Segunda-feira, 9 de junho de 2025
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Há 95 anos, em 22 de maio de 1930, nascia Harvey Milk. Ele foi o primeiro homem abertamente gay a ser eleito para um cargo político de destaque nos Estados Unidos.

Em uma era marcada por repressão, conservadorismo, preconceito e silenciamento dos comportamentos não normativos, Milk ascendeu como uma das vozes mais ativas na luta pelos direitos da comunidade LGBT.

Na Câmara de Supervisores de São Francisco, ele se destacou pela defesa dos direitos da classe trabalhadora e foi um firme combatente das políticas discriminatórias. Milk foi também o grande responsável por derrotar a Iniciativa Briggs, que visava impedir professores homossexuais de lecionarem nas escolas públicas.

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Sua trajetória o consolidou como um expoente da luta pela igualdade, mas também o transformou em um alvo dos conservadores. Em 1978, Harvey Milk foi assassinado. A leniência da justiça em relação ao seu assassino revoltaria a comunidade LGBT, dando início a uma onda de protestos em São Francisco.

Primeiros anos

Harvey Bernard Milk nasceu em Woodmere, Nova York, em uma família de imigrantes judeus lituanos. Era filho do comerciante William Milk e da dona de casa Minerva Karns.

Milk descobriu-se homossexual na adolescência, mas viveu o início de sua vida romântica submetido ao silenciamento da heteronormatividade, tentando se adequar às expectativas e padrões de gênero impostos pela sociedade. Em sua juventude, desenvolveu um grande interesse pela arte, apaixonando-se pelo teatro e pela ópera.

Após cursar a Bay Shore High School, Milk se matriculou no curso de matemática da Universidade do Estado de Nova York em Albany, onde se graduou em 1951. Pouco tempo depois, ingressou na Marinha dos Estados Unidos e serviu durante a Guerra da Coreia. Ele integrou a tripulação do “USS Kittiwake”, atuando como mergulhador.

Milk foi dispensado da Marinha em 1955, quando ocupava o posto de tenente. Mais tarde, ele atribuiria sua dispensa à homofobia, citando-a como um dos primeiros grandes obstáculos provenientes da discriminação institucional. Após a carreira militar, Milk passou por diversas profissões, de professor do ensino médio a analista financeiro em Wall Street — mas não reconheceu em nenhuma delas a sua vocação.

A mudança para São Francisco

No fim dos anos 60, Milk passou um período em São Francisco, na Califórnia, acompanhando seu namorado, Jack McKinley, que atuava em uma companhia itinerante da Broadway. O relacionamento terminou logo em seguida, mas Milk se encantou pela atmosfera libertária da cidade.

Em 1972, Milk se mudou definitivamente para São Francisco com seu novo parceiro, Scott Smith. Eles se estabeleceram no bairro de Castro, que à época despontava como um refúgio para gays e lésbicas — atraídos pelo ambiente progressista e pela possibilidade de viver com liberdade em uma era de repressão.

Carismáticos e extrovertidos, Milk e Smith se integraram rapidamente à comunidade, fazendo muitos amigos. O casal abriu a Castro Camera — uma pequena loja de equipamentos fotográficos, que logo se converteria em uma espécie de centro comunitário do bairro. Moradores, artistas e ativistas frequentavam o local para discutir sobre política, discriminação e os desafios enfrentados pela comunidade.

Embora fosse um vibrante reduto LGBT, Castro também era um campo de batalha. A polícia frequentemente realizava batidas em bares gays e os moradores do bairro eram submetidos a agressões e comportamentos discriminatórios. A prefeitura de São Francisco havia iniciado uma “ofensiva contra a imoralidade”, que resultou na prisão de quase 3.000 homossexuais apenas em 1971.

Indignado com a injustiça enfrentada por seus vizinhos e amigos, Milk desenvolveu uma postura cada vez mais crítica. Mergulhando no ativismo político, ele se dedicou a organizar politicamente sua comunidade, ao mesmo tempo em que iniciava o diálogo com as associações de trabalhadores e grupos marginalizados.

Convencido de que a mudança só poderia ser concretizada através da participação política e da presença das minorias nos órgãos deliberativos, Milk decidiu se tornar um representante da comunidade LGBT na política institucional.

