Há 54 anos, em 20 de janeiro de 1971, o engenheiro Rubens Paiva era preso por agentes da ditadura militar brasileira. Deputado federal pelo PTB, Rubens se destacou como um dos parlamentares mais engajados na defesa do governo de João Goulart e na luta contra a ditadura militar. Levado a um centro de operações do DOI-CODI, ele foi espancado e torturado até a morte. Sua viúva, Eunice Paiva, encabeçou uma longa luta em prol da responsabilização do Estado por seu desaparecimento.
A juventude de Rubens Paiva
Rubens Beyrodt Paiva nasceu em Santos, no litoral paulista, em 26 de dezembro de 1929. Era filho de Araci Beyrodt e Jaime Almeida Paiva. Seu pai, advogado de formação, era proprietário de uma grande fazenda no Vale do Ribeira e futuro prefeito da cidade de Eldorado Paulista. Após residir por um breve período em São Vicente, Rubens se mudou para a capital paulista, onde estudou em escolas tradicionais, como o Colégio Arquidiocesano e o Colégio São Bento. Foi aluno do socialista Cid Franco, experiência que possivelmente influenciou sua visão política.
Em 1950, Rubens ingressou no curso de engenharia civil da Universidade Mackenzie. Lá, ele iniciaria o namoro com a estudante de letras Eunice, sua futura esposa e mãe de seus cinco filhos — Vera, Eliana, Ana Lúcia, Marcelo Rubens e Maria Beatriz.
Foi durante a graduação que Rubens iniciou sua militância política, participando ativamente do movimento estudantil. O período foi marcado pela crescente disputa entre “getulistas” (partidários do projeto nacional-desenvolvimentista) e os “udenistas” (defensores do retorno ao programa econômico liberal). Rubens se perfilava entre os desenvolvimentistas, apoiando as medidas de modernização da estrutura produtiva e iniciativas nacionalistas como a campanha “O petróleo é nosso”.
Do PSB ao PTB
Rubens ocupou o cargo de presidente do Centro Acadêmico Horácio Lane. Ele também foi eleito vice-presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE), onde conviveu com personalidades como Fernando Gasparian, Fernando Henrique Cardoso e José Gregório. Nesse mesmo período, Rubens se filiou ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) — legenda que pretendia se firmar como uma alternativa aos comunistas (PCB) e aos trabalhistas (PTB), sustentando um programa que aliava a busca por transformações sociais à defesa das liberdades civis e políticas.
As divisões internas e contradições do PSB, entretanto, logo afastariam Rubens das atividades partidárias. Na eleição presidencial de 1955, o jovem criticou a decisão do partido de respaldar a candidatura de Juarez Távora, preferindo apoiar Juscelino Kubitschek, herdeiro da tradição desenvolvimentista. Ao lado de Fernando Gasparian e Marcos Pereira, Rubens retomaria a publicação do “Jornal de Debates”, semanário nacionalista que daria apoio a Juscelino. Também em 1955, Rubens criou sua própria empresa de construção civil, a Paiva Construtora.
O cenário de turbulência que se arrastava no Brasil desde os anos 50 se converteu em uma crise política em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros à presidência. A cúpula militar tentou impedir a posse do vice-presidente, João Goulart, considerado muito próximo da esquerda nacionalista, mas foi confrontada pela Campanha da Legalidade —mobilização anti-golpista liderada por Leonel Brizola.
Trajetória parlamentar e CPI do IBAD
Ciente de que Goulart seguiria como alvo dos setores golpistas e decidido a contribuir com a defesa de seu mandato, Rubens se desligou do PSB e se filiou ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Na eleição de 1962, Rubens se lançou como candidato a deputado federal por São Paulo. Para financiar a campanha, investiu quase toda a poupança da família. Conseguiu se eleger, amealhando mais de 13 mil votos.
Na Câmara dos Deputados, Rubens Paiva integrou a bancada nacionalista e se firmou como um dos parlamentares mais ativos na defesa da legalidade e do mandato de Goulart. Ele se tornou um dos vice-líderes do PTB no plenário e se dedicou à articulação política. O trabalhista se engajou na campanha em defesa do Plano Trienal e das Reformas de Base, apoiou a proposta de nacionalização de setores estratégicos da economia e a limitação da remessa de lucros ao exterior.
Um dos pontos altos da atuação parlamentar de Rubens foi sua participação na CPI criada para investigar o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Diretamente vinculado à CIA e mantido com recursos do governo norte-americano, o IBAD foi um dos principais núcleos da mobilização golpista contra Goulart, atuando em prol da desestabilização do país e investindo pesado em propaganda antigovernista e financiamento de candidatos oposicionistas.
Rubens ocupou o cargo de vice-presidente da CPI do IBAD, conduzindo investigações sobre a origem ilícita dos recursos da instituição. Isso fez com que o deputado angariasse inimigos poderosos e se tornasse um alvo prioritário dos golpistas. Quando Goulart foi derrubado pelo golpe militar de 1964, o nome de Rubens Paiva constava da primeira lista de parlamentares a serem cassados.

Retrato de Rubens Paiva
A resistência à ditadura
No mesmo dia em que ocorreu a quartelada, Rubens proferiu um potente discurso na Rádio Nacional, conclamando os trabalhadores e estudantes a resistirem ao golpe e lutarem pela democracia. Destituído de seu mandato parlamentar após a promulgação do Ato Institucional Nº 1, Rubens buscou refúgio na Embaixada da Iugoslávia, onde permaneceu por três meses. Em junho de 1964, após a obtenção de salvo-conduto, partiu para o exílio, a princípio na Iugoslávia e depois na França.
