Milton Santos: um pensador do Sul Global
Milton Santos propôs análise crítica do espaço geográfico como produto das relações sociais e econômicas
Há 24 anos, em 24 de junho de 2001, falecia o geógrafo baiano Milton Santos. Considerado um dos maiores intelectuais do Brasil no século 20, ele foi um dos fundadores da geografia crítica e desenvolveu diversos trabalhos pioneiros nesse campo do saber.
Autor de obras como Por Uma Geografia Nov” e O Espaço Dividido, Milton propôs uma análise crítica do espaço geográfico como produto das relações sociais e econômicas. Ele contestou as visões positivistas e eurocêntricas tradicionais e priorizou o enfoque sobre as contradições do capitalismo e os impactos da globalização nos países periféricos.
Preso e exilado durante a ditadura militar (1964-1985), o brasileiro contribuiu com a produção do conhecimento em universidades de todo o mundo, ajudando a integrar as perspectivas do Sul Global aos debates acadêmicos e a denunciar as desigualdades impostas pelo neoliberalismo e pela lógica de dominação exercida pelos países centrais.
Primeiros anos e formação acadêmica
Filho de Adalgisa Umbelina e Francisco Irineu, Milton Almeida dos Santos nasceu em 3 de maio de 1926 na cidade baiana de Brotas de Macaúbas, na região da Chapada Diamantina. Foi alfabetizado por seus pais, ambos professores primários, e cresceu em um ambiente que valorizava a leitura e o conhecimento. Desde pequeno, Milton se dedicou ao estudo de várias disciplinas, da álgebra à língua francesa.
Aos dez anos de idade, Milton se mudou com sua família para Salvador. Ele prestou exame de admissão no Instituto Baiano de Ensino, sendo aprovado em primeiro lugar. Tornou-se aluno interno da instituição e foi discípulo de Oswaldo Imbassay, que despertou o seu interesse pela geografia.
Com 13 anos, Milton já dava aulas de matemática e aos 15 passou a atuar como monitor de geografia junto aos colegas mais novos. Ele também foi responsável por fundar e dirigir os jornais estudantis “O Farol” e “O Luzeiro”, dedicados a difundir obras literárias e a promover debates intelectuais entre os alunos.
Concluído o ensino secundário, Milton ingressou no curso pré-jurídico. Aos 18 anos, ele foi aprovado no vestibular para o curso de direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em paralelo à graduação, aproximou-se do movimento estudantil e ajudou a fundar o Partido Estudantil Popular (PEP) e a Associação Brasileira de Estudantes Secundaristas (ABES), organizações que pretendiam se firmar como alternativas à UNE.
A carreira de geógrafo
Milton se graduou em direito em 1948, mas preferiu se dedicar ao ensino da geografia. Ele atuou como professor do Instituto Central de Educação Isaías Alves (ICEIA) e do Colégio Central e prestou concurso para ocupar a cadeira de Geografia Humana no Colégio Municipal de Ilhéus.
Foi nesse período que Milton iniciou uma longa trajetória de aportes teóricos à geografia brasileira, publicando o livro Zona do Cacau — obra que seria futuramente integrada à Coleção Brasiliana, já permeada pela influência da escola francesa do pós-guerra, priorizando a análise dos aspectos demográficos e econômicos nas relações cidade-campo.
Em Ilhéus, Milton conheceu Jandira Rocha, que se tornaria sua esposa e mãe de seu primogênito, batizado Milton Santos Filho. Em 1956, ele retornou à capital baiana, tornando-se professor da Faculdade Católica de Filosofia. Dedicou-se paralelamente ao jornalismo, escrevendo artigos para o jornal “A Tarde”, onde ascenderia ao cargo de editor.
Durante o Congresso Internacional de Geografia, sediado no Rio de Janeiro, Milton recebeu o convite para realizar sua pós-graduação na França. O brasileiro estudou por dois anos na Universidade de Estrasburgo, doutorando-se com a tese O Centro da Cidade de Salvador, sob orientação de Jean Tricart. Na obra, Milton analisa as dinâmicas espaciais e sociais da capital baiana, destacando as desigualdades urbanas e a segregação socioespacial.
