Nísia Floresta: pioneira do feminismo e da educação libertadora no Brasil
Ela foi primeira autora do país a publicar textos em defesa dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero
Há 140 anos, em 24 de abril de 1885, falecia a educadora, escritora e poetisa Nísia Floresta. Considerada a precursora do feminismo no Brasil, ela foi a primeira autora do país a publicar textos em defesa dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero.
Nísia também se consagrou como uma pioneira da educação libertadora, ao fundar um colégio feminino que se destacou por romper com o ensino tradicional — substituindo a preparação das meninas para o matrimônio e a maternidade por uma educação ampla no campo das artes, ciências e humanidades.
A atuação intelectual de Nísia também abrangeu a crítica social aos costumes do seu tempo, a defesa dos povos indígenas e a denúncia dos horrores da escravidão. Ela viveu parte de sua vida na Europa, onde teve contato com o positivismo e tornou-se uma das mais notórias discípulas de Auguste Comte.
A juventude de Nísia
Nísia Floresta era o pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, nascida em 12 de outubro de 1810, em Papari (atual município de Nísia Floresta), no interior do Rio Grande do Norte. Ela era filha do português Dionísio Gonçalves Pinto, um advogado com ideias liberais, e da brasileira Antônia Clara Freire.
A origem portuguesa do pai trouxe alguns contratempos à família — estigmatizada pelo sentimento antilusitano que crescia durante os movimentos independentistas. Em 1817, a eclosão da Revolução Pernambucana obrigaria os Gonçalves Pinto a se mudarem para Goiana, no interior de Pernambuco. Nesse local, Nísia cursou as primeiras letras, frequentando o Convento das Carmelitas.
A jovem também foi bastante influenciada pelo pai, que a apresentou ao pensamento liberal e a estimulou a ter contato com a leitura. Ainda durante a adolescência, Nísia aprendeu a falar francês e latim e estudou ciências naturais e filosofia.
Em 1823, quando tinha apenas 13 anos de idade, Nísia foi submetida a um casamento arranjado com o fazendeiro Manuel Alexandre Seabra de Melo. A união foi extremamente conturbada e durou menos de um ano. Nísia deixou o marido e retornou à casa dos pais — um ato de “transgressão” que lhe custou uma série de julgamentos.
No ano seguinte, a família se mudou para Olinda, onde o pai de Nísia deu continuidade à carreira de advogado. Ele se envolveria em uma contenda jurídica com uma família poderosa de Pernambuco e seria assassinado pouco tempo depois, em agosto de 1828, a mando do capitão-mor Uchoa Cavalcanti.
Ainda em 1828, Nísia iniciou um relacionamento com Manuel Augusto de Faria Rocha, seu futuro marido. O casal teve uma filha em 1830, batizada como Lívia Augusta. O segundo filho, nascido em 1831, faleceu precocemente. Em 1833, Nísia deu à luz ao terceiro filho, Augusto Américo. Nesse mesmo ano, seu marido faleceu repentinamente, deixando-a sozinha duas crianças pequenas.
“Direitos das Mulheres”
Nísia iniciou sua atividade como escritora em 1831, escrevendo artigos para o Espelho das Brasileiras, um jornal voltado à comunidade feminina de Pernambuco, mantido pelo tipógrafo francês Adolphe Emille de Bois Garin. Foi nessa ocasião que a jovem escritora elaborou suas primeiras análises sobre as questões femininas.
No ano seguinte, Nísia lançou seu primeiro livro: Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, publicado sob o pseudônimo “Nísia Floresta Brasileira Augusta”. O livro se tornou um marco histórico do movimento feminista brasileiro. Foi a primeira obra a pautar a luta pela emancipação feminina e pela igualdade de gênero e a reivindicar o acesso das mulheres aos sistemas de ensino.
O livro foi inspirado pela obra Reivindicação dos Direitos da Mulher, da autora britânica Mary Wollstonecraft. Estudos posteriores o descreveram como uma tradução adaptada de “La femme n’est pas inferieure a l’homme” (A mulher não é inferior ao homem), uma obra de autoria desconhecida publicada na França em meados do século 18.
Entre 1832 e 1837, Nísia viveu em Porto Alegre, onde trabalhou como professora do magistério e deu aulas particulares. O acirramento dos combates da Revolução Farroupilha, no entanto, forçou a escritora a se mudar mais uma vez, agora para o Rio de Janeiro.
O Colégio Augusto
Na capital do Império, Nísia fundou o Colégio Augusto, destinado ao público feminino. A instituição se destacou pela abordagem pedagógica inovadora, que buscava superar o modelo de ensino para mulheres então vigente — tradicionalmente composto por aulas de etiqueta, lições sobre tarefas domésticas e ensinamentos sobre obrigações conjugais e maternidade.
Nísia acreditava que a educação era a base para a emancipação feminina e trabalhava para que suas alunas desenvolvessem independência intelectual. Assim, seu colégio priorizava o ensino de filosofia, história, geografia, línguas, literatura, matemática e ciências naturais. Isso é, Nísia ensinava às meninas o mesmo conteúdo dos melhores colégios masculinos da época.
A proposta pedagógica do Colégio Augusto antecipava em décadas a luta pela valorização da autonomia intelectual feminina e o reconhecimento do papel emancipador da educação nas questões de gênero. Nísia não pretendia formar esposas obedientes, mas mulheres cultas, intelectualizadas e dotadas de espírito crítico.
