O Massacre de Gwangju e a luta inglória por democracia na Coreia do Sul
Há 44 anos, tropas militares reprimiam manifestações que se rebelaram contra a ditadura de Chun Doo-Hwan
Há 44 anos, em 27 de maio de 1980, o governo da Coreia do Sul enviava tropas para reprimir os manifestantes que se rebelaram contra a ditadura de Chun Doo-Hwan. A repressão evoluiu para uma matança generalizada – o infame Massacre de Gwangju – que deixou um número de mortos estimado em até 2.300 pessoas.
A imagem da Coreia do Sul como uma democracia estável, moderna e bem consolidada tornou-se lugar comum nas representações difundidas pela mídia ocidental. A apresentação da nação asiática como contraponto à sempre vilificada Coreia do Norte serve de lastro às narrativas anticomunistas e reforça a propaganda ideológica em prol das benesses supostamente inerentes às “democracias” liberais burguesas. A Coreia do Sul seria o refúgio das “liberdades individuais”, dos “direitos civis” e do “desenvolvimento”, em contraponto ao “totalitarismo” e “atraso” da Coreia do Norte.
Não obstante, a trajetória sul-coreana registrada desde a Segunda Guerra Mundial sempre foi permeada por ditaduras, fraudes eleitorais, autoritarismo e forte repressão contra sua própria população — submetida a uma série de massacres perpetrados em prol dos interesses da burguesia sul-coreana e do capital internacional. Após a divisão da península da Coreia nas áreas de influência soviética e norte-americana, estabeleceu-se na Coreia do Sul um governo militar presidido pelo Exército dos Estados Unidos, que impôs uma política brutal de repressão contra organizações sindicais e progressistas e massacrou os trabalhadores que se rebelaram na cidade de Yeongcheon.
Posteriormente, os Estados Unidos “terceirizaram” a gestão do governo sul-coreano para um regime-fantoche administrado por Syngman Rhee, um anticomunista fervoroso que vivia nos Estados Unidos e era amigo pessoal do presidente Theodore Roosevelt. Eleito indiretamente para a Presidência da Coreia do Sul, Syngman Rhee ficaria à frente do governo por 12 anos, consolidando um regime ditatorial subserviente à política externa norte-americana. O regime de Rhee seria responsável por perpetrar dezenas de massacres, ceifando a vida de pelo menos 100 mil sul-coreanos. Deposto em 1960 após a eclosão da Revolução de Abril, Syngman Rhee foi sucedido interinamente por Yun Bo-Seon, que ensaiou uma transição para um governo democrático.
Não obstante, já no ano seguinte, um golpe instalou Park Chung-Hee na Presidência e a Coreia do
Sul mergulhou novamente em uma ditadura militar. O governo de Park Chung-Hee foi igualmente marcado pela perseguição brutal dos opositores, pela restrição aos direitos civis da população sul-coreana e pela severa repressão às mobilizações estudantis e operárias. Não obstante, o crescimento econômico acelerado do país durante o período chamado de “Milagre do Rio Han” e a colaboração inconteste com o governo dos Estados Unidos (expressa na decisão de enviar tropas para apoiar os norte-americanos na Guerra do Vietnã) garantiram o forte apoio da elite sul-coreana e das potências capitalistas ao seu governo.
Após 18 anos à frente do regime, Park Chung-Hee foi assassinado em outubro de 1979, em um atentado perpetrado pelo general Kim Jae-Gyu. A morte súbita do ditador inaugurou um interregno de instabilidade política no país e despertou uma onda de manifestações organizadas por estudantes, trabalhadores e os movimentos sociais que exigiam a democratização. Tais expectativas, entretanto, foram frustradas em questão de meses, após o general Chun Doo-Hwan perpetrar outro golpe militar, derrubando o presidente interino Choi Kyu-Hah e assumindo o comando do país.
Indignados com a instauração de mais uma ditadura, estudantes e sindicatos começaram a se mobilizar, organizando protestos massivos em favor de reformas. Os manifestantes exigiam o fim da lei marcial, eleições livres, instituição do salário mínimo e a ampliação dos serviços públicos e dos direitos civis. As maiores manifestações ocorreram na capital, Seul, onde registraram-se atos reunindo mais de 100 mil pessoas. A mobilização popular, entretanto, espalhou-se por toda a Coreia do Sul, ressoando de forma particularmente forte entre os estudantes de Gwangju, então capital da província de Jeolla do Sul.