A temporada na França aproximou Milton do pensamento marxista e do incipiente movimento anticolonial, contribuindo para a formulação da abordagem crítica que caracterizaria seu trabalho.
De volta ao Brasil, Milton prestou concurso para o cargo de livre-docente da UFBA, onde fundou o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais. O laboratório se destacaria por sua proposta pedagógica inovadora, fomentando os estudos multidisciplinares e o intercâmbio com outras comunidades acadêmicas, priorizando o trabalho de campo e efetuando estudos e diagnósticos inéditos sobre estado da Bahia.
Data desse período o importante Programa de Estudos Geomorfológicos e de Geografia Humana da Bacia do Rio Paraguaçu, conduzido pelo laboratório com o objetivo de fomentar projetos de desenvolvimento socioeconômico na região, bem como as pesquisas sobre o uso da terra no Recôncavo Baiano e na Zona Cacaueira, efetuadas a pedido do Serviço Social Rural.
Atuação no governo e o golpe de 1964
Em meio ao contexto de forte agitação social que marcou o início da década de 1960, Milton intensificou sua atuação política e suas atividades jornalísticas, aproximando-se da esquerda nacionalista. Em 1961, ele viajou para Cuba acompanhando a comitiva de Jânio Quadros, recém-eleito Presidente da República.
Nesse mesmo ano, Milton assumiu o cargo de subchefe da Casa Civil na Bahia. Dois anos depois, foi nomeado presidente da Comissão de Planejamento Econômico (CPE) por Lomanto Júnior, governador da Bahia, sendo responsável por elaborar uma série de projetos de desenvolvimento e integração econômica regional.
Nessa função, Milton propôs medidas de fomento à justiça social, recomendando a criação de um imposto sobre grandes fortunas e de dispositivos para disciplinar a aplicação do capital estrangeiro e limitar a remessa de lucros para o exterior. Essas propostas geraram indignação dos setores conservadores, que exigiram a demissão do geógrafo.
Após a deposição de João Goulart no golpe de 1964 e a subsequente instalação da ditadura militar no Brasil, Milton seria perseguido pelo regime. Ele foi afastado de todas as suas funções públicas e preso no 19º Batalhão de Caçadores em Salvador.
A prisão de Milton causou consternação na comunidade acadêmica e vários intelectuais se mobilizaram para exigir sua libertação. O geógrafo somente seria solto em junho, logo após sofrer um início de AVC que forçou sua internação hospitalar.

Milton Santos em 1977 durante entrevista ao Jornal do Brasil
Reprodução / Site Milton Santos
Exílio e périplo pelo mundo
Graças à intervenção de Raymond Van der Haegen, cônsul francês na Bahia, Milton obteve autorização do regime militar para deixar o país, partindo para o exílio na França. Ele passou a lecionar na Universidade de Toulouse, que posteriormente lhe concederia o título de doutor “Honoris Causa”.
Posteriormente, Milton se mudou para Bordeaux, onde iniciou um relacionamento com a geógrafa Marie Hélène Tiercelin, sua segunda esposa e mãe de seu segundo filho, Rafael. Em seguida, fixou residência em Paris, onde trabalhou como professor da Sorbonne e diretor de pesquisas em planejamento urbano do Instituto de Estudos em Desenvolvimento Econômico e Social (IEDES).
Milton Santos permaneceu na França até 1971, quando se mudou para o Canadá, passando a lecionar na Universidade de Toronto. Depois, residiu nos Estados Unidos, onde foi colega de Noam Chomsky no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
O brasileiro também morou na Venezuela, onde coordenou projetos de planejamento urbano no âmbito do programa “Venezuela Hoje”, mantido pela ONU. No Peru, Milton deu aulas na Faculdade de Engenharia de Lima e elaborou estudos sobre a pobreza urbana e a exclusão social na América Latina, a pedido da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Em seguida, Milton visitou a Tanzânia, a fim de organizar o curso de pós-graduação em geografia da Universidade de Dar es Salaam. Tornou-se muito próximo do presidente do país, Julius Nyerere, que estava à frente da a implementação do “Ujamaa”, o programa socialista tanzaniano. Milton regressou posteriormente aos Estados Unidos para lecionar por um breve período na Universidade de Columbia, em Nova York.
