Sexta-feira, 13 de junho de 2025
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De “O Mais Longo dos Dias” até “O Resgate do Soldado Ryan”, poucos episódios da Segunda Guerra Mundial são tão heroicizados pela indústria cultural do Ocidente quanto o desembarque dos militares norte-americanos em solo francês no chamado “Dia D”.

Exaltada como o maior ataque anfíbio da história, a operação é tratada como ápice da luta dos aliados contra a Alemanha nazista — ignorando as contraofensivas do exército soviético na Frente Oriental, muito mais decisivas para o desfecho do conflito. Para Hollywood, o “Dia D” seria o ponto crucial que pavimentou o caminho da libertação da Europa.

Bem menos comentados, e encobertos por narrativas fantasiosas e heroicas da indústria cinematográfica, são os estupros em massa das mulheres francesas cometidos por esses soldados após o desembarque na Europa.

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“40 milhões de hedonistas”

A incitação ao estupro começava já no recrutamento das tropas. Na propaganda da imprensa norte-americana, visando atrair o maior número possível de voluntários para a operação, a missão na Europa era retratada como uma aventura erótica num paraíso habitado por mulheres lindas e sedentas por retribuir sexualmente os seus “libertadores”.

No livro “What Soldiers Do: Sex and the American G.I. in World War II France“, a historiadora Mary Louise Roberts elencou uma série de exemplos da representação erotizada da campanha militar na França. A revista Life, por exemplo, uma das mais importantes publicações à época, chegou a afirmar em um artigo que a França era “um gigantesco bordel habitado por 40 milhões de hedonistas que passam o tempo todo comendo, bebendo e fazendo amor”.

Já o jornal oficial das tropas norte-americanas, “Stars and Stripes”, trazia em suas páginas fotos de francesas beijando soldados. Livretos de frases úteis em francês ensinavam os militares a fazerem elogios como “você é muito bonita” e perguntas do tipo “seus pais estão em casa?”.

Os estupros na França

As denúncias de estupro cresceram exponencialmente nas cidades da França no segundo semestre de 1944. Ainda assim, os casos notificados representam apenas uma pequena fração do problema, uma vez que o medo de represálias e o estigma associado ao estupro desencorajava as denúncias.

É o que ocorreu com Aimée Dupré, hoje com 99 anos. Por décadas, ela manteve silêncio sobre os horrores praticados por soldados norte-americanos na fazenda onde sua família morava. Em 2024, incomodada pela exaltação dos 80 anos do “Dia D”, ela resolveu contar sobre como os militares invadiram a residência da família, atiraram em seu pai e estupraram sua mãe na frente dos filhos.

Também foi esse o caso de Catherine Pengam, que somente no leito de morte contou para sua filha sobre o abuso sexual a que foi submetida por um soldado norte-americano na cidade de Plabennec — e da dor de testemunhar a morte do pai, assassinado pelo abusador quando tentou protegê-la.

Estima-se que dezenas de milhares de mulheres foram estupradas pelas tropas norte-americanas na França. Os assédios e estupros ocorriam à luz do dia, nas vias públicas, nos parques e entre os destroços das casas obliteradas.

Pierre Voisin, prefeito de Le Havre, foi uma das primeiras autoridades francesas a denunciar os abusos dos militares norte-americanos. Voisin atribuiu às tropas estacionadas na cidade a imposição de um verdadeiro “regime de terror, conduzido por bandidos fardados”, responsáveis por “cometer estupros, saques, roubos e crimes de todos os tipos”.

Os estupros eram tão recorrentes que geraram um adágio, muito comum à época entre os franceses: “Quando os alemães vieram nos dominar, tivemos que esconder os homens. Agora que os americanos vieram nos libertar, temos que esconder as mulheres”.

Prostitutas e mulheres em situação de vulnerabilidade eram alvos preferenciais dos crimes sexuais mais violentos, como evidenciado pelos registros de casos de estupros brutais seguidos pelo assassinato das vítimas.

Tropas da infantaria norte-americana marchando na Champs-Élysées, em Paris Signal Corps U.S Army/Wikimedia Commons

Abafando as denúncias

A indignação dos franceses com o comportamento dos soldados norte-americanos gerou diversas críticas e pedidos de responsabilização. Os oficiais, entretanto, trataram de abafar e minimizar as denúncias. O estupro era encarado como consequência inerente ao caos da guerra — e até mesmo romantizado quando cometido por forças de elite do exército.

É o caso dos estupros cometidos pelos soldados da famigerada 101.ª Divisão Aerotransportada, exaltada na série de televisão “Band of Brothers“.

