Há dois anos, em 13 de junho de 2024, o governo de Jair Bolsonaro entregava ao controle privado um dos maiores patrimônios do povo brasileiro: as Centrais Elétricas Brasileiras S.A. — ou Eletrobras. Fundada em 1962, a Eletrobras é a maior companhia de energia elétrica da América Latina. Os números impressionam. A empresa responde por 22% de toda a energia gerada no Brasil, possuindo uma capacidade instalada de 44.600 megawatts. Administra mais de 100 usinas (entre hidrelétricas, termelétricas, eólicas e solares) e controla 37% da rede de transmissão nacional (73.800 quilômetros de linhas).
A criação da Eletrobras tinha por objetivo atenuar a grave escassez de energia elétrica, que constituía um dos maiores obstáculos ao processo de industrialização e modernização do Brasil até meados do século 20. Desde o fim do século 19, a geração e distribuição de energia elétrica no Brasil estavam a cargo da iniciativa privada. As multinacionais respondiam pela maior parte da oferta de energia no país — com destaque para a companhia canadense Light.
Operando sob a lógica de mercado, sem regulamentação ou concorrência direta, as empresas privilegiavam o retorno financeiro imediato, não se interessando, portanto, em expandir o fornecimento de eletricidade para regiões mais remotas, onde a margem de lucro era baixa. Tampouco havia preocupação em investir na melhoria da distribuição de energia nos grandes centros urbanos. Como resultado, as capitais do Brasil viviam uma rotina de apagões quase diários e boa parte do interior sequer possuía provisão mínima de energia elétrica.
No eixo Rio-São Paulo, abastecido pela Light, a escassez de energia já ameaçava a expansão do parque industrial e as residências eram submetidas a um racionamento permanente. Os moradores das duas cidades ficavam várias horas sem energia elétrica todos os dias. Diante do desinteresse do setor privado em ampliar a oferta de eletricidade, os governos estaduais viram-se obrigados a criar suas próprias estatais. Não obstante, a produção de energia continuava muito aquém das necessidades nacionais. A ausência de um sistema integrado era outro problema grave, uma vez que as unidades geradoras de energia utilizavam frequências distintas e estavam desconectadas, impedindo uma distribuição racionalizada, baseada em dados de produção e consumo.
Em 1954, o presidente Getúlio Vargas propôs a criação da Eletrobras, sob o argumento de que somente uma empresa estatal, imbuída da atribuição de planejar e operar o sistema elétrico de forma unificada, poderia resolver o problema de escassez de energia elétrica no Brasil. Um órgão encarregado de conduzir ações de acordo com as necessidades efetivas do país, não conforme a lógica do lucro que pautava a seletividade do mercado e dos investidores privados. A proposta de Vargas enfrentou a oposição agressiva da imprensa, dos udenistas e do setor privado. Reagindo à possível perda de mercados, as multinacionais iniciaram uma pesada campanha de pressão pela impugnação do projeto. A oposição encarniçada impediu que Vargas conseguisse viabilizar a criação Eletrobras, paralisando a tramitação do projeto de lei.
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O congresso somente daria o aval para a criação da empresa sete anos mais tarde. Em 25 de abril de 1961, Jânio Quadros sancionou a lei 3.890, fundando a Eletrobras. A empresa foi instalada já sob o governo de João Goulart, em 11 de junho de 1962, em uma cerimônia no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Imbuída da atribuição de coordenar uma rede nacional de geração e transmissão de energia elétrica, a Eletrobras deu início a múltiplos projetos de construção de usinas geradoras, linhas de transmissão e subestações. Já em 1963, apenas um ano após sua criação, a empresa inaugurava a primeira unidade da hidrelétrica de Furnas, evitando o iminente colapso do fornecimento de energia dos estados do Sudeste.
Apesar dos retrocessos institucionais conduzidos pela ditadura militar instaurada após o golpe de 1964, a Eletrobras era vista como uma empresa estratégica pelo alto oficialato das Forças Armadas. Assim, o regime militar investiu na capacidade produtiva da empresa e contribuiu para sua afirmação como agência planejadora. Ao longo dos anos 60, a Eletrobras conduziu o processo de unificação da frequência da rede elétrica, articulando a conexão entre as geradoras isoladas. A empresa também se tornou um holding de instituições estatais do setor elétrico e encampou gradativamente as companhias privadas. Com isso, a Eletrobras conseguiu ampliar em quase 600% a capacidade instalada no Brasil, viabilizando o chamado “milagre econômico” no início dos anos 70.