Retorno ao Brasil
Milton Santos retornou para o Brasil em 1977, já no período da distensão. Ele pretendia reassumir o cargo de professor na UFBA, mas sua reintegração foi rejeitada. Atuou então como consultor da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa) e foi professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde lecionou até 1983.
Em 1978, Milton publicou o livro Por uma Geografia Nova, uma obra fortemente influenciada pelo pensamento marxista. Nela, o autor defende a necessidade de uma revisão teórica para superar os vícios da geografia tradicional, priorizando uma abordagem embasada pela contextualização e análise crítica sobre as mazelas do capitalismo.
No ano seguinte, Milton lançou O Espaço Dividido, que se tornaria um marco da geografia crítica e uma obra de referência sobre o fenômeno do subdesenvolvimento e da dependência econômica. No livro, Milton esboça uma teoria do espaço e da urbanização nos países periféricos, analisando a forma como a divisão internacional do trabalho, as dinâmicas socioeconômicas e as desigualdades sociais estruturam o espaço geográfico.
Em 1984, Milton foi contratado como professor titular do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), permanecendo nessa instituição até depois de sua aposentadoria.
Atuou ainda como professor-visitante da Universidade de Stanford, diretor de estudos na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais de Paris, consultor da ONU, OIT, OEA e UNESCO, coordenador de arquitetura e urbanismo da FAPESP e presidente da Associação de Pós-graduação e Pesquisa em Geografia.
O legado de Milton Santos
Milton Santos teve participação fundamental no movimento de renovação do ensino e da pesquisa em geografia no Brasil, contestando os pressupostos teóricos e os parâmetros neopositivistas da chamada “Nova Geografia” e rechaçando a abordagem teórico-quantitativa priorizada durante a ditadura militar.
Principal expoente da geografia crítica brasileira, ele se notabilizou por defender a ideia de uma geografia humanizada, centrada no caráter social do espaço e na compreensão dos problemas estruturais do sistema capitalista, alertando sobre a exclusão social inerente ao pensamento neoliberal. Milton escreveu mais de 40 livros, publicados em diversos idiomas e países.
O brasileiro também foi um dos primeiros intelectuais a oferecer uma análise crítica da globalização. Ele defendia a ideia de que a globalização estava sendo moldada a partir de uma lógica perversa, que atendia às demandas do neoliberalismo, ampliando a concentração de riquezas e poder nas mãos das classes dominantes, ao mesmo tempo em que aprofundava a exclusão e as desigualdades nos países periféricos.
As ideias de Milton sobre a globalização são aprofundadas em duas obras publicadas nos anos 90: “A Natureza do Espaço”, onde aborda a fragmentação do espaço geográfico por imposição do capital, e “Por uma Outra Globalização”, onde sintetiza de forma didática as críticas à lógica excludente da globalização neoliberal e exorta a construção de uma “outra globalização”, centrada na construção de um mundo mais justo e igualitário e nas demandas reais da população.
Em 1994, Milton Santos foi laureado com o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, o “Nobel de Geografia”, permanecendo até hoje como único latino-americano a obter tal distinção. Ele é um dos brasileiros mais agraciados com títulos de doutor “Honoris Causa”, com doze títulos conferidos por universidades brasileiras e outros oito provenientes de instituições estrangeiras.
Milton Santos faleceu em São Paulo, em 24 de junho de 2001, aos 75 anos. Foi postumamente homenageado com o lançamento do documentário “Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá”, do cineasta Sílvio Tendler, que discute os problemas da globalização sob a perspectiva dos países periféricos.