Quando os homens da divisão foram acusados de estuprar dezenas de mulheres e meninas em um vilarejo da França, o chefe da equipe, Maxwell Taylor, afirmou que os crimes eram um reflexo da “natureza vigorosa” dos paraquedistas.

Diante da ocorrência de novos abusos que ensejaram a pressão das autoridades francesas, Taylor se recusou a punir seus subordinados, alegando que os homens “precisavam de um pouquinho de diversão”.

A 101.ª Divisão Aerotransportada segue em atividade até os dias de hoje. As denúncias de crimes sexuais também persistem. Em 2005, soldados da divisão foram responsáveis por estuprar e assassinar uma jovem de 14 anos no Iraque.

Alemanha

Se a aliada França teve esse tratamento, algo muito mais sombrio aguardava a Alemanha após a derrota do Terceiro Reich. O número de mulheres alemãs estupradas por soldados norte-americanos é estimado em até 190 mil.

Os crimes sexuais cometidos por militares norte-americanos na Alemanha estão documentados em diversos registros oficiais do Pentágono. Um memorando escrito pelo general Omar Bradley em abril de 1945 afirmava que “os saques, pilhagens, devassas e estupros” empreendidos pelas tropas norte-americanas estavam “completamente difundidos em todo território inimigo”.

Por sua vez, Alexander Patch, comandante do 7º Exército dos Estados Unidos, expressou em um relatório sua preocupação com a onda de crimes sexuais violentos conduzidos por soldados norte-americanos na Alemanha.

A exemplo do que ocorreu na França, a historiografia oficial e a indústria cultural trataram de esconder os crimes sexuais cometidos pelos norte-americanos. Ao mesmo tempo, os ideólogos anticomunistas da Guerra Fria buscaram atribuir toda a responsabilidade pelos estupros de civis alemãs ao Exército Vermelho.

Conforme notou Júlia Garraio, pesquisadora da Universidade de Coimbra, “as violações cometidas pelo Exército Vermelho foram usadas para associar o comunismo à selvageria”, a uma “masculinidade ameaçadora, repelente e perversa”, ao passo que os militares ianques eram revestidos de com a imagem de uma masculinidade saudável, protetora, heroica e altruísta.

Japão

As civis japonesas também foram submetidas a uma série de crimes sexuais após o término da Segunda Guerra e o início da ocupação militar do país por soldados norte-americanos.

Particularmente chocante foi o estupro em massa das mulheres e crianças de Okinawa. As estimativas apontam que ao menos 10 mil mulheres foram estupradas na província. Ao longo do ano de 1945, os soldados norte-americanos cometeram uma média de 330 estupros por dia no Japão.

Em Kanagawa, foram registrados 1.336 relatos de estupros cometidos por militares dos Estados Unidos apenas nos primeiros dez dias de ocupação. Os estupros eram violentos, frequentemente coletivos, e muitos eram seguidos de execução sumária das vítimas.

O racismo na responsabilização

A maioria absoluta das denúncias de estupro foram ignoradas. Mesmo nos poucos casos em que os estupros eram investigados e punidos, as ações das cortes marciais norte-americanas eram racialmente enviesadas, refletindo a segregação racial e o ideário supremacista prevalente nos Estados Unidos.

Guiados pela crença racista de que os negros eram mais propensos ao crime, as cortes puniam os afro-americanos de forma desproporcional, ao mesmo tempo em que ignoravam e perdoavam os crimes cometidos por soldados brancos.

Dos 152 soldados norte-americanos condenados por estupro durante a Segunda Guerra, 139 eram negros. Isso é, os negros, que representavam apenas 12% do efetivo norte-americano no conflito, respondiam por 91% das condenações.

Os registros legais do período externam nitidamente a lógica racista das cortes marciais. Quando um soldado branco confessou ter estuprado três mulheres durante uma batalha em Dessau, por exemplo, os conselheiros legais recomendaram que o homem fosse encaminhado para tratamento psiquiátrico, afirmando que sua “conduta lasciva” era fruto de um distúrbio mental gerado pelo conflito.

No mesmo período, uma outra acusação de estupro envolvendo soldado negro foi apontado pela mesma corte como “um episódio brutal de selvageria que encontra poucos precedentes na história americana”.

A narrativa de que os soldados negros eram os únicos responsáveis pelos estupros cometidos por norte-americanos na Segunda Guerra serviu de pretexto para apagar a contribuição dos afro-americanos no conflito, além de ter alimentado a oposição racista ao movimento pelos direitos civis nas décadas seguintes.