Nos anos 80, em paralelo ao processo de redemocratização, o Brasil assistiu à ascensão do receituário econômico neoliberal, com a valorização de pautas como Estado mínimo, desregulamentação dos mercados e privatização. Em 1988, o presidente José Sarney esboçou os primeiros planos de privatização da Eletrobras, articulada no ano seguinte por meio do projeto de lei 2.397/89, barrado no Congresso graças à oposição da esquerda. Anos mais tarde, Fernando Henrique Cardoso (FHC) retomaria o projeto de privatização da empresa, determinando a abertura de seu capital em 1994 e incluindo-a no rol das empresas a serem vendidas no âmbito do Programa Nacional de Desestatização em 1995. A oposição da esquerda e dos movimentos sociais novamente impediu a privatização da Eletrobras, mas a empresa passou por um processo de desmonte e sucateamento, sendo parcialmente desmembrada e tendo suas atribuições limitadas.
Em 2004, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei 10.848/04, retirando a Eletrobras do Programa Nacional de Desestatização. Lula também logrou reverter parte do processo de desmonte iniciado na gestão anterior, ampliando a atuação da Eletrobrás por meio da lei 11.651, que conferia à empresa mais autonomia, lhe devolvia a função de coordenadora do sistema elétrico e autorizava sua atuação no exterior.
Após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, a Eletrobras foi novamente submetida ao processo de desmonte e tentativas de privatização. Em 2018, Michel Temer sancionou projeto de lei forçando a Eletrobras a encerrar suas atividades no setor de distribuição e anunciou que submeteria projeto de privatização da empresa ao Congresso. Nesse mesmo ano, a Agência Sportlight revelou que, por determinação do governo Temer, gestores da Eletrobras pagaram 1,8 milhão de reais para que empresas terceirizadas publicassem críticas à Eletrobras, visando mobilizar a opinião pública em favor da privatização da empresa.
A investida derradeira veio em abril de 2021, quando o governo Bolsonaro baixou um decreto reinserindo a Eletrobras no Plano Nacional de Desestatização. No mês seguinte, a Câmara dos Deputados aprovou uma Medida Provisória encaminhada pelo governo federal tratando da privatização da companhia. O texto previa que a empresa fosse entregue ao controle privado através da venda de ações ordinárias na Bolsa de Valores. O projeto foi aprovado no Senado em junho de 2021.
A proposta de privatização da Eletrobras foi alvo de inúmeras críticas. Especialistas do setor elétrico afirmaram que a venda da empresa resultaria em um aumento médio de 25% no preço da tarifa. Esse dado foi confirmado pelo próprio representante da Aneel durante uma audiência pública na Câmara dos Deputados. Organizações como o Movimento União pela Energia e o Instituto de Energia e Meio Ambiente divulgaram notas alertando que a privatização aumentaria o custo da conta de luz, traria riscos ao meio ambiente e comprometeria os investimentos na segurança energética do país.
Muitos críticos também alertaram para os riscos de abrir mão do controle estatal sobre um serviço tão estratégico quanto a geração e distribuição de energia — deixando um quarto da energia elétrica e metade das linhas de transmissão em um país de dimensões continentais nas mãos de empresários, sendo geridos sob a lógica do lucro. Nem mesmo a cisma fiscalista típica dos liberais justificaria a venda, uma vez que a empresa é superavitária —a Eletrobras registrou lucro de R$ 5,7 bilhões em 2021 e R$ 3,6 bilhões em 2022.
O alto potencial de lucro, entretanto, é justamente o que fazia da Eletrobras uma empresa tão cobiçada. Assim, 62 anos após a companhia ter sido criada para superar a inércia e a incompetência do setor privado na gestão do setor energético, a Eletrobras era entregue ao mercado. Em 13 de junho de 2022, o governo Bolsonaro concluiu a privatização, pulverizando o controle acionário da empresa após uma oferta de R$ 33,7 bilhões na bolsa de valores — valor bastante inferior aos R$ 140 bilhões estimados como o montante justo para a operação pelo ministro Vital do Rego, do Tribunal de Contas da União.
Com a venda, a Eletrobras passou a ser controlada pela 3G Capital de Jorge Paulo Lemann e por fundos de investimentos estrangeiros. Já no primeiro ano após a privatização, a Eletrobrás iniciou demissões em massa, dispensando 21% de todos os seus funcionários. Também no primeiro ano após a privatização, o Brasil sofreu um dos maiores apagões de sua história: um blecaute que atingiu 26 das 27 unidades federativas do país, afetando mais de 29 milhões de pessoas. Na mesma semana, o presidente Lula excluiu as ações da empresa que ainda estão sob controle do governo federal do Programa Nacional de Desestatização. Mas o retorno do controle estatal sobre a Eletrobras, uma demanda de seu eleitorado, ainda está pendente.