Há 51 anos, em 11 de setembro de 1973, o Palácio de La Moneda, sede do governo chileno, era bombardeado pelas Forças Armadas do Chile durante o Golpe de Estado que derrubou o governo de Salvador Allende. Comandada por Augusto Pinochet e perpetrada com apoio dos Estados Unidos, a quartelada instaurou uma das ditaduras militares mais sangrentas da América Latina.
Membro-fundador do Partido Socialista do Chile, Salvador Allende era reconhecido por suas contribuições para a classe trabalhadora desde a década de 30. Eleito deputado em 1937, elaborou projetos de lei voltados às demandas sociais. Formado em medicina, serviu como Ministro da Saúde no governo de Pedro Aguirre Cerda, implementando importantes programas de expansão da rede assistencial, distribuição de medicamentos e combate a epidemias. Em 1945, foi eleito senador e seguiu advogando pelas reformas sociais e econômicas.
Já consolidado como um dos principais líderes da esquerda chilena, Allende disputou a eleição presidencial pela primeira vez em 1952, obtendo somente 5% dos votos. Voltou a se candidatar no pleito de 1958, mas teve de dividir os votos do campo popular com a candidatura de Antonio Zamorano.
Na terceira candidatura, em 1964, Allende foi prejudicado pela interferência norte-americana no pleito, que despejou recursos na campanha de seu rival, Eduardo Frei, do Partido Democrata-Cristão. Em 1970, entretanto, Allende conseguiu unificar a esquerda chilena e formar uma ampla base de apoio, lançando-se como candidato da Unidade Popular — coalizão de partidos de esquerda, composta por seis agremiações.
Allende ficou em primeiro lugar no pleito de 1970. Sua candidatura amealhou 36,2% dos votos, contra 34,9% do conservador Jorge Alessandri e 27,8% do democrata-cristão Radomiro Tomic. À época, a legislação chilena previa que, caso nenhuma candidatura obtivesse maioria absoluta, seria realizada uma votação indireta de segundo turno, onde os membros do Congresso nacional decidiriam quem seria o vencedor entre os dois candidatos mais bem votados.
A Unidade Popular iniciou então uma bem sucedida articulação no parlamento, conseguindo atrair o apoio dos democratas-cristãos, moderados e independentes. Após conquistar quase 80% dos votos dos congressistas, Allende foi confirmado como presidente.
A eleição de Allende era uma novidade surpreendente. Era a primeira vez que um candidato marxista, defensor aberto do socialismo, era eleito presidente em uma democracia liberal. Allende defendia a construção de uma “via chilena para o socialismo”, reivindicando a possibilidade de uma transição pacífica e democrática, coexistindo com as instituições burguesas.
Essa transição seria implementada através das nacionalizações e reformas estruturais, legitimadas pela vontade popular. A estratégia desafiava a concepção de transição para o socialismo da esquerda revolucionária, que preconizava que a supressão do domínio político das classes dominantes era condição indispensável para garantir quaisquer avanços.
Tão logo assumiu o governo, Allende deu início a um ambicioso programa de reformas sociais e econômicas. Nomeado Ministro da Economia, o socialista Pedro Vuskovic deu início à nacionalização de setores estratégicos, encampando a produção de energia, companhias siderúrgicas e metalúrgicas, indústrias pesadas e serviços essenciais. O sistema bancário foi progressivamente estatizado, por intermédio da compra sistemática de ações promovida pela Corporação de Fomento à Produção.
Uma das principais bandeiras do governo Allende — bem com uma das medidas mais populares entre o povo chileno — foi a nacionalização completa da mineração do cobre. Embora seja um dos sustentáculos da economia chilena, respondendo por mais da metade das exportações do país, a indústria do cobre era quase totalmente controlada por empresas estrangeiras até 1971. Nesse ano, Allende aprovou a Lei 17.450, nacionalizando a indústria do cobre, que passou a ser gerido pela estatal Codelco — Corporação Nacional do Cobre do Chile.
A reforma agrária foi outra iniciativa central de Allende. O líder socialista aprofundou substancialmente a reforma que havia sido iniciada por Eduardo Frei, dotando a Corporação da Reforma Agrária de instrumentos para acelerar a desapropriação de latifúndios. Somente em 1971, mais de 2 milhões de hectares de terras foram desapropriados e distribuídos entre os camponeses. Até o fim da sua gestão, cerca de 30% das terras aráveis do Chile seriam destinadas à redistribuição.
As reformas econômicas implementadas por Allende foram acompanhadas de uma série de programas sociais, políticas de distribuição de renda e aumento da oferta de serviços públicos, que tiveram impacto bastante positivo nas condições de vida da classe trabalhadora.
