Há 41 anos, em 25 de novembro de 1983, Marçal de Souza Tupã-Y era assassinado na porta de sua casa. Considerado um dos maiores líderes indígenas do Brasil, ele se destacou por sua luta contra a exploração ilegal de madeira e em favor da demarcação de terras no Centro-Oeste.
Sua atuação foi fundamental para expor a corrupção dos órgãos governamentais durante a ditadura militar (1964-1985) e trazer visibilidade internacional à causa indígena.
Marçal de Souza Tupã-Y nasceu em 24 de dezembro de 1920 em Ponta Porã, no atual Mato Grosso do Sul, em uma comunidade Guarani Ñandeva. Sua infância transcorreu em um contexto bastante atribulado, marcado pelo avanço da colonização sobre as terras indígenas.
Desde o início dos anos 20, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) havia ampliado o processo de tutela e confinamento, forçando a transferência das comunidades Guarani e Kaiowá para reservas demarcadas e administradas pelo Estado, frequentemente em colaboração com organizações missionárias.
Ainda muito pequeno, Tupã-Y mudou-se com sua família para a aldeia Te’ýikue, em Caarapó. Picado por uma cobra aos oito anos de idade, ele teve de se transferir para a Reserva Indígena de Dourados, a fim de receber atendimento médico na Missão Evangélica Caiuá. Marçal perdeu seus pais pouco tempo depois, possivelmente vitimados durante uma epidemia. Passou a viver no orfanato Ñhanderoga, onde permaneceu até os 12 anos de idade, quando foi adotado por uma família presbiteriana.
Tupã-Y se mudou para Campo Grande e cursou as primeiras letras na Escola Estadual Oswaldo Cruz. Logo teve de abandonar os estudos para se dedicar ao trabalho, realizando serviços domésticos e braçais por exigência de sua família adotiva. Foi convertido ao cristianismo e levado a estudar a doutrina presbiteriana. Morou ainda em Recife, acompanhando a transferência do pai adotivo, que era funcionário do Exército.
Em 1940, Marçal retornou para a Reserva de Dourados, passando a atuar como pregador evangélico. Sua oratória inflamada e pungente chamou atenção dos dirigentes da Missão Evangélica. Ele foi então enviado para realizar um curso de liderança cristã no Instituto Bíblico Dr. Eduardo Lani, em Patrocínio, Minas Gerais, onde estudou por três anos.
A atuação missionária de Marçal o levou a viajar por diversas aldeias do Centro-Oeste — uma experiência que o colocou em contato com a realidade de exploração, miséria, violência e exclusão social a que estavam submetidos os povos indígenas. A experiência o levou a questionar o regime de tutela e confinamento imposto pelo Estado, bem como o papel das missões evangélicas.
A visão de Marçal se tornaria ainda mais crítica a partir do diálogo estabelecido com antropólogos e etnólogos entre as décadas de 1940 e 1950. Atuando como interlocutor e intérprete do povo Guarani Ñandeva, Marçal conviveu com personalidades como Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e Egon Schaden.
Gradualmente, Marçal abandonou a missão evangelizadora, assumindo em seu lugar a bandeira da preservação da cultura e das tradições dos povos originários e de luta pela organização social e política de seu povo.
Em 1959, formou-se como auxiliar de enfermagem, concluindo um curso promovido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Dedicou-se a ajudar no atendimento das comunidades indígenas da região e trabalhou no Hospital Indígena Porta da Esperança, inaugurado em 1963. Na cerimônia de inauguração do hospital, Marçal proferiu um vigoroso discurso para uma plateia de 800 pessoas, denunciando o roubo de terras e a marginalização dos povos originários.
Ainda em 1963, Marçal foi eleito Capitão da Reserva Indígena de Dourados. Sua atuação nessa função o consolidaria com um respeitado líder indígena. Ele se esforçou para resgatar e levar para a aldeia os indígenas que estavam dispersos pela região. Também implementou um sistema de mutirão para a execução de tarefas comuns, retomou o plantio de lavouras e organizou atividades de valorização das tradições e crenças indígenas.
A gestão de Marçal, entretanto, provocaria atritos com o governo e com os missionários. Os agentes do SPI se incomodaram com a oposição do líder indígena à instalação de uma serraria e à comercialização de madeiras nobres extraídas da reserva. Os missionários, por sua vez, não enxergavam com bons olhos as ações de resgate das crenças tradicionais. Assim, em 1972, Marçal foi afastado da função. Ele foi sucedido por Ramão Silva Machado, um indígena Terena que era próximo do chefe do Posto Indígena de Dourados, Idevar José Sardinha.
Mesmo afastado, Marçal seguiu protestando contra a venda de madeiras e os abusos cometidos na aldeia. Como represália, o líder indígena foi brutalmente espancado pelos encarregados do Capitão Ramão. Forçado a se retirar da Reserva de Dourados, ele se transferiu para a Casa do Índio de Campo Grande e, posteriormente, se mudou para a aldeia de Te’ýikue, em Caarapó.
