Quinta-feira, 10 de julho de 2025
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Desde 2009, o Brasil integra o seleto grupo de países que dominam toda a cadeia produtiva da energia nuclear. E o principal responsável por isso é o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva.

Almirante Othon é considerado o mais importante cientista nuclear brasileiro. Durante os anos 80, ele chefiou o Programa Nuclear da Marinha e liderou a equipe responsável por desenvolver a tecnologia nacional da ultracentrifugação, que permitiu que o Brasil alcançasse a capacidade de enriquecer urânio.

Vigiado pela CIA e submetido a tentativas de criminalização nos anos 80, Othon seria chamado pelo governo Lula para ajudar a reavivar o Programa Nuclear. Ele assumiu a chefia da Eletronuclear, retomou as obras da usina de Angra 3 e coordenou a construção do reator do Centro Tecnológico da Marinha, responsável pelo projeto do submarino nuclear brasileiro.

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O esforço de Othon, entretanto, seria interrompido pela ação da Lava Jato. Em 2015, o cientista seria preso por ordem de Sergio Moro. E no ano seguinte, Marcelo Bretas o condenaria a 43 anos de prisão.

O Programa Nuclear Brasileiro

O interesse do Brasil pela energia nuclear começou a tomar forma na década de 1930, impulsionado pelo grande avanço nas pesquisas globais sobre a radioatividade e a descoberta da fissão nuclear. A criação do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP fomentou a criação dos primeiros grupos brasileiros dedicados a pesquisas na área nuclear.

Nos anos 40, o Brasil se tornou um dos principais fornecedores de minérios nucleares para os Estados Unidos. Após o desenvolvimento das primeiras armas atômicas, parte da comunidade científica e o oficialato brasileiro passaram a defender que o país não deveria se contentar com o papel de fornecedor de matéria-prima, mas buscar o domínio da tecnologia nuclear para garantir a soberania nacional.

O almirante Álvaro Alberto foi uma figura central desse período. À frente do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), ele liderou as negociações internacionais para adquirir equipamentos e o “know-how” necessários às pesquisas sobre energia nuclear. Viabilizou, dessa forma, a construção de três conjuntos de centrifugação para enriquecimento de urânio e a aquisição de uma usina de “yellowcake”.

Subordinado aos Estados Unidos durante a Guerra Fria, o Brasil procurou apoio de Washington para desenvolver seu programa nuclear. O governo norte-americano, entretanto, trabalhava ativamente para impedir que as outras nações tivessem acesso às tecnologias de centrifugação. A cooperação se daria no âmbito do programa “Átomos para a Paz”, que vinculava o compartilhamento de tecnologia nuclear ao compromisso de não desenvolver armas atômicas.

A criação da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e a aquisição dos primeiros reatores de pesquisa possibilitaram alguns avanços, mas a dependência de tecnologia estrangeira e as restrições impostas pelas potências nucleares limitaram o desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro.

Em 1968, o governo do Brasil se recusou a assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), afirmando que o acordo visava estabelecer um monopólio nuclear perpétuo, garantindo que as potências nucleares mantivessem seus arsenais ao mesmo tempo em que impedia que as nações em desenvolvimento adquirissem tecnologia nuclear avançada.

O almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva durante uma audiência no Senado em 2011
Antonio Cruz/EBC Serviços/Wikimedia Commons

O Programa Nuclear Paralelo

O Programa Nuclear Brasileiro fez importantes avanços na década de 1970 motivado pela crise do petróleo, que havia forçado o país a procurar alternativas para diversificar sua matriz energética, o governo de Ernesto Geisel assinou em 1975 o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha.

O acordo previa a construção de oito reatores nucleares e a transferência de tecnologia para o ciclo completo do combustível nuclear. Em paralelo, o Brasil havia iniciado a construção de sua primeira usina nuclear — Angra 1, construída pela Westinghouse no litoral sul fluminense.

A assinatura do acordo provocou forte reação dos Estados Unidos, que pressionou a Alemanha Ocidental a retroceder na oferta. Desde o teste nuclear realizado pela Índia, Washington estava determinado a impedir que outros países do Sul Global adquirissem a capacidade de fabricar armas nucleares.