O programa de distribuição de leite e alimentos nas escolas públicas possibilitou uma redução de 60% do índice de desnutrição infantil. O Serviço Nacional de Saúde foi enormemente expandido, elevando em 37% a quantidade de consultas ambulatoriais anuais. O governo inaugurou uma rede de clínicas especializadas e implementou campanhas de vacinação em massa. Houve também o fortalecimento da rede pública de educação, com a construção de novas escolas e implementação de programas de auxílio para universitários.
Por fim, Allende buscou promover a politização da sociedade como parte da estratégia da transição democrática rumo ao socialismo. Foram criadas iniciativas de participação ativa dos trabalhadores na gestão de empresas e instituições governamentais. Através da criação de conselhos comunitários, o governo buscava envolver a população nos debates políticos e fortalecer o peso da opinião pública na tomada de decisões. A estrutura de comunicação governamental também foi mobilizada em prol desse projeto. O Canal Nacional de Televisão foi fortalecido e a Editora Quimantú distribuiu mais de 12 milhões de livros e revistas gratuitamente.
As reformas promovidas por Allende incomodaram os setores mais conservadores da sociedade chilena, que sentiam que seus privilégios políticos, sociais e econômicos estavam ameaçados.
A reforma agrária causou indignação entre os latifundiários, que passaram a estimular a violência no campo. A estatização de empresas gerou o desconforto do alto empresariado, que logo passaria a exigir a revogação das reformas. As multinacionais expropriadas foram ainda mais incisivas em sua oposição. A nacionalização do cobre levou as corporações norte-americanas a exigirem um embargo contra o governo chileno. A International Telephone & Telegraph (ITT) demandou que a Casa Branca tomasse providências após o governo chileno estatizar o serviço de telefonia.
A bem da verdade, o governo norte-americano — sob a administração de Richard Nixon e seu conselheiro de segurança nacional, Henry Kissinger — já vinha “tomando providências” desde antes da eleição de Allende. A possibilidade de ascensão de um governo socialista na América Latina, após a experiência da Revolução Cubana e em plena vigência da Guerra Fria, era considerada inaceitável para a Casa Branca.
Ao longo dos anos 60, os Estados Unidos já tinham apoiado uma série de golpes de Estado, visando substituir governos de esquerda, nacionalistas ou anti-imperialistas da região por regimes alinhados aos ditames de Washington — resultando nas quarteladas ocorridas no Brasil (1964), Argentina (1966), Peru (1968) e Bolívia (1969).
Ainda em 1970, Nixon havia incumbido a CIA de financiar uma “campanha de medo”, produzindo panfletos, cartazes e reportagens demonizando o candidato socialista. A agência norte-americana também conduziu uma operação que visava desagregar a coalização de Allende, tentando remover o Partido Radical da Unidade Popular.
Quando essas iniciativas falharam e Allende foi confirmado como presidente eleito, a CIA deu início ao Projeto FUBELT, que objetivava impedir que o socialista assumisse o governo. O projeto consistia em duas linhas de ação complementares: a pública, baseada em ações diplomáticas e oficiais, e a secreta, recorrendo a sequestros, assassinatos e atentados para desestabilizar o governo chileno.
Entre as vítimas do projeto está o general René Schneider, comandante das Forças Armadas quando Allende foi eleito. Legalista, Schneider criticava os discursos golpistas de parlamentares contrários à posse de Allende. Visto como um obstáculo, ele seria assassinado em uma operação conduzida por agentes da CIA e elementos da extrema-direita chilena.
Fracassada a tentativa de impedir a posse de Allende, o governo norte-americano intensificou suas ações de desestabilização, tendo como foco principal sufocar a economia chilena. Em um despacho enviado ao Departamento de Defesa em 1970, Nixon instruiu seus estrategistas a conceberem meios de “fazer a economia gritar”.
O Chile foi submetido a um bloqueio econômico informal que teve efeitos devastadores sobre o setor produtivo. O embaixador norte-americano Edward Korry admitiu que a política de Washington era “não permitir que um único parafuso entrasse no país”. Extremamente dependente de exportações dos Estados Unidos, o Chile em pouco tempo não tinha sequer peças de reposição para manter suas frotas de automóveis e ônibus funcionando.
O governo norte-americano impediu a concessão de empréstimos ao Chile e pressionou seus empresários a cessarem os investimentos no país. Cooptando sindicatos e associações patronais, a CIA estimulou a realização de greves desestabilizadoras e lockouts. Em 1972, uma grande paralisação convocada pela Confederação Nacional do Transporte travou o país e impediu o plantio da safra a ser colhida em 1973. Reunidos em torno do Sistema de Associações Civis Organizadas, os industriais chilenos cooperaram para ampliar a desestabilização, articulando uma campanha de desabastecimento que causou escassez de produtos básicos.