Harvey Milk foi o primeiro homem abertamente gay a ser eleito para um cargo político de destaque nos Estados Unidos
Wikimedia Commons/SJPL California Room Collections

A carreira política

Já filiado ao Partido Democrata, Milk se candidataria repetidas vezes ao longo dos anos 70. Sua primeira candidatura ocorreu em 1973, quando ele concorreu a um assento na Câmara de Supervisores de São Francisco (equivalente ao cargo de vereador no Brasil). Milk voltou a se candidatar a supervisor em 1975. No ano seguinte, concorreu a uma vaga na Assembleia Estadual da Califórnia.

Embora não tenham sido bem-sucedidas, as campanhas o consolidaram como uma liderança genuinamente popular. Milk não enxergava a política como uma arena para acordos palacianos e mediações higienizadas entre engravatados. Ele era um homem das ruas, dos encontros e dos discursos improvisados.

Sua campanha foi centrada no bairro de Castro, mas Milk não dialogava apenas com a comunidade LGBT. Ele entendia que a luta pela emancipação de gays e lésbicas estava interligada à luta por justiça social e buscava angariar o apoio dos negros, latinos, imigrantes e trabalhadores em geral. Sua base de apoiadores reunia de sindicalistas a drag queens — uma “constelação de indesejáveis” à luz da ordem dominante.

Milk estabeleceu uma aliança particularmente forte com os sindicatos de São Francisco e mobilizou a comunidade LGBT de Castro no apoio às mobilizações trabalhistas. Sua atividade política era tão intensa que lhe valeu o epíteto de “Prefeito da Rua Castro”.

Quando o sindicato dos caminhoneiros organizou uma greve contra a cervejaria Coors, que se recusava a referendar um acordo coletivo, Milk propôs uma troca. Ele organizaria um boicote contra a marca nos bares gays da cidade e, em contrapartida, a entidade incentivaria a contratação de mais trabalhadores homossexuais.

A fim de combater o boicote dos comerciantes que tentavam impedir a concessão de licenças para empreendedores gays, Milk também fundaria a Associação da Vila Castro, que reunia empresários gays e lésbicas de São Francisco.

Mandato como supervisor

Em 1977, uma mudança no sistema eleitoral possibilitou que os supervisores passassem a ser escolhidos por distrito, o que ampliava as chances das lideranças regionais.

Concorrendo novamente, Milk recebeu a maioria dos votos no distrito do Castro, assegurando uma vaga na Câmara dos Supervisores. Tornou-se, assim, o primeiro homem abertamente gay a ser eleito para um cargo público de destaque nos Estados Unidos.

A eleição de Milk foi um marco. Não apenas pelo fato de se tratar de um homem gay em um cargo eletivo, mas sobretudo pelas bandeiras avançadas que estavam atreladas à sua plataforma, inteiramente voltada à defesa dos interesses da classe trabalhadora.

Milk propôs melhorias no transporte público, a expansão das redes de creches e escolas e medidas de apoio aos pequenos empreendedores. Também apresentou projetos para combater o aumento do custo de vida e para proteger os inquilinos de despejos e de cláusulas abusivas. Foi igualmente um importante aliado da luta antirracista, denunciando a segregação e a discriminação institucional no governo norte-americano.

Sua postura política antecipava os princípios do que hoje chamamos de “luta interseccional”. Nas palavras de Milk: “Sem esperança, os gays, os negros, os idosos, os deficientes, os ‘nós’, não temos o poder. E sem poder, não há justiça.”

Um dos maiores feitos de Milk foi a aprovação da Ordenança de Direitos Gays de São Francisco, uma legislação pioneira que proibia a discriminação com base em orientação sexual em empregos, moradia e acomodações públicas. A ordenança, aprovada por 10 votos a 1, foi um marco na história dos direitos civis e serviu de modelo para outras cidades.

A Iniciativa Briggs

Em 1978, a Califórnia foi palco de uma das mais agressivas tentativas de exclusão da população LGBT da esfera pública: a Proposição 6, também conhecida como Iniciativa Briggs. A proposta visava demitir professores e funcionários homossexuais e até mesmo apoiadores das causas LGBT de todas as escolas públicas, sob o pretexto de “proteger as crianças da influência homossexual”.

O principal articulador da medida foi John Briggs, um parlamentar republicano, católico fervoroso, conhecido por sua postura moralista. Ele buscava alimentar a onda de pânico moral e conservadorismo que crescia no país, juntando-se a figuras como Anita Bryant, Jerry Falwell e Ronald Reagan.

Era a época do “giro neoconservador” nos Estados Unidos — uma reação aos avanços conquistados após a revolução sexual e articulação dos movimentos de defesa das minorias, caracterizado pelo discurso da moral tradicionalista, ênfase no patriotismo bélico e exaltação das famílias cristãs brancas como modelos de cidadania.

