O Terror Lilás: a guerra dos EUA contra a comunidade LGBT
Governo norte-americano criminalizou, demitiu e encarcerou milhares de servidores públicos e institucionalizou série de políticas homofóbicas
Há 60 anos, as autoridades em Washington eram surpreendidas por uma manifestação pequena, mas inédita. Em frente à Casa Branca, servidores públicos marchavam segurando cartazes nos quais denunciavam a perseguição governamental contra gays e lésbicas.
Era o ápice do “Terror Lilás” (ou “Lavender Scare”) — a “caça às bruxas” contra homossexuais que o governo dos Estados Unidos manteve ao longo da Guerra Fria. Sob o pretexto de que homossexuais representavam um “risco à segurança nacional”, o governo norte-americano criminalizou, demitiu e encarcerou milhares de servidores públicos e institucionalizou uma série de políticas homofóbicas.
Tributária da paranoia macarthista, a campanha de perseguição aos homossexuais teve consequências devastadoras, alimentando o pânico moral e a violência homofóbica e reforçando estigmas e estereótipos negativos sobre a comunidade LGBT.
O Macarthismo
O breve período de tolerância que o governo norte-americano manteve em relação à União Soviética se esgotou assim que a Segunda Guerra Mundial terminou. Começava agora a Guerra Fria, com o mundo dividido pelas disputas geopolíticas, ideológicas e militares entre os polos capitalista e socialista.
Em 1947, os Estados Unidos instituíram a Doutrina Truman, que determinava que o combate ao comunismo e a contenção da União Soviética eram as prioridades máximas da política externa de Washington.
O anticomunismo também seria a pauta predominante no âmbito da política doméstica. Entre o fim dos anos 40 e o início dos anos 50, o senador Joseph McCarthy lideraria a uma virulenta campanha que visava expurgar as supostas “influências comunistas” na sociedade e nas instituições norte-americanas — dando origem ao fenômeno do “macarthismo”.
Insuflado pela imprensa e encampado pela Casa Branca, o macarthismo mobilizou a sociedade no combate à “Ameaça Vermelha”. O medo da “infiltração comunista” alimentou uma paranoia generalizada e pregações histéricas sobre a subversão das instituições, da juventude e da cultura norte-americana.
A “Ameaça Vermelha” seria combatida através de uma série de políticas criminalizantes e de expurgos de “infiltrados”. Apoiado pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, McCarthy deu início a uma perseguição em massa contra funcionários públicos, professores, cientistas, artistas, intelectuais, ao mesmo tempo em que pavimentava o caminho para suprimir as organizações políticas de esquerda.
O macarthismo teve um impacto extremamente negativo, fomentando um clima permanente de medo, desconfiança e repressão. Milhares de pessoas perderam seus empregos e tiveram suas carreiras e suas vidas destruídas, muitas vezes com base em denúncias anônimas e infundadas.
O Terror Lilás
Os comunistas não eram os únicos alvos da perseguição macarthista. Quaisquer grupos ou indivíduos que fossem percebidos como “subversivos”, ou que contrariassem os valores conservadores da sociedade norte-americana, também eram assediados e reprimidos. Foi o que ocorreu com militantes do movimento negro, ativistas dos direitos civis, sindicalistas e membros da comunidade LGBT.
A homossexualidade foi estigmatizada como uma vulnerabilidade que poderia ser explorada pelos soviéticos. Os macarthistas argumentavam que os homossexuais, forçados a manter sua orientação sexual em segredo, eram mais suscetíveis às chantagens de agentes externos. Temendo o risco da exposição, os homossexuais estariam mais propensos a colaborar com os comunistas e a atuar como espiões.
Essa percepção foi amplamente aceita e utilizada para justificar o chamado “Terro Lilás” — alcunha dada à política oficial de criminalização e repressão aos homossexuais mantida pelo governo dos Estados Unidos desde o fim dos anos 40. O termo também é empregado para se referir ao fenômeno do “pânico moral” contra homossexuais que foi incitado na sociedade pelas medidas discriminatórias e pela atuação da imprensa.
O “Terror Lilás” era também um reflexo da reação conservadora que surgiu nos Estados Unidos a partir dos anos 30. Durante os “Loucos Anos 20”, o país havia registrado uma fase de transformações culturais progressistas, marcada pela tendência na liberalização de costumes e pela maior visibilidade das minorias sexuais nos grandes centros urbanos.
No entanto, com a crise financeira instaurada após 1929 e a Grande Depressão, fortaleceu-se o discurso institucional do “retorno à ordem” e aos “valores tradicionais”. O “Terror Lilás” serviria então como um instrumento de controle social que buscava atrelar a sexualidade às relações de produção capitalista, reforçando a moral sexual conservadora, a idealização da família nuclear, o fortalecimento dos papéis de gênero e a repressão aos comportamentos considerados “desviantes”.
Transcorrendo de forma paralela à “Ameaça Vermelha” e à paranoia anticomunista, o “Terror Lilás” também seria pautado por estigmas sobre a revolução sexual soviética. Em 1917, apenas um mês após o triunfo da Revolução de Outubro, a Rússia Soviética se tornaria um dos primeiros países do mundo a descriminalizar a homossexualidade — uma medida que seria revertida posteriormente.
O governo soviético também promoveu internacionalmente os estudos pioneiros de Grigorii Batkis, que afirmavam que a homossexualidade era uma expressão natural da sexualidade humana. Por fim, a homossexualidade assumida de Georgy Chicherin, o Ministro das Relações Exteriores do governo soviético, também escandalizava os norte-americanos.
A guerra contra a comunidade LGBT
Apoiado por congressistas eleitos com pautas moralistas e forte lobby de pastores neopentecostais, o governo dos Estados Unidos passou a naturalizar discursos de ódio contra gays e lésbicas, rotulando-os como “grandes ameaças à segurança nacional”. Homossexuais também começaram a ser preteridos em vagas no serviço público.
