Há 111 anos, em 5 de setembro de 1913, nascia Joaquim Câmara Ferreira, um dos mais importantes líderes da resistência armada contra a ditadura militar. Dirigente do Partido Comunista, Joaquim atuou ativamente na mobilização da classe operária.
Após o golpe de 1964, ele fundou a Ação Libertadora Nacional, onde assumiu o codinome “Comandante Toledo” e ajudou a organizar algumas das mais importantes ações de enfrentamento ao regime militar. Morreu sob tortura, nas mãos dos agentes comandados por Sérgio Fleury, em 1970.
Joaquim Câmara Ferreira nasceu em São Paulo, filho de Cleonice Câmara e de Joaquim Batista Ferreira. Seu pai pertencia a uma afluente família do interior paulista e serviu por três mandatos como prefeito de Jaboticabal. A mãe faleceu 20 dias após o nascimento de Joaquim, por complicações do parto. O jovem foi criado pelos avós maternos e cursou o ensino básico em colégios tradicionais. Seguindo os passos do pai, Joaquim ingressou no curso de engenharia da Escola Politécnica de São Paulo. Abandonaria o curso já no segundo ano, optando por estudar filosofia na USP.
O contato de Joaquim com a academia ocorreu em um contexto de efervescência política. A Revolução de 1930 havia imposto um novo arranjo institucional que superou o pacto oligárquico da “política do café com leite”, dando origem à Era Vargas. Era um período de radicalização — tanto à direita quanto à esquerda.
As ideias anarquistas e comunistas estavam em franca expansão e as organizações da esquerda radical tinham crescente capilaridade nos movimentos estudantis e operários. Foi nesse contexto que Joaquim se aproximou do movimento comunista, travando contato com figuras como Adolfo Roitman, Noé Gertel e Caio Prado Júnior.
Em 1932, já bastante engajado na militância política, Joaquim ajudou a fundar o núcleo paulistano do Socorro Vermelho Internacional — organização de serviços sociais vinculada à Internacional Comunista (Comintern), voltada prioritariamente a auxiliar os prisioneiros políticos.
No ano seguinte, ele se filiou ao Partido Comunista do Brasil (antigo PCB). Diligente e disciplinado, Joaquim ascenderia rapidamente no partido. Em 1934, foi indicado para compor comitê estadual de São Paulo. Joaquim também foi incumbido de chefiar o Comitê Antiguerreiro — a seção local do Comitê Mundial Contra a Guerra e o Fascismo, criado pela Comintern para se contrapor à crescente influência dos movimentos de extrema-direita.
Ainda em 1934, Joaquim participou da contramanifestação convocada pelos movimentos antifascistas de São Paulo para barrar o comício integralista da Praça da Sé. O enfrentamento entre os grupos resultou em uma batalha campal no centro de São Paulo. Os militantes da esquerda venceram o confronto, expulsando os integralistas no episódio jocosamente apelidado de “Revoada das Galinhas Verdes”, um marco da luta antifascista no Brasil.
Joaquim também ajudou a criar a Aliança Nacional Libertadora (ANL) — frente antifascista e anti-imperialista que congregava comunistas, anarquistas e um grande núcleo de militares egressos do tenentismo.
Em novembro de 1935, um levante revolucionário da ANL estourou na cidade de Natal. Outras unidades militares se sublevaram em Recife e no Rio de Janeiro. O movimento foi esmagado pelas tropas federais em poucos dias e ensejou uma violenta repressão aos comunistas. Milhares de militantes do PCB foram presos, incluindo boa parte da cúpula do partido. Atuando clandestinamente, Joaquim passou os anos seguintes auxiliando na reorganização da direção nacional. Em 1940, após retornar de um périplo pelo Nordeste, Joaquim foi preso no Rio de Janeiro.
