Há 171 anos, em 21 de agosto de 1853, falecia a cadete Maria Quitéria de Jesus Medeiros, heroína da Guerra de Independência do Brasil. Primeira mulher a atuar nas Forças Armadas brasileiras, Maria Quitéria se disfarçou de homem para poder lutar contra as tropas portuguesas durante as campanhas militares na Bahia. Seus feitos heroicos no campo de batalha lhe valeram a condecoração com a Imperial Ordem do Cruzeiro, outorgada por dom Pedro I. Seu nome está inscrito no Livro de Aço dos Heróis e Heroínas da Pátria desde dezembro de 2018.
Maria Quitéria nasceu em São José das Itapororocas (hoje Feira de Santana), no interior da Bahia. Sua data de nascimento exata não é conhecida, mas a certidão de batismo foi emitida em 27 de julho de 1792. Era a filha primogênita de Quitéria Maria de Jesus e Gonçalo Alves de Almeida.
Maria Quitéria não recebeu educação formal. Cresceu na Fazenda Serra da Agulha, auxiliando os pais no plantio de algodão e na criação do gado. Aos dez anos, tornou-se órfã de mãe e teve de assumir a responsabilidade pelo cuidado dos irmãos. O pai se casou outras duas vezes. Maria Quitéria teve uma relação conturbada com a segunda madrasta, que costumava reclamar muito de seu comportamento. A jovem rejeitava tarefas como a costura e o bordado, preferindo se dedicar à caça e à pesca. Aprendeu com o pai a montar a cavalo e a manejar armas de fogo.
Desde a infância, Maria Quitéria testemunhou o clima de forte agitação política que vigorava na Bahia, insuflado pelos movimentos partidários da independência do Brasil. O processo de emancipação na província ocorria de forma bastante turbulenta.
Após a eclosão da Conjuração Baiana em 1798, a Bahia se tornou um dos epicentros do movimento autonomista. Representantes da Bahia participaram ativamente da Revolução Liberal do Porto e defenderam a limitação do poder da coroa portuguesa. A mobilização em prol da independência na Bahia evoluiu para um movimento armado ainda em fevereiro de 1822, quando o governo da província se sublevou contra o domínio de Portugal.
Os rebeldes foram brutalmente reprimidos pelas tropas portuguesas lideradas por Madeira de Melo. Os bombardeios contra Salvador, a invasão do Convento da Lapa e o assassinato da freira Joana Angélica causaram indignação e profunda comoção popular. Os baianos reagiram estabelecendo um governo provisório em Cachoeira e formando as Juntas de Defesa, que passaram a combater os portugueses na província.
Em setembro de 1822, um emissário do governo provisório visitou a Fazenda Serra da Agulha, em busca de voluntários para lutar contra os portugueses. Gonçalo explicou que já não tinha mais idade para combater, tampouco homens para oferecer ao recrutamento. Com o ânimo inflamado pelo apelo patriótico do emissário, Maria Quitéria pediu ao pai permissão para servir no exército libertador. Gonçalo ficou enfurecido com o pedido e repreendeu energicamente a filha.
Decidida a colaborar na luta pela independência, Maria Quitéria elaborou um plano. Pegou emprestado o uniforme militar de seu cunhado, cortou seus cabelos e atou uma cinta no tórax para disfarçar o volume dos seios. Disfarçada como homem, fugiu de casa e se dirigiu à vila de Cachoeira, onde se apresentou como “soldado José Medeiros”, alistando-se no Regimento de Artilharia do Batalhão de Voluntários do Príncipe.
Maria Quitéria se destacou rapidamente no exército dos rebelados. Além da experiência no manuseio de armas, era ágil, disciplinada e cumpria as tarefas designadas com grande diligência. O disfarce masculino não durou muito tempo. Ao descobrir o paradeiro da jovem, seu pai se dirigiu a Cachoeira e informou ao comandante do batalhão, o major Silva Castro, que o “soldado Medeiros” era, na verdade, uma mulher.
Diante do desempenho excepcional de Maria Quitéria no campo de batalha e de sua insistência em seguir combatendo, Silva Castro se negou a dispensá-la. Determinou, entretanto, que a combatente passasse a utilizar um saiote sobre sua farda.
Junto com seu batalhão, Maria Quitéria participou ativamente da defesa da Ilha de Maré e dos combates de Conceição e de Itapuã. Obteve destaque nos embates de Pituba, quando atacou uma trincheira inimiga e aprisionou sozinha um grupo de portugueses, levando-os escoltados até um acampamento do exército brasileiro. Consagrou-se como heroína de guerra em abril de 1823, ao conseguir impedir o desembarque das tropas portuguesas na Barra do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, auxiliada por um agrupamento de mulheres civis. A ação foi fundamental para neutralizar uma perigosa contraofensiva dos portugueses.
Em reconhecimento à sua atuação, o general Pedro Labatut a promoveu ao posto de primeiro-cadete. Maria Quitéria também foi bastante elogiada por José Joaquim de Lima e Silva, comandante do exército. “Esta mulher tem se distinguido em toda a campanha com indizível valor e intrepidez. Três vezes que entrou em combate apresentou feitos de grande heroísmo, avançando de uma, por dentro de um rio com água até os peitos, sobre uma barca que batia renhidamente nossa tropa”, afirmou Lima e Silva em um ofício.
Enfraquecidas após as batalhas de Cabrito e Pirajá e impedidas de receber reforços em função do bloqueio marítimo imposto a Salvador, as forças portuguesas capitularam após um ano e meio de combates. Em 2 de julho de 1823, as tropas libertadoras adentraram em Salvador, consolidando a independência do Brasil. Com o término da guerra, Maria Quitéria viajou ao Rio de Janeiro, onde foi recebida em audiência por Dom Pedro I e condecorada com a insígnia de Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro. A presença de uma mulher trajando uniforme e insígnias militares causou grande espanto na corte.
Maria Quitéria retornou à fazenda da família em Feira de Santana. Pouco se sabe sobre sua vida depois da Guerra de Independência. Ela se casou com o lavrador Gabriel Pereira de Brito, um antigo pretendente, e teve uma filha chamada Luísa Maria da Conceição. Em 1834, após o falecimento do pai, tentou receber a parte da herança que lhe cabia, mas desistiu do processo, desgastada pelas disputas com a madrasta. Ficou viúva alguns anos depois, mudando-se para Salvador, onde viveu no anonimato até o fim da vida. Faleceu em 21 de agosto de 1853, aos 61 anos de idade.
Maria Quitéria foi por muito tempo negligenciada pela historiografia oficial do exército brasileiro. Somente a partir de 1953, por ocasião do centenário de sua morte, foram instituídas medidas para celebrar o seu legado. Um monumento em sua memória foi erguido no bairro da Liberdade, em Salvador, e a fixação de seu retrato nas corporações militares tornou-se obrigatória por decisão do governo federal. O ingresso formal de mulheres em postos regulares das Forças Armadas, entretanto, ainda levaria décadas. A Escola de Administração do Exército, por exemplo, só abriu vagas para mulheres a partir de 1992.
Maria Quitéria é a patronesse do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro desde 1996. Em 2018, seu nome foi inscrito no Livro de Aço dos Heróis e Heroínas da Pátria.