Há 38 anos, em 15 de agosto de 1986, uma cerimônia na Fiocruz buscava reverter uma das maiores injustiças cometidas contra a ciência brasileira. A instituição determinou a reintegração de um grupo de 10 cientistas que haviam sido cassados e perseguidos pela ditadura militar (1964-1985) durante o chamado “Massacre de Manguinhos”. O prejuízo que a perseguição causou para o desenvolvimento das políticas de saúde pública e para a pesquisa nacional, no entanto, dificilmente será reparado.
O Massacre de Manguinhos foi uma das piores ofensivas conduzidas pela ditadura militar contra a ciência brasileira. O episódio ocorreu no contexto de recrudescimento do autoritarismo e da repressão que caracterizou os “Anos de Chumbo” — o período mais violento da ditadura militar, inaugurado logo após a emissão do AI-5, marcado pela suspensão de direitos civis, coerção dos movimentos sociais, tortura e assassinato dos opositores do regime.
Durante esse período, a perseguição política se tornou generalizada, extrapolando o âmbito da oposição aos movimentos organizados e passando a atingir cidadãos comuns, que fossem meramente suspeitos de não compactuar com as ideias da ditadura.
O nome “Massacre de Manguinhos” faz referência ao bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro onde se localiza a sede da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) — então denominada “Instituto Oswaldo Cruz”. À época, a Fiocruz já era uma referência internacional em pesquisas em saúde pública. A instituição havia coordenado as campanhas de erradicação das epidemias de peste bubônica, febre amarela e varíola, foi pioneira no combate ao tifo, à doença de Chagas e à esquistossomose e articulou a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, ajudando desenhar as bases de um sistema público de saúde.
Em meados do século 20, a instituição já se destacava entre os maiores centros produtores de imunizantes e medicamentos do mundo. Respondia, por exemplo, por 80% da produção mundial de vacinas contra a febre amarela.
Após o golpe de 1964 e a instauração da ditadura militar, a Fiocruz foi submetida à intervenção política, a exemplo do que havia ocorrido com grande parte das instituições públicas. Já em seu discurso de posse, o ministro da Saúde, Raimundo de Moura Britto, nomeado pelo general Castelo Branco, prometeu que iria intervir para “banir as ideias exóticas que se infiltraram em Manguinhos”. Britto removeu todos os pesquisadores dos cargos de chefia e ordenou a instalação de um inquérito para apurar se os funcionários da Fiocruz estavam envolvidos com “atividades subversivas”. Dois meses após o golpe, o ministro afastou o diretor da Fiocruz, o renomado bacteriologista Joaquim Travassos da Rosa, e o substituiu pelo médico Francisco de Paula da Rocha Lago.
Rocha Lago tinha um currículo banal, mas foi escolhido como diretor-interventor por seu alinhamento ideológico com o novo regime. Ele era anticomunista, egresso da Escola Superior de Guerra e possuía vínculos com membros da reacionária União Democrática Nacional (UDN). Tão logo assumiu o cargo, Rocha Lago tratou de centralizar a gestão dos recursos da Fiocruz. O diretor reduziu substancialmente o orçamento destinado às pesquisas científicas e cortou o financiamento de diversos trabalhos, preferindo alocar a maior parte dos recursos em ações sanitárias imediatas.
Rocha Lago também solicitou ao Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) a suspensão das bolsas e dos financiamentos de trabalhos que considerava de “importância secundária”.
Reagindo à gestão autoritária de Rocha Lago, os pesquisadores da Fiocruz procuraram o ministro da Saúde e do Planejamento, Roberto Campos, para denunciar o desmonte do setor de pesquisa da instituição. Os cientistas também propuseram a criação de um Ministério da Ciência como alternativa para ampliar fomento ao setor de ciência e tecnologia e garantir uma gestão profissional dos centros de produção científica.
Os dois ministros, no entanto, respaldaram as ações do diretor da Fiocruz e afirmaram que a instituição deveria ser convertida em um órgão de execução de políticas sanitárias, deixando as pesquisas a cargo das universidades.
Rocha Lago ficou furioso com a contestação dos cientistas da Fiocruz à sua gestão. Em represália, o diretor passou a isolar, perseguir e boicotar os pesquisadores. Os cientistas foram alvos de uma série de inquéritos nas áreas civil, militar e administrativa, respondendo a acusações de serem “corruptos”, “subversivos” e de estarem tramando uma “conspiração contra o governo brasileiro”. Um dos pesquisadores, Fernando Braga Ubatuba, chegou a ficar detido por 14 dias em uma instalação do Exército brasileiro em Paracambi. Os inquéritos não apresentaram nada que desabonasse a conduta dos pesquisadores, mas a perseguição continuou mesmo assim.
A má vontade dos militares em relação aos pesquisadores, na verdade, antecedia a própria ditadura. Os pesquisadores já estavam sendo monitorados pelos militares desde 1946, quando subscreveram um documento de apoio às demandas do senador Luiz Carlos Prestes, do Partido Comunista do Brasil (antigo PCB), que havia exigido a retirada das tropas norte-americanas do Nordeste brasileiro e o fechamento da base militar dos Estados Unidos, montada em Natal durante a Segunda Guerra Mundial.