Sob custódia da polícia política do Estado Novo, Joaquim foi barbaramente torturado. Ele foi submetido a afogamentos, pau de arara e teve as unhas arrancadas. Um corte profundo no pulso esquerdo lesionou os seus nervos, deixando como sequela a limitação permanente dos movimentos da mão. Joaquim foi condenado a 7 anos de prisão e enviado para o presídio de Ilha Grande. Enquanto estava encarcerado, casou-se por procuração com Leonora Cardieri, educadora sanitária com quem havia iniciado um relacionamento antes de ser preso. Leonora seria sua companheira pelo resto da vida e a mãe de seus dois filhos — Roberto e Denise.
Joaquim foi libertado em março de 1945, um mês antes de Getúlio Vargas assinar o decreto de anistia, libertando 563 presos políticos. Com a redemocratização, o PCB retornou à legalidade. Reorganizado desde a Conferência da Mantiqueira, o partido ampliou enormemente sua base de apoio. Joaquim se tornou um dos principais dirigentes do PCB em São Paulo e ajudou a fortalecer os órgãos de imprensa do partido. Ele fundou e dirigiu jornal “Hoje”, que chegou a disputar o mercado com os principais diários da grande imprensa.
Refletindo o crescimento de sua base, o PCB obteve excelentes resultados nas eleições que disputou após a legalização. Em 1946, o partido elegeu a 4ª maior bancada da Assembleia Constituinte, com 15 deputados e um senador. No ano seguinte, os comunistas elegeram 46 deputados estaduais em 16 unidades da federação. O avanço do partido incomodou os setores conservadores. Em 1947, o PCB teve seu registro eleitoral cancelado. E em 1948, todos os parlamentares do partido foram cassados.
A repressão se estendeu aos órgãos de imprensa do PCB, que foram alvos de ataques e depredações. Em janeiro de 1948, policiais tentaram invadir a sede do jornal “Hoje”. Joaquim e outros militantes comunistas que estavam dentro do edifício reagiram à investida. Seguiu-se um tiroteio, que se estendeu por horas. A resistência custou a Joaquim uma nova condenação a mais um ano de cadeia.
Após ser libertado, Joaquim assumiu a direção do PCB em São Paulo e relançou o veículo de imprensa do partido, renomeado como “Notícias de Hoje”. Nessa função, buscou fortalecer os vínculos dos comunistas com os movimentos operários. Ele foi um dos organizadores da Greve dos 300 Mil em São Paulo. A histórica paralisação se estendeu de março a abril de 1953, mobilizando trabalhadores da indústria têxtil, metalúrgicos, gráficos, marceneiros, etc. O jornal “Notícias de Hoje” ganharia notoriedade durante a greve, servindo como porta-voz das reivindicações das categorias mobilizadas.
Joaquim ajudou a elaborar as teses aprovadas durante o V Congresso do PCB, que buscavam adaptar o programa do partido à “Declaração de Março” e à campanha pela legalização. À época, o PCB estava em um processo de fragmentação, ocasionado pelas disputas geradas pelas denúncias que Nikita Kruschev fizera contra Stalin alguns anos antes. Em 1962, os militantes críticos do processo de “desestalinização” deixaram o PCB (já renomeado “Partido Comunista Brasileiro”) e fundaram o PCdoB. Alinhado à direção do partido, Joaquim permaneceu no PCB e foi integrado ao Comitê Central.
Havia, no entanto, uma crise maior no horizonte. Em 1º de abril de 1964, João Goulart foi deposto e o Brasil foi submetido à ditadura militar. Joaquim foi preso mais uma vez nesse mesmo ano, enquanto dava uma palestra para trabalhadores de São Bernardo do Campo. O golpe de 1964 gerou muitos questionamentos sobre a linha política seguida pelo PCB. A ausência de uma estratégia eficaz de resistência e de mobilização da classe operária e, sobretudo, a recusa do partido em apoiar a luta armada contra a ditadura geraram mal-estar nas bases e levaram à divisão do Comitê Central.