A perseguição do governo norte-americano contra a população LGBT se intensificou nos anos 50, quando a legislação federal passou a descrever homossexuais como “subversivos”, “pervertidos” e uma “ameaça ao estilo de vida americano”.

Fotografia de Ted Eytan / Wikimedia Commons
As relações homossexuais foram criminalizadas em todos os estados, sob a tipificação de “sodomia”, punível com prisão. Na Carolina da Norte, réus primários acusados de sodomia poderiam ser condenados a até 60 anos de cadeia.
Difusão de boatos e teorias da conspiração para alarmar a população e colocar a opinião pública contra os homossexuais eram frequentes. Jornais e revistas participavam ativamente da campanha persecutória, publicando artigos que associavam homossexuais à depravação e à criminalidade. Também costumavam divulgar dicas de “como identificar homossexuais” e exortavam o público a denunciá-los às autoridades.
Refletindo o ambiente reacionário, muitos órgãos científicos respaldaram a narrativa discriminatória do governo norte-americano. Médicos e cientistas que desmentissem a alegada correlação entre homossexualidade e desequilíbrio psiquiátrico tornavam-se alvos do governo e sofriam sanções das próprias associações de classe.
A Ordem Executiva 10.450
Em 1953, o presidente Dwight D. Eisenhower promulgou a ordem executiva 10.450, que institucionalizou o “Terror Lilás”. A ordem redefiniu os critérios de segurança para funcionários do governo federal, listando “perversão sexual” (código então frequentemente utilizado como sinônimo de homossexualidade) como motivo para demissão sumária.
A medida expandiu o escopo das investigações de segurança, que passaram a incluir não apenas lealdade política, mas também comportamento pessoal. Com a nova ordem, agências como o FBI e a Comissão do Serviço Civil intensificaram seus esforços para identificar e expurgar os funcionários “desviantes”.
Os funcionários suspeitos ou denunciados eram convocados para interrogatórios conduzidos por agentes federais, onde eram pressionados a confessar e a delatar colegas, familiares e amigos. Em algumas ocasiões, os servidores eram forçados a realizar testes poligráficos.
As “acusações de homossexualidade” muitas vezes se baseavam em evidências circunstanciais ou estereótipos. Homens solteiros, mulheres que não se conformavam a papéis tradicionais de gênero ou indivíduos com amizades próximas com pessoas do mesmo sexo eram alvos frequentes.
Além das denúncias, os agentes também realizavam a vigilância de bares, clubes e locais frequentados pela comunidade LGBT. Estima-se que dezenas de milhares de pessoas foram submetidas a espionagem e monitoramento.
Entre 1947 e 1961, mais de 5.000 funcionários federais foram demitidos ou forçados a pedir demissão devido às acusações de homossexualidade. O número exato de vítimas certamente é bem maior, já que boa parte dos casos não eram notificados ou registrados.
Além de serem demitidos, os servidores delatados tinham seus nomes inclusos em listas públicas. A exposição resultava na rejeição por parte de familiares e amigos e na exclusão das comunidades. Muitos eram forçados a se mudar para outras cidades.
Perseguições jurídicas eram comuns, muitas vezes terminando em prisões ou internações compulsórias. Centenas de servidores, sobretudo das Forças Armadas, foram encarcerados por “suspeita de homossexualidade”. Os linchamentos também eram frequentes e muitas pessoas cometiam suicídio após terem seus nomes elencados em listas públicas.
Entre as décadas de 1950 e 1970, vários estados aprovaram o uso de castração química para punir homossexuais. Leis autorizando terapias de conversão, incluindo práticas como lobotomia e choques elétricos, também foram promulgadas.
A criminalização da comunidade LGBT também teve impactos na indústria cultural. Filmes, livros e programas de televisão frequentemente retratavam homossexuais como vilões ou figuras trágicas, reforçando estereótipos que dificultavam a aceitação social —e que até hoje são recorrentes.
A reação
A intensificação da perseguição aos homossexuais estimulou o nascimento dos movimentos de defesa dos direitos da população LGBT em medos da década de 50. Organizações pioneiras como a Sociedade Mattachine e a Daughters of Bilitis surgiram como resposta direta à opressão do Terror Lilás.
A partir dos anos 60, o movimento LGBT passou a fazer forte oposição às medidas discriminatórias governamentais, organizando protestos e movendo batalhas legais. Ao mesmo tempo, as organizações promoviam a autoaceitação e contestavam a narrativa dominante de que a homossexualidade era uma doença ou um desvio de caráter.
A Rebelião de Stonewall, ocorrida em 1969, se tornaria um marco da resistência LGBT, galvanizando a mobilização popular e inspirando a formação de novas organizações, reunidas em torno da Gay Liberation Front.
Bem articulado, o movimento LGBT lograria importantes avanços a partir dos anos 70, enfraquecendo o “Terror Lilás”. Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria removeu a homossexualidade da lista de transtornos mentais. E em 1975, a Comissão de Serviço Civil dos Estados Unidos anunciou que a homossexualidade não seria mais um critério para exclusão no serviço público federal.
Malgrado os avanços, o Terror Lilás deixou profundas marcas na sociedade norte-americana. A ordem executiva 10.450, que autorizava a perseguição de homossexuais, somente foi revogada em 1995. O ingresso de LGBTs no serviço público continuou limitado em alguns estados e a política de investigação da vida sexual de funcionários públicos seguiu como norma em algumas localidades ao longo dos anos 90.
Em diversos estados, a homossexualidade era proibida por lei até 2015, quando um julgamento da Suprema Corte definiu jurisprudência sobre o assunto.