Após o golpe de 1964, os pesquisadores criticaram a subserviência do regime às diretrizes impostas pelo governo norte-americano e defenderam o desenvolvimento autônomo da pesquisa científica no Brasil. A gota d’água ocorreria quando os cientistas denunciaram o desvio de verbas que deveriam ser destinadas ao combate da malária, da peste bubônica e da meningite.
Gostou do conteúdo? Acesse o link e leia mais da Pensar a História.
Com a promulgação do AI-5, a ditadura deu início ao expurgo da comunidade acadêmica, cassando e aposentando compulsoriamente professores e pesquisadores de universidades públicas e instituições científicas. Esse expurgo seria estendido para os órgãos da saúde a partir de 1969, após o general Emílio Garrastazu Médici indicar o diretor da Fiocruz, Rocha Lago, para assumir o Ministério da Saúde. No dia 1º de abril de 1970, o regime militar cassou os direitos políticos dos cientistas da Fiocruz por dez anos. Dois dias depois, a ditadura emitiu novo decreto determinando a aposentadoria compulsória dos pesquisadores.
Dez cientistas foram alvo das medidas persecutórias do regime — quase todos ligados à área de medicina experimental e combate a doenças tropicais: Augusto Cid de Mello Perissé, Tito Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, Haity Moussatché, Fernando Braga Ubatuba, Moacyr Vaz de Andrade, Hugo de Souza Lopes, Masao Goto, Herman Lent, Sebastião José de Oliveira e Domingos Arthur Machado Filho.
O governo militar ainda emitiria outra norma proibindo os pesquisadores do trabalharem em quaisquer repartições públicas ou de prestarem serviços para empresas subvencionadas com dinheiro do erário. O “Massacre de Manguinhos” fez com que a Fiocruz perdesse 14% do seu quadro de pesquisadores e fosse obrigada a encerrar diversas linhas de pesquisa sobre novos medicamentos, tratamentos para doenças infecciosas e medidas de combate a surtos epidêmicos.
Sem poder trabalhar nos órgãos públicos do Brasil, quatro dos 10 pesquisadores cassados tiveram de se mudar para outros países. Augusto Perissé e Fernando Ubatuba foram chamados a trabalhar na Europa, ao passo que Haity Moussatché e Herman Lent passaram a dar aulas na Venezuela. Os cientistas que permaneceram no país tiveram de atuar em clínicas particulares ou conseguiram ocupação em organizações da sociedade civil.
A ditadura aprofundou o desmonte e o sucateamento da Fiocruz, diminuindo de forma agressiva o orçamento da instituição, que se viu forçada a fechar boa parte de seus laboratórios e abandonar suas linhas de pesquisa. Os militares extinguiram o Instituto Nacional de Produção de Medicamentos e fundiram a Fiocruz a outras organizações, visando fragilizar sua autonomia gerencial. O impacto foi tão forte que, em 1974, o novo Ministro da Saúde da ditadura, Paulo Almeida, admitiria que a Fiocruz havia se tornado “um cadáver insepulto na Avenida Brasil”.
Para o país, as consequências foram graves. A produção de medicamentos, insumos, soros e vacinas foi bastante prejudicada. O desmonte resultou na desarticulação das campanhas de vacinação e na queda da taxa de imunização, com o consequente crescimento de epidemias. Décadas de pesquisas em saúde pública foram jogadas no lixo com a descontinuação das linhas de pesquisa e o corte de investimentos, causando enormes retrocessos à ciência brasileira.
Somente em 1986, já no período da redemocratização e cinco anos após a sanção da Lei da Anistia, os 10 cientistas foram reintegrados à Fiocruz. A instituição estava sob a comando do médico sanitarista Sérgio Arouca, um dos principais formuladores do SUS. Somente o parasitologista Herman Lent não aceitou retornar para a Fiocruz, preferindo continuar dando aulas na Universidade Santa Úrsula, onde estava trabalhando desde 1976.
A cerimônia de reintegração contou com a presença de Mário Lago, presidente da Comissão Nacional de Anistia, do deputado Ulysses Guimarães, presidente da Câmara dos Deputados, e do antropólogo Darcy Ribeiro, vice-governador do Rio de Janeiro. Em seu discurso, Darcy Ribeiro pontuou outro prejuízo do “Massacre de Manguinhos — a privação da formação de novos pesquisadores: “A dor que me dói, a lágrima que eu choro, é pelas pesquisas que foram interrompidas e nunca mais se farão. É pelos jovens cientistas que teríamos formado e que não se formarão nunca. A Ciência é a última profissão que não se aprende nos livros. É um cientista que cria outro. E vocês, os mais preparados para frutificar novas gerações, foram proibidos de se multiplicar.”
A história da perseguição aos cientistas da Fiocruz foi detalhada pelo pesquisador Herman Lent no livro O Massacre de Manguinhos, publicado em 1978. Uma nova edição da obra, com prefácio de Nísia Trindade, foi lançada em 2019, por ocasião da celebração dos 119 anos de fundação da Fiocruz.