Formou-se dentro do partido uma “corrente revolucionária”, que reunia nomes como Joaquim Câmara Ferreira, Marighella, Jacob Gorender e Mário Alves, entre outros. Eles criticavam os erros do PCB que levaram à desmobilização da classe trabalhadora e defendiam a adesão à luta armada. Do outro lado, o grupo majoritário, liderado por Prestes, seguia rejeitando o chamado à radicalização como “esquerdismo” e defendia a continuidade da luta contra a ditadura pelas vias institucionais.
Em 1967, após o agravamento das tensões no interior partido, Joaquim foi desligado do PCB. Ao lado de Marighella, ele fundaria a Ação Libertadora Nacional (ALN), que se consagraria como umas das mais combativas organizações da esquerda revolucionária. Durante as operações, Joaquim utilizava os codinomes “Comandante Toledo” e “o Velho”. Ele seria o comandante político de boa parte das ações empreendidas pela ALN, incluindo a mais célebre de todas: o sequestro de Charles Burke Elbrick, embaixador dos Estados Unidos no Brasil.
Elbrick foi sequestrado em setembro de 1969, em uma ação conjunta conduzida pela ALN e pelo Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Em troca da soltura do embaixador, os guerrilheiros exigiram a libertação de 15 presos políticos e a leitura de um manifesto em rede nacional. As exigências foram cumpridas e Elbrick foi liberado após dois dias. Embora bem sucedida, a ação teria consequências trágicas para a resistência armada. Determinada a desmantelar a ALN, a ditadura respondeu com extrema violência, mobilizando todo o seu aparato repressivo para capturar e eliminar os membros da organização.
Em setembro de 1969, Virgílio Gomes da Silva, coordenador da estratégia militar do sequestro, foi preso, torturado e brutalmente assassinado pelos agentes da Operação Bandeirantes (OBAN). Nos meses seguintes, quase todos militantes envolvidos no rapto do embaixador seriam presos. Joaquim decidiu então deixar o país para evitar sua captura.
Em Cuba, encontrou-se com Fidel Castro e fez um curso militar. Pouco tempo depois, em novembro de 1969, Joaquim seria informado sobre o assassinato de Carlos Marighella. O líder da ALN havia sido executado por agentes do DOPS durante uma emboscada em São Paulo. A notícia o deixou consternado.
Joaquim foi aconselhado a permanecer no exterior, mas acreditava que tinha a obrigação de voltar ao Brasil para assumir o comando da ALN. Após retornar, ele buscou unificar a luta armada, tentando constituir uma frente com o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Joaquim acreditava que a única chance de sucesso da luta armada seria levar a guerrilha para o campo — mas não haveria tempo hábil para conduzir tal estratégia.
Na noite de 23 de outubro de 1970, Joaquim foi preso por agentes do DOPS no bairro de Indianópolis, em São Paulo. Ele havia sido atraído a uma emboscada, a partir de uma delação feita sob tortura por José da Silva Tavares. Joaquim tentou resistir à prisão, mas foi subjugado e transportado até um aparelho policial clandestino, mantido por Sérgio Fleury nos arredores da capital paulista. Foi torturado ao longo de todo o trajeto, mas se negou a passar quaisquer informações aos agentes. Morreu sob tortura na mesma noite, aos 57 anos de idade. Seu corpo foi sepultado no Cemitério da Consolação.
Em outubro de 2010, Joaquim Câmara Ferreira foi formalmente anistiado pela Estado brasileiro após requerimento apresentado por seu filho, Roberto Ferreira, à Caravana da Anistia. Na ocasião, a Comissão de Anistia pediu perdão pelos crimes cometidos pelo Estado e designou Joaquim como “combatente herói do povo brasileiro”. O guerrilheiro também foi homenageado pela Câmara de Vereadores de São Paulo, que lhe concedeu o título de cidadão paulistano “in memoriam”.