A província era conhecida por seu histórico de resistência às ocupações estrangeiras e aos governos autoritários do pós-Segunda Guerra. Os moradores de Jeolla do Sul, por sua vez, ressentiam-se com o fato do governo sul-coreano negligenciar a região, preterida em relação aos volumosos investimentos e obras públicas destinados à província de Gyeongsang. Em resposta às crescentes manifestações, o ditador Chun Doo-Hwan recrudesceu ainda mais as medidas repressivas, ampliando a lei marcial, restringindo a liberdade de imprensa e ordenando o fechamento das universidades. Tropas das Forças Armadas da Coreia do Sul foram despachadas para todas as regiões do país para fazer cumprir a lei marcial.

Vítimas do Massacre de Gwangju estão enterradas no Cemitério Nacional de 18 de maio
Os militares intervieram na Conferência Nacional de Dirigentes Estudantis, órgão de concertação do movimento estudantil que reunia representantes de 55 universidades, e ordenaram a prisão das lideranças — incluindo Kim Dae-Jung, ativista ligado ao Partido Democrático Coreano, acusado de incitar as manifestações antigovernamentais. A prisão de Kim Dae-Jung inflamou os ânimos estudantes de Gwangju, levando a uma nova onda de protestos ainda mais contundentes.
Em 18 de maio de 1980, os militares sul-coreanos reprimiram com grande violência um protesto organizado pelos estudantes da Universidade Nacional de Chonnam, causando dezenas de mortes. Outras centenas de estudantes foram detidos. A violência policial chocou a população civil, que aderiu em massa às manifestações. A revolta popular atingiu seu clímax após uma nova confrontação ocorrida durante um protesto realizado em frente prédio da Administração Provincial. O Exército abriu fogo contra os manifestantes, matando um grande número de civis. Em resposta, uma multidão enfurecida invadiu os arsenais e as delegacias de polícia, confiscando as armas e subjugando as forças de segurança locais.
Em seguida, os cidadãos formaram milícias armadas e tomaram a cidade de Gwangju. Nos dias seguintes, os rebeldes formaram um Comitê de Cidadãos para gerir a cidade e tentaram estabelecer uma negociação com o Exército, propondo o desarmamento das milícias em troca da libertação dos presos políticos e concessão de anistia aos revoltosos. Paralelamente, o exemplo dos moradores de Gwangju começava a inspirar novas revoltas e manifestações eclodiram em cidades como Hwasun, Naju, Haenam, Mokpo, Yeongam, Gangjin e Muan.
Vislumbrando a possibilidade de perder o controle sobre o país, o ditador Chun Doo-Hwan proibiu o Exército de continuar as negociações e ordenou o aniquilamento imediato da revolta. Cinco divisões fortemente armadas do Exército sul-coreano cercaram Gwangju em 26 de maio, bloqueando todos os acessos à cidade.
Na madrugada do dia seguinte, os militares iniciaram a retomada de Gwangju, estabelecendo enfrentamento aberto contra as milícias e mergulhando a cidade em um banho de sangue. Os civis foram derrotados em poucas horas. O governo sul-coreano divulgou no balanço da operação a informação oficial de que 144 manifestantes teriam sido mortos durante o levante, mas pesquisas realizadas com base nos dados cartoriais de Gwangju evidenciaram que até 2.300 pessoas podem ter sido assassinadas pelo exército.
Após debelar a revolta, o governo sul-coreano prendeu 1.394 pessoas e acusou 427 revoltosos em processos formais. Desses, sete receberam a sentença de morte e outros 12 foram condenados à prisão perpétua. Kim Dae-Jung foi sentenciado à pena de morte, mas a pressão internacional levou o governo sul-coreano a comutar sua pena por 20 anos de prisão. O governo sul-coreano usou o levante como justificativa para ampliar as restrições aos direitos civis, mas o massacre também abalou significativamente a imagem pública de Chun Doo-Hwan e erodiu os discursos sobre a pretensa legitimidade de seu governo, pavimentando o caminho para o ressurgimento dos movimentos pró-redemocratização e as Lutas de Junho de 1987, que ensejaram a transição para o governo civil.
Chun Doo-Hwan foi julgado em 1996 e chegou a ser condenado à pena de morte por sua atuação no Massacre de Gwangju, mas recebeu indulto do governo e morreu sem nunca ter respondido por seus crimes. Em Gwangju, ergueu-se um memorial homenageando as vítimas do massacre, mas, de resto, a história brutal dos governos militares sul-coreanos recebe pouca atenção da mídia ocidental. O enfoque costuma ser direcionado às
celebridades do K-Pop, à parafernália tecnológica e aos letreiros luminosos de Seul, enquanto abundam as notícias e boatos vilanizando a Coreia do Norte, onde em 76 anos de governo socialista um massacre de tal porte jamais ocorreu.