A proposta obteve respaldo inicial até mesmo em setores progressistas. Harvey Milk se destacaria como principal opositor da iniciativa. Ele atuou incansavelmente contra a proposição, viajando por toda a Califórnia para organizar comícios e manifestações. Participou de debates televisionados, buscou o diálogo com educadores e igrejas e mobilizou voluntários para atuar em frentes de conscientização.

Em meio aos debates sobre a proposição, Harvey proferiu um de seus discursos mais emblemáticos, onde declarava: “Os direitos civis não são negociáveis. Quando dizem que devemos ser discretos, estão dizendo que devemos nos envergonhar. E nós não temos vergonha de quem somos.”

Em novembro de 1978, a proposta foi derrotada por uma margem significativa. A vitória se tornou um símbolo da ascensão política da comunidade LGBT, comprovando que, quando organizadas, as minorias podem confrontar a máquina conservadora e vencer.

Milk liderou a resistência com brilho. Em um tempo em que o moralismo da sociedade condenava muitos aos armários, ele promovia a autoaceitação e o orgulho: “Saiam [dos armários]! Saiam para seus amigos, seus vizinhos, seus colegas de trabalho! Porque se eles souberem de vocês, eles não votarão contra nós.”

O assassinato de Harvey Milk

Em 27 de novembro de 1978, menos de um ano após sua eleição histórica, Harvey Milk foi assassinado a tiros na prefeitura de São Francisco, junto com o então prefeito George Moscone.

O autor do crime foi Dan White, um ex-supervisor do Conselho de São Francisco. White havia renunciado ao seu cargo de supervisor alguns dias antes, insatisfeito com as pressões políticas e sociais. Pouco depois, tentou voltar atrás e pediu a Moscone que o reempossasse. O prefeito, influenciado por Milk e outros representantes progressistas, recusou o pedido.

Inconformado, White entrou sorrateiramente pela janela dos fundos da prefeitura com uma arma escondida, contornando os detectores de metal, e assassinou George Moscone com quatro tiros.

Logo em seguida, White foi até o gabinete de Harvey Milk e atirou cinco vezes contra ele. O tiro fatal foi direcionado contra a cabeça do parlamentar, à queima-roupa. Milk tinha apenas 48 anos. Ele já havia expressado que poderia ser morto por sua visibilidade e ativismo: “Se uma bala atravessar meu cérebro, que essa bala destrua todas as portas do armário”, afirmou.

O julgamento do assassino foi um escândalo de leniência. A defesa de Dan White alegou que ele sofria de “depressão profunda” e que sua saúde mental havia sido prejudicada por uma dieta rica em “junk food”, especialmente Twinkies, um bolinho industrializado. Essa estratégia absurda, conhecida como “Twinkie Defense”, ajudou a construir a imagem de um homem “perturbado”, e não de um criminoso político movido pelo ódio.

O júri, composto majoritariamente por pessoas brancas e conservadoras, condenou Dan White apenas por homicídio culposo, resultando em uma sentença de 7 anos e 8 meses. Ele cumpriria apenas 5 anos.

A decisão gerou revolta nacional e levou a uma onda de protestos intensos nas ruas de São Francisco, em 21 de maio de 1979, data que marcaria o aniversário de Milk. A comunidade LGBT e seus aliados denunciaram a conivência do sistema jurídico com o preconceito, a impunidade e a repressão.

Décadas após seu assassinato, Harvey Milk continua sendo rememorado e homenageado por sua contribuição para a emancipação da comunidade LGBT. Não obstante, a exemplo do que ocorre com muitos outros personagens revolucionários, sua imagem é cada vez mais submetida a uma “profilaxia ideológica”, afastando-o de sua radicalidade para retratá-lo como um mártir domesticado, em conformidade com a hegemonia do pensamento liberal.

É necessário resgatar Milk como ele sempre foi: um militante queer, crítico da injustiça social, que compreendia a luta da comunidade LGBT como parte da luta pela emancipação de todos os povos oprimidos.

A história de Harvey Milk nos ensina que a esperança não é um sentimento passivo. É uma decisão política, um ato de continuar resistindo e reagindo às forças que tentam impor o silêncio. Sua vida e sua morte são lembretes de que os direitos conquistados foram regados com sangue e luta e que qualquer recuo custa vidas. Pois, como disse Milk, “a esperança nunca é silenciosa”.