Rubens retornou ao Brasil em 1965. Morou por dois anos em São Paulo e depois se fixou no Rio de Janeiro. Apesar da intensificação da repressão, o ex-deputado seguiu atuando abertamente na resistência à ditadura. Rubens assumiu a direção do jornal “Última Hora” — um dos raros periódicos que se opuseram ao golpe de 1964 — e buscou articular uma frente de opositores, organizando reuniões e criando redes de troca de informações com exilados.
O ex-deputado denunciava abertamente torturas e violações de direitos humanos, escondia perseguidos políticos em sua residência (como é o caso de Helena Silveira e Conceição Losacco), fornecia recursos aos movimentos de contestação ao regime e facilitava a fuga de opositores cujas vidas estavam em risco.
Uma das pessoas que Rubens ajudou a tirar do Brasil era Helena Bocayuva, filha de seu colega de partido, o deputado Luís Fernando Bocayuva Cunha. Helena era acusada pelo regime militar de ter auxiliado no sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick — capturado em setembro de 1969 e libertado em troca da soltura de 15 presos políticos.
Rubens ajudou Helena a fugir para o Chile, país que se tornara um dos principais destinos dos exilados brasileiros. Em janeiro de 1971, uma nova leva de 70 prisioneiros políticos do Brasil desembarcou no Chile. Eles haviam sido soltos em troca da libertação do embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado pela VPR.
O grande número de exilados brasileiros no Chile levou o regime militar a reforçar a vigilância sobre os voos oriundos daquele país. Em 19 de janeiro de 1971, duas mulheres que retornavam de Santiago para o Rio de Janeiro — Cecília de Barros e Marilene Corona — foram detidas e revistadas no Aeroporto do Galeão. Elas traziam cartas dos exilados políticos endereçadas a seus parentes no Brasil.
Prisão, tortura e assassinato de Rubens Paiva
Uma das cartas transportadas por Cecília e Marilene deveria ser entregue pessoalmente. Ela fora remetida por Helena Bocayuva e estava endereçada a Rubens Paiva. O ex-deputado, entretanto, era apenas o intermediário. O envelope deveria ser entregue a Carlos Alberto Muniz, vulgo “Adriano”, militante do MR-8 e contato de Carlos Lamarca — líder da guerrilha e, à época, o homem mais procurado do Brasil.
As duas mulheres foram torturadas por agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA). Marilene foi forçada a telefonar para o número indicado na carta enviada a Rubens e a solicitar o endereço para entregar a correspondência. Os agentes acreditavam que Rubens poderia fornecer informações que levassem à captura de Lamarca.
Meia hora depois, seis agentes do CISA armados com metralhadoras invadiram a casa de Rubens Paiva. Guiando seu próprio automóvel, o ex-deputado foi conduzido a prestar depoimento no Quartel da 3ª Zona Aérea, então comandado pelo tenente-brigadeiro João Paulo Moreira Burnier. Sua esposa, Eunice, e a filha de 15 anos, Eliana, também foram presas na mesma ocasião. Eliana foi solta no dia seguinte. Eunice ficaria encarcerada e incomunicável por 12 dias.
Durante a acareação com as mulheres presas no Aeroporto do Galeão, Rubens foi violentamente espancado. Em seguida, o ex-parlamentar foi transferido para o quartel da Polícia do Exército, onde funcionava um centro de operações do DOI-CODI. Ali, Rubens passou por torturas brutais, que se estenderam por horas, até o início da madrugada. Ele chegou a ser examinado pelo médico Amílcar Lobo, que constatou a existência de hemorragia abdominal, provavelmente decorrente de ruptura hepática. O médico recomendou a transferência para um hospital, mas os militares negaram. Rubens morreu poucas horas depois, em 21 de janeiro de 1971. Ele tinha 41 anos.
A busca por justiça
Para encobrir o assassinato, os militares divulgaram uma versão farsesca, afirmando que Rubens fora sequestrado por indivíduos desconhecidos que interceptaram o carro que o conduzia. Com base nisso, Rubens foi formalmente classificado como “desaparecido”. Mesmo repleto de buracos e contradições, o relato foi difundido por quase toda a imprensa.
Eunice, a viúva de Rubens, iniciou uma longa e tortuosa jornada em busca da verdade. Ela apelou pela intervenção do Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, mas foi ignorada. Também tentou recorrer ao Superior Tribunal Militar e ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, sem sucesso. Eunice se converteu em uma figura de grande importância no movimento pela defesa dos direitos humanos e teve uma atuação fundamental para manter viva a memória de Rubens Paiva e dos outros desaparecidos políticos.
O atestado de óbito de Rubens Paiva somente foi emitido em 1996, após Fernando Henrique Cardoso sancionar a Lei dos Desaparecidos. O corpo de Rubens, entretanto, nunca foi encontrado. O relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade em 2014 apontou que o responsável pelo assassinato de Rubens Paiva foi o ex-tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho, oficial do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR).
Ainda em 2014, o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra 5 ex-militares acusados de envolvimento na morte de Rubens Paiva (José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos). A denúncia foi aceita pela Justiça Federal, mas o processo foi suspenso na última instância, após o ministro Teori Zavascki conceder uma liminar, baseando-se na jurisprudência acerca da Lei da Anistia.
A história do assassinato de Rubens e a luta de Eunice por justiça foram abordados no livro “Ainda Estou Aqui”, publicado por Marcelo Rubens Paiva, filho do casal, em 2015. O livro inspirou o filme homônimo, lançado em 2024 por Walter Salles e laureado com vários prêmios, incluindo o de Melhor Roteiro no Festival de Veneza.