As ações tiveram um impacto brutal na economia. O PIB chileno, que havia crescido 8,5% no primeiro ano do governo Allende, registrou queda de 4,2% em 1973. Nesse mesmo ano, a inflação, que era de 22,1% em 1971, chegaria a 381%. A queda na arrecadação de impostos foi abissal e o desemprego aumentava em ritmo galopante.
Os meios de comunicação culparam Allende pela deterioração econômica e rotularam as reformas implementadas por seu governo como “políticas desastrosas”. A percepção de que Allende causara a crise teve profundo impacto na base de apoio do governo, corroendo sua popularidade junto aos setores médios.
Em paralelo à campanha de desestabilização econômica, o governo norte-americano desenvolveu uma estratégia para fortalecer os adversários de Allende, canalizando recursos para partidos de direita, financiando a mídia oposicionista (sobretudo o jornal “El Mercurio”) e oferecendo fartos recursos à articulação golpista. A Casa Branca também passou a financiar organizações terroristas de extrema-direita, em especial o grupo fascista “Patria y Libertad,” que recebeu apoio logístico e consultoria estratégica da CIA.
Atentados terroristas organizados pela extrema-direita eclodiram nas cidades chilenas, bem como operações de sabotagem, como a “Noche de las Mangueras Largas”, quando militantes do Patria y Libertad interromperam o abastecimento de gasolina nos postos de Santiago. O objetivo dessas ações era gerar o caos para justificar a intervenção dos militares golpistas.
Uma primeira tentativa de golpe de Estado, organizada por militares sublevados e membros do Patria y Libertad, ocorreu em 29 de junho de 1973. Sob a liderança de Roberto Souper, tanques do Segundo Regimento Blindado avançaram rumo ao Palácio de La Moneda. A quartelada foi neutralizada pelas forças leais ao governo, comandadas pelo general Carlos Prats. Quando o Congresso chileno emitiu declaração acusando Allende de violar a Constituição e recomendando sua renúncia, entretanto, os golpistas se sentiram encorajados a uma nova tentativa — dessa vez, em estreita colaboração com o governo norte-americano.
Aconselhado por Prats, Allende requisitou a instauração de estado de sítio, mas o pedido foi rejeitado pelo Congresso. Ainda em agosto de 1973, Prats, sob forte pressão dos golpistas, foi obrigado a renunciar ao comando do Exército, sendo substituído pelo general Augusto Pinochet, que até então fingia lealdade a Allende.
Na véspera do golpe, militares chilenos e norte-americanos se encontraram durante um alegado “exercício naval”. Em meio às manobras, a armada chilena tomou de assalto a cidade de Valparaíso, enquanto as tropas norte-americanas ficaram de prontidão para intervir no país caso ocorresse tentativa de resistência ao golpe. Um avião WB-575 com uma central de telecomunicações da Força Aérea dos Estados Unidos sobrevoava o Chile, apoiado por 33 caças e aviões de observação, estacionados na base aérea de Mendonza.
No dia 11 de setembro de 1973, militares e carabineiros cercaram o Palácio de La Moneda, onde se encontrava Salvador Allende. As rádios chilenas, já dominadas pela Junta Militar, passaram a difundir mensagens exigindo que o mandatário renunciasse ao cargo e evacuasse a sede da presidência, alertando que o palácio seria atacado por tropas de terra e ar caso a ordem não fosse cumprida.
Allende se recusou a renunciar ou deixar o palácio, dizendo estar disposto a “pagar com a vida a lealdade do povo”. Às 11h52 da manhã, o palácio começou a ser bombardeado por aviões Hawker Hunter da Força Aérea chilena e atacado por tiros de metralhadoras dos veículos blindados estacionados ao redor do edifício. Allende ordenou que os funcionários evacuassem o prédio, mas permaneceu em seu gabinete. Quando os golpistas invadiram o palácio, Allende se suicidou.
Após o golpe, Augusto Pinochet assumiu o governo do país. O Chile foi então convertido em uma brutal ditadura militar que durou 17 anos, deixou mais de 3 mil mortos e desaparecidos, torturou e forçou centenas de milhares de pessoas ao exílio.
Em paralelo à repressão política, Pinochet converteria o Chile em um laboratório da aplicação das formulações teóricas neoliberais, implementando o receituário da “Escola de Chicago”, com privatizações, desmonte dos serviços públicos e corte de programas e benefícios sociais. O preço pago pelos chilenos foi alto. A proporção da população vivendo abaixo da linha da pobreza mais que dobrou em relação ao governo de Salvador Allende, saltando de 20% no início dos anos 70 para 44,4% em 1987.