No mundo inteiro, veículos de mídia estão se preparando para celebrar os 150 anos do nascimento do premiê britânico Winston Churchill. As chamadas divulgadas até o momento antecipam o tom laudatório que podemos esperar da cobertura, repleta de expressões como “o homem mais importante do século 20” e elegias ao papel desempenhado pelo primeiro ministro na luta contra o nazismo.
Um fato histórico deverá passar ao largo das celebrações, cuidadosamente omitido do currículo de Churchill: a Fome de Bengala. Considerada uma das piores crises famélicas da história, a fome foi resultado direto das políticas impostas por Churchill e matou até 4,5 milhões de pessoas — a maioria dos quais crianças.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a região de Bengala, território que engloba o leste da Índia e parte do Bangladesh, ainda era uma possessão colonial do Império Britânico. A principal base de alimentação dos habitantes de Bengala era o arroz, que se tornava cada vez mais inacessível devido a uma conjunção de fatores. Cerca de 20% do arroz consumido pelos bengaleses era importado da Birmânia, outra colônia britânica situada no Sudeste Asiático.
Em 1942, entretanto, a Birmânia foi invadida pelo Japão, causando a interrupção do comércio de arroz com a Índia. Nesse mesmo ano, um ciclone atingiu a costa leste de Bengala, causando uma enorme inundação que destruiu boa parte dos arrozais.
Com a destruição da safra, a população de Bengala passou a depender de seus estoques de arroz e da importação de trigo para se alimentar. Entretanto, o primeiro-ministro do Reino Unido, Winston Churchill, tinha outros planos. O premiê britânico negou autorização para que as autoridades coloniais da Índia comprassem trigo, afirmando que a prioridade era suprir a escassez de alimentos dos aliados europeus.
Ao mesmo tempo, Churchill ordenou que os produtores de Bengala enviassem seus estoques de arroz para uso das tropas britânicas que estavam estacionadas na Grécia, no Egito e no Oriente Médio. Até mesmo os estoques excedentes foram requisitados pelo império britânico, visando armazenar o arroz em regiões menos propensas a serem invadidas pelo Japão.
A escassez de arroz em Bengala foi potencializada pela inflação de guerra, levando ao aumento exponencial do preço do grão, que logo excedeu o poder de compra dos bengaleses. O governo britânico foi informado repetidas vezes sobre o que estava ocorrendo, mas se recusou a intervir para controlar os preços e não tomou medidas para importar ou redistribuir os estoques de outras regiões.
Visando atenuar o problema, as autoridades coloniais da Índia organizaram medidas como distribuição gratuita de sopa, mas em uma escala absolutamente insuficiente para atender a demanda. Filas quilométricas de bengaleses se formavam nos postos de distribuição, mas a imensa maioria aguardava em vão.
Churchill foi novamente alertado de que as políticas restritivas impostas pelo Reino Unido provocariam uma catástrofe em Bengala, mas não se incomodou. O premiê britânico, na verdade, tentou em diversas ocasiões impedir que os famintos recebessem ajuda. Além de negar os pedidos de carregamentos emergenciais feitos pelos indianos, Churchill recusou as ofertas de ajuda que foram feitas pelos países aliados.
Navios com carregamentos de arroz oriundos da Austrália passavam rotineiramente pela costa de Bengala, mas Churchill não autorizava o desembarque, alegando que era necessário suprir as reservas no Mediterrâneo. Quando o administrador colonial Richard Temple tentou criar um programa de distribuição de alimentos em larga escala, Churchill vetou a iniciativa, sob a justificativa que a fome era irrelevante e que os recursos deveriam ser prioritariamente alocados no esforço de guerra.
A negligência criminosa de Churchill pode ter sido motivada por seu ódio racial aos indianos. O primeiro-ministro nunca escondeu sua crença na “supremacia branca” e seu desprezo pelo povo indiano, que considerava uma “raça inferior”. Em um diálogo com Leo Amery, secretário-geral da Índia, o premiê confidenciou: “Eu odeio os indianos. São um povo bestial com uma religião bestial”. Em outra ocasião, Churchill chegou a afirmar que se a população de Bengala morresse de fome, a culpa seria dos próprios indianos, que “se reproduzem como coelhos”.
Com a escassez de alimentos, a fome se alastrou por Bengala em 1943. Camponeses migraram para os grandes centros urbanos — sobretudo para Calcutá, onde multidões de perambulavam pelas ruas implorando por ajuda. Centenas de milhares de famílias pereceram dentro de suas casas, enquanto outras definhavam em praça pública, à vista de todos. Massas esqueléticas se digladiavam por restos de comida, enquanto os colonizadores britânicos seguiam desfrutando de fartas refeições no conforto de suas casas.
Pouco a pouco, as aldeias e cidades ficaram cheias de cadáveres em decomposição, acumulados nas ruas. Tal fato agravou a situação, com a disseminação de doenças como cólera, tifo e disenteria, que se expandiram sem controle e levaram ao colapso do sistema de saúde, ceifando outras centenas de milhares de vidas. Estima-se que a Fome de Bengala tenha matado de 3 a 4,5 milhões de pessoas.
A Fome de Bengala acentuou a agitação civil e o sentimento anticolonial, já insuflados pelo movimento independentista que estava em curso na Índia. Os indianos iniciaram uma série de protestos e rebeliões, mas foram violentamente reprimidos.
Diante do cenário de caos, Leo Amery e Archibald Wavell, comandante-em-chefe da Índia britânica, encaminharam a Churchill um pedido urgente para que os estoques de alimentos do país fossem liberados. Por telegrama, o premiê britânico recusou novamente o pedido e ironizou: “se os alimentos são tão escassos assim, por que Gandhi não morreu ainda?”. A postura de Churchill irritou Amery, que afirmou posteriormente “não ver muita diferença entre a perspectiva do primeiro-ministro e a de Adolf Hitler”.
Mas, ao contrário de Hitler, Churchill não foi afetado com a fama de grande genocida ou confrontado com as consequências hediondas de suas ações. Ao contrário. Foi heroicizado por filmes de Hollywood e é até hoje incensado pelos liberais e pela imprensa ocidental. Ele chegou a ser eleito como “o maior britânico do século XX” e ganhou um Prêmio Nobel. Da mesma forma, a fome que matou milhões de pessoas em Bengala parece não incomodar os ideólogos liberais ou as lideranças do Ocidente, que anualmente expressam seu horror diante da crise famélica da Ucrânia dos anos 30, depositando flores nos memoriais do “Holodomor”.
Churchill parecia ter consciência de que sua fortuna historiográfica seria positiva, a despeito das atrocidades que cometeu na Índia. Ele costumava repetir: “a história será gentil comigo, porque eu mesmo pretendo escrevê-la”.
Quanto a isso, infelizmente, ele tinha razão.