Os atritos com as autoridades, entretanto, seguiriam ocorrendo. Em Te’ýikue, Marçal denunciou uma série de crimes graves, incluindo escândalos de corrupção envolvendo funcionários da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), venda ilegal de madeira e exploração sexual de meninas e adolescentes indígenas. Marçal também se aproximou do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) — órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que se opunha à política agressiva mantida pela ditadura militar contra os povos indígenas e visava auxiliar na articulação política dos povos nativos.
Marçal assumiu o posto de assessor de saúde do CIMI e obteve na organização uma plataforma para reverberar e amplificar o alcance de suas denúncias. Suas críticas à gestão da Reserva de Dourados levariam à exoneração de Idevar José Sardinha. Ele também se destacou como uma das vozes mais ativas na defesa pela demarcação das terras indígenas.
Em 1977, já consagrado como uma liderança de expressão nacional, Marçal participou da Assembleia dos Chefes Indígenas, sediada no Rio Grande do Sul, ocasião em exortou os povos originários a se unirem na luta por seus direitos: “precisamos nos unir, braço a braço, e levantar alto a voz dos nossos antepassados que foram massacrados. Chegamos ao ponto em que nós devemos tomar as rédeas de um governo indígena”, afirmou.
Três anos depois, em 1980, por ocasião da visita do papa João Paulo II ao Brasil, Marçal foi indicado para representar os povos indígenas durante um encontro com o pontífice na cidade de Manaus. O líder Guarani fez um firme discurso sobre a opressão sofrida pelos povos originários: “somos uma nação subjugada pelos potentes, uma nação espoliada, uma nação que está morrendo aos poucos sem encontrar o caminho, porque aqueles que nos tomaram este chão não têm dado condições para a nossa sobrevivência, Santo Padre. Nossas terras são invadidas e tomadas, os nossos territórios são diminuídos, não temos mais condições de sobrevivência. Pesamos a Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte dos nossos líderes assassinados friamente por aqueles que tomam nosso chão, aquilo que, para nós, representa nossa própria vida e a nossa sobrevivência nesse grande Brasil, que se diz um país cristão.”
O discurso comoveu o papa e teve enorme repercussão internacional. Marçal também denunciou o assassinato de lideranças indígenas e entregou a João Paulo II uma lista com os nomes de políticos, latifundiários e empresários considerados inimigos dos povos indígenas. O líder Guarani recebeu diversos convites para participar de palestras e encontros internacionais. Ainda em 1980, Marçal se tornou um dos membros fundadores da União das Nações Indígenas (UNI) — a primeira organização indígena de abrangência nacional.
No ano seguinte, Marçal participou de uma conferência internacional sobre o avanço da mineração em terras indígenas, sediado em Boston.
A atuação política de Marçal incomodou a ditadura militar e os setores reacionários da sociedade. Ele passou a ser perseguido e intimidado, tornando-se alvo constante de ameaças e agressões. Chegou a ser interrogado e detido pela Polícia Federal. No início dos anos 80, por determinação da FUNAI, Marçal foi obrigado a se mudar para a aldeia de Campestre, no município de Antônio João, no Mato Grosso do Sul.
Apesar das ameaças, Marçal seguiu ativo na luta pelos direitos dos povos indígenas. A partir de 1980, ele liderou um movimento em favor da demarcação das terras da aldeia Pirakuá, às margens do Rio Apa, onde viviam dezenas de famílias Guarani e Kaiowá. A comunidade indígena estava sofrendo pressão para abandonar a terra, reivindicada pelo fazendeiro Astúrio Monteiro de Lima, seu filho, Líbero Monteiro, e Romulo Gamarra, um arrendatário paraguaio.
O líder Guarani alertou a FUNAI e as autoridades policiais, mas nenhuma providência foi tomada. No começo de 1983, Marçal chegou a receber uma oferta de 10 milhões de cruzeiros para retirar os indígenas da região, mas recusou prontamente o pedido. Seguiram-se várias ameaças.
Em setembro de 1983, durante um debate realizado na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, Marçal comentou a respeito: “eu sou uma pessoa marcada para morrer. Mas por uma causa justa, a gente morre.”
Em 25 de novembro de 1983, Marçal de Souza Tupã-Y foi assassinado com cinco tiros à queima roupa, na porta de sua casa. A morte do líder Guarani comoveu a comunidade indígena e ganhou manchetes em todo o mundo, evidenciando o grau de violência enfrentado pelos povos originários no Brasil.
A grande imprensa buscou abafar o caso, retratando a morte como decorrente de um crime comum, sem mencionar as disputas em torno da aldeia Pirakuá e as constantes ameaças que Marçal vinha sofrendo.
Suspeitos de serem os mandantes do crime, Líbero Monteiro e Romulo Gamarra somente foram a julgamento em 1993, uma década depois do assassinato. Ambos foram absolvidos. O crime prescreveu em 2008, sem que ninguém tenha sido responsabilizado.