Quarta-feira, 14 de maio de 2025
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Há 25 anos, em 30 de outubro de 1999, o Brasil se despedia da psiquiatra alagoana Nise da Silveira. Pioneira da psicoterapia ocupacional, Nise se destacou internacionalmente por promover a humanização do tratamento psiquiátrico, ajudando a abolir práticas como o confinamento em sanatórios, o eletrochoque e a lobotomia. Foi fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente e da Casa das Palmeiras e autora de obras de referência da psiquiatria nacional.

Nascida em Maceió, Nise da Silveira era filha da pianista Maria Lídia e do professor Faustino Magalhães, diretor do Jornal de Alagoas. Após cursar o ensino básico no Colégio Santíssimo Sacramento, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, tornando-se a única mulher de sua turma. Graduou-se em 1926, entrando para o seleto rol das primeiras mulheres formadas em medicina no Brasil. Pouco tempo após a graduação, casou-se com o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, que seria seu companheiro pelo resto da vida. Aprofundou seu interesse pelas questões sociais após ter contato com os artigos de Mário Magalhães versando sobre os impactos da pobreza e da desigualdade social nos problemas sanitários.

Em 1927, Nise mudou-se para o Rio de Janeiro, em busca de oportunidades de trabalho. Frequentou os círculos artísticos e literários da antiga capital federal e travou amizade com o farmacêutico Otávio Brandão, que a incentivou a estudar o marxismo. No início da década de trinta, Nise filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (antigo PCB) e tornou-se uma das signatárias do “Manifesto dos Trabalhadores Intelectuais ao Povo Brasileiro“, documento que exortava a luta popular contra a opressão e reconhecia os avanços do governo socialista da União Soviética. Pouco tempo depois, entretanto, Nise foi expulsa do partido, acusada de ser trotskista.

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Em 1932, Nise estagiou na clínica neurológica de Antônio Austregésilo, pioneiro da neurologia no Brasil. No ano seguinte, foi aprovada em concurso público para trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha, onde passou a atuar como médica psiquiatra e pesquisadora. Após o Levante Comunista de 1935, Nise tornou-se alvo da repressão do governo de Getúlio Vargas. Denunciada por posse de livros marxistas, foi presa em 1936, permanecendo por quase dois anos detida no Presídio Frei Caneca. Durante a prisão, conheceu o escritor Graciliano Ramos, que a incluiria entre os personagens retratados no livro “Memórias do Cárcere“.

Após ser libertada, Nise retornou ao Nordeste e aprofundou seus estudos filosóficos, interessando-se pelas obras de Baruch Spinoza — fato que a influenciaria a escrever “Cartas a Spinoza“, publicado em 1995. Com o fim do Estado Novo e a subsequente anistia aos militantes comunistas, Nise foi reintegrada ao serviço público, voltando a atuar no Centro Psiquiátrico Pedro II. Incomodada com o tratamento desumano dispensado aos pacientes, Nise pressionou pela abolição das terapias arcaicas e começou a se negar a aplicar eletrochoques. Foi então transferida para o trabalho com a terapia ocupacional, onde os pacientes eram obrigados a realizar tarefas de limpeza e manutenção do hospital.

À frente da Seção de Terapêutica Ocupacional, Nise determinou a substituição das tarefas de manutenção e limpeza por atividades artísticas e recreativas, criando ateliês de pintura e modelagem para uso dos internos. As mudanças foram extremamente benéficas, permitindo o estímulo dos recursos físicos, cognitivos e emocionais dos pacientes, levando ao alívio dos sintomas e à diminuição do estresse e incentivando a recomposição dos vínculos dos internos com a realidade.

Brazilian National Archives
Nise da Silveira nos anos 70

Nise também vinculou a análise da produção artística dos pacientes ao diagnóstico e tratamento clínico, baseando-se nas ideias do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung sobre as memórias do inconsciente. O trabalho pioneiro de Nise teria reconhecimento internacional e profundo impacto sobre o desenvolvimento da arte-terapia.

Em 1952, Nise fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, um centro de pesquisa destinado a conservar, estudar e expor as obras produzidas pelos pacientes do Centro Psiquiátrico Nacional. O museu se converteu em pouco tempo em uma referência internacional em arte-terapia.

Quatro anos depois, Nise inaugurou a Casa das Palmeiras, primeira clínica psiquiátrica a funcionar em regime de externato no Brasil. Tendo como enfoque a reintegração dos pacientes à vida em sociedade, a Casa das Palmeiras tornou-se o modelo para a criação dos primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) — um modelo de tratamento psiquiátrico posteriormente encampado pelo SUS. Nise também foi uma das precursoras da terapia assistida por animais, incentivando pacientes a cuidarem de animais abandonados como parte do processo de recomposição das referências afetivas e do senso de responsabilidade. A experiência foi relatada no livro “Gatos, a Emoção de Lidar“, publicado em 1998.

Nise também foi pioneira na introdução e divulgação da psicologia junguiana no Brasil. A médica manteve prolífico contato com Carl Gustav Jung a partir de 1954, tendo sido incentivada pelo psiquiatra suíço a expor os trabalhos de seus pacientes durante o II Congresso Internacional de Psiquiatria, sediado em Zurique em 1957. Jung acompanhou Nise à mostra, orientando-a sobre o processo de análise dos trabalhos e o estudo das referências religiosas e mitológicas para identificar e compreender os arquétipos. Nise estudou no Instituto Carl Gustav Jung entre 1957 e 1962, onde recebeu orientação da renomada psicoterapeuta Marie-Louise von Franz. Após retornar ao Brasil, publicou o livro “Jung: Vida e Obra” e fundou o Grupo de Estudos Carl Jung, que presidiu até 1968.

Nas décadas seguintes, Nise seguiu atuando em prol da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica e publicou diversos trabalhos. Além das obras supracitadas, escreveu “Vinte Anos de Terapêutica Ocupacional no Engenho de Dentro” (1977), “Casa das Palmeiras” (1986) e “O Mundo das Imagens” (1992) e coordenou o livro “A Farra do Boi” (1989). Recebeu inúmeros prêmios e comendas, incluindo a Ordem do Rio Branco e a Ordem Nacional do Mérito Educativo. Foi membra-fundadora da Sociedade Internacional de Expressão Psicopatológica, sediada em Paris, e influenciou a criação de inúmeras instituições ligadas à arte-terapia no Brasil e no mundo.

Nise faleceu no Rio de Janeiro aos 94 anos, em 30 de outubro de 1999. Sua vida foi retratada no filme “Nise: O Coração da Loucura“, dirigido por Roberto Berliner e lançado em 2016. Em 2022, o congresso aprovou o projeto elaborado pela deputada federal Jandira Feghali, do PCdoB, para incluir o nome de Nise da Silveira no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O projeto foi vetado por Jair Bolsonaro, que alegou “não ser possível avaliar o impacto do trabalho de Nise no Brasil”, mas o veto foi derrubado pelo congresso dois meses depois.