofreu uma tentativa de assassinato. Após quase dois anos detido, foi a julgamento. Sua defesa ficou a cargo do jurista Evaristo de Moraes, contratado pela Ordem de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. João Cândido foi absolvido pela Justiça, mas terminou banido pela Marinha. Desempregado, estigmatizado como criminoso e submetido a sérias privações, João Cândido passou a viver precariamente, trabalhando como estivador e vendedor de peixes na Praça XV. Profundamente deprimido após o suicídio de sua segunda esposa, João Cândido ainda teve de lidar com uma nova prisão em 1930, sob acusação de subversão.
Nas décadas seguintes, manteve uma postura política contraditória. Seduzido pela retórica antissistema e pelo pseudo-radicalismo reacionário, aderiu em 1933 à Ação Integralista Brasileira (AIB), travando amizade com Plínio Salgado e chegando a ocupar o posto de líder do Núcleo Integralista de Gamboa. Em contraste, simpatizou com o ideário nacional-desenvolvimentista no período pós-Vargas, chegando a tomar parte junto com Leonel Brizola da chamada “Revolta dos Marinheiros” — motim que reuniu mais de 2.000 militares de baixa patente em favor das reformas de base de João Goulart. O evento seria uma das justificativas utilizadas para embasar o golpe de Estado perpetrado alguns dias depois, em 1º de abril de 1964.
Embora tenha sido discriminado e perseguido pela Marinha até o fim da vida, João Cândido sempre manteve uma visão positiva da instituição, motivo pelo qual, em mais uma reviravolta ideológica, passaria a enxergar méritos no discurso moralizante do regime militar. João Cândido viveu até os 89 anos, falecendo no Rio de Janeiro em 6 de dezembro de 1969.
Em 1974, João Cândido foi homenageado com o samba “O Mestre-Sala dos mares”, composto por João Bosco e Aldir Blanc e eternizado na voz de Elis Regina. A canção foi censurada pela ditadura militar, obrigando os compositores a alterarem diversos trechos para que a música fosse liberada. O marinheiro também foi tema dos sambas-enredos “Um Herói, Uma Canção”, entoado pela União da Ilha em 1985, e “Glória ao Almirante Negro”, apresentado pela Paraíso do Tuiuti em 2024. Em 2008, foi homenageado com um monumento erguido na Praça XV e obteve anistia política póstuma com o projeto de lei 11.756, sancionado por Lula.
A inscrição do nome de João Cândido no Livro de Aço dos Heróis da Pátria é pleiteada desde 2005, mas segue até hoje pendente por pressão da Marinha. Um projeto elaborado pelo deputado federal Lindbergh Farias visando transformar João Cândido em herói nacional foi aprovado no Senado Federal e aguarda análise da Câmara dos Deputados. O projeto foi atacado pelo comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, que se referiu aos militares sublevados da Revolta da Chibata como “abjetos marinheiros”.