O Colégio Augusto ganhou prestígio, atraindo filhas de famílias abastadas, mas enfrentou muitas críticas de setores conservadores que viam a educação para mulheres como uma ameaça à ordem social.
Nísia foi duramente atacada na imprensa por querer “prover ensinamentos desnecessários”. Em um artigo reprovando o método pedagógico do colégio, o Jornal Mercantil chegou a dizer que a sociedade precisava de “mulheres que trabalhem mais e falem menos”.
O Colégio Augusto seguiria em funcionamento por 17 anos, até 1856, deixando uma contribuição de grande importância para a inclusão das mulheres no âmbito educacional.

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Outras obras
Em paralelo ao seu trabalho como educadora, Nísia deu continuidade à sua produção intelectual, escrevendo uma série artigos e crônicas, tratando de temas variados. Consolidou-se assim como uma das raras vozes femininas a circular nos espaços públicos e nos meios editoriais do Brasil Império.
As obras de Nísia se caracterizavam pelo didatismo e pelo constante diálogo com a produção internacional. A autora efetuava um delicado processo de adaptação dos conceitos à realidade brasileira, sempre mantendo o foco no que ela considerava o cerne da desigualdade de gênero: a ausência de acesso à educação.
Em 1842, Nísia publicou seu segundo livro, Conselhos à Minha Filha, no qual a autora oferece orientações sobre ética e educação e reforça a ideia de que as mulheres deveriam ser preparadas para exercer papéis ativos na sociedade, e não apenas para a vida doméstica. Em 1847, a autora lançou Daciz, ou a Jovem Completa e Fany, ou o Modelo das Donzelas, também versando sobre educação e carregados de reflexões sobre a condição feminina.
Entre 1849 e 1852, Nísia esteve na Europa buscando tratamento para a filha, Lívia, que havia se acidentado ao cair de um cavalo. Após retornar ao Brasil, ela publicou Opúsculo Humanitário, uma de suas obras mais importantes. O livro consiste em um compilado de 62 artigos sobre a educação feminina e traz um apanhado abrangente sobre a história das mulheres ao longo de várias civilizações.
Opúsculo Humanitário também critica o despreparo dos diretores de escolas brasileiras para o exercício da missão educacional e denuncia a manutenção de um ensino precário como ferramenta de domínio político. “Quanto mais ignorante o povo, tanto mais fácil é a um governo absoluto exercer sobre ele o seu ilimitado poder”, explica a autora em um trecho do livro.
O ativismo de Nísia ultrapassava as questões de gênero. Ela também criticou o tratamento desumano dado aos povos indígenas e condenou a escravidão. No poema A Lágrima de um Caeté, lançado em 1849, Nísia fala sobre a opressão dos povos originários e a barbárie dos colonizadores.
Já em Páginas de uma Vida Obscura, publicado em 1855, a escritora narra a história de um africano escravizado, forçado a trabalhar até a morte, e apresenta suas reflexões sobre o regime escravocrata. Nísia também se tornaria uma militante ativa no movimento abolicionista a partir da década de 1870.
Trajetória na Europa
A partir de 1855, Nísia passou a viver na Europa. Ela viajou para várias cidades e passou longas temporadas na Itália, Grécia, Alemanha e Inglaterra, antes de se estabelecer na França. Em Paris, Nísia frequentou os salões literários e os círculos intelectuais e aprofundou seu contato com os ideais iluministas e positivistas que influenciaram a sua visão pedagógica e a sua crítica social.
A brasileira se tornou amiga e discípula do filósofo francês Auguste Comte, que a elogiou efusivamente por sua abordagem emancipatória. Nísia ajudaria a adaptar o positivismo ao contexto brasileiro e às suas ideias sobre educação feminina e direitos das mulheres.
Em 1857, Nísia faria um discurso célebre junto ao túmulo de Clotilde de Vaux, a musa inspiradora de Comte e cofundadora da Religião da Humanidade. Esse discurso se tornaria um elemento de culto presente no positivismo religioso.
Mesmo distante do Brasil, Nísia continuou acompanhando e se fazendo presente nos debates políticos e sociais pertinentes ao país, posicionando-se a favor das reformas na educação e da abolição da escravatura. Seu cosmopolitismo contribuiu para enriquecer o debate nos círculos intelectuais brasileiros com perspectivas universais, sem perder de vista as particularidades da realidade nacional.
O legado de Nísia
Nísia Floresta morreu em 24 de abril de 1885, em Rouen, na França, aos 74 anos de idade. Seus restos mortais só retornaram ao Brasil quase sete décadas depois, em 1954.
O reconhecimento do legado de Nísia foi consideravelmente tardio. A trajetória da autora começou a ser resgatada por estudiosas do movimento feminista a partir da década de 1980 — com destaque para Constância Lima Duarte, que publicou Nísia Floresta: uma mulher à frente do seu tempo e organizou edições comentadas de sua obra.
Com esse esforço, passou-se a compreender a profundidade do pensamento de Nísia e a sua inegável importância como pioneira do movimento feminista e da educação emancipadora. Antes mesmo do termo “feminismo” ser cunhado, Nísia já articulava a construção de uma crítica contundente ao patriarcado e identificava que a opressão feminina estava enraizada em um projeto educacional limitador, que visava ensinar as mulheres apenas a obedecer, e não a pensar.