Pouco tempo depois, o congresso norte-americano aprovou a Lei de Não Proliferação Nuclear, que vetou a exportação de urânio enriquecido para países que não aceitassem as salvaguardas impostas pelos Estados Unidos — caso do Brasil. A pressão do governo norte-americano inviabilizaria a concretização do acordo com a Alemanha.

Frustrado com o boicote das potências nucleares, o governo brasileiro criaria seu Programa Nuclear Paralelo (PNP) no fim dos anos 70 — um programa secreto coordenado pela CNEN e pelas Forças Armadas, visando garantir o desenvolvimento da tecnologia de todo o ciclo do combustível nuclear e a capacidade latente de militarizar o urânio enriquecido.

Cada uma das Forças Armadas seguiu uma abordagem distinta para o obter o enriquecimento de urânio. A Marinha conduziu o Projeto Ciclone, focado na ultracentrifugação, com o objetivo de desenvolver submarinos nucleares. O Exército liderou o Projeto Atlântico, centrado na produção de grafita e plutônio. E a Aeronáutica criou o Projeto Solimões, que investigava o enriquecimento de urânio por laser.

Almirante Othon

Dos projetos desenvolvidos no âmbito do Programa Nuclear Paralelo, somente o da Marinha obteve êxito. O projeto ficou a cargo do almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. Formado em Engenharia Naval pela Escola Politécnica da USP, Othon obteve mestrado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) em 1978, concomitantemente com a graduação em engenharia nuclear.

O projeto secreto coordenado por Othon resultou no desenvolvimento de uma tecnologia nacional para enriquecimento de urânio a partir do método de ultracentrifugação. Essa tecnologia seria posteriormente empregada para a produção de combustível nuclear nas usinas de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Além de chefiar o Programa Nuclear Paralelo, Othon foi o diretor de pesquisas de reatores do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) entre 1982 e 1984.

Em 1988, a equipe chefiada por Othon concluiu a construção de um reator nuclear de pesquisa e inaugurou o Centro Experimental de Aramar, localizado em Iperó, no interior de São Paulo, onde se encontra o Laboratório de Geração Nucleoelétrica — equipamento central para o desenvolvimento do submarino nuclear brasileiro.

As atividades do almirante Othon no Brasil foram monitoradas constantemente pelos Estados Unidos. Documentos produzidos pelo governo norte-americano mostraram que o cientista era vigiado de perto por agentes da CIA. Ray H. Allar, um espião da agência, chegou a ser vizinho de apartamento de Othon por alguns anos em São Paulo.

Desmantelamento do PNP

A existência do Programa Nuclear Paralelo foi revelada ao público durante a redemocratização. E em 1987, o presidente José Sarney anunciou publicamente que o Brasil havia alcançado a capacidade de enriquecer urânio.

A partir de então, Othon se tornou alvo de uma série de tentativas de criminalização. O cientista chegou a ser formalmente acusado de desvio de dinheiro público. Comprovou-se, entretanto, que as verbas que Othon havia movimentado em contas secretas não eram frutos de corrupção, mas parte do expediente utilizado pelo próprio governo brasileiro para financiar o Programa Nuclear Paralelo. O inquérito foi arquivado em 1988 pelo procurador Sepúlveda Pertence.

Em setembro de 1990, Fernando Collor anunciou oficialmente o encerramento do Programa Nuclear Paralelo. Declarando enfaticamente sua oposição ao desenvolvimento de armas nucleares, Collor organizou uma cerimônia pública nas quais lacrou os poços para testes de explosivos nucleares localizados na Base Aérea da Serra do Cachimbo, no Pará.

A rejeição do Brasil às tecnologias nucleares de uso militar seria consolidada nos dois governos seguintes. Em 1994, o país ratificou o Tratado de Tlatelolco, que proíbe a presença de armas nucleares em toda a América Latina e no Caribe. No ano seguinte, FHC assinou a adesão ao Regime de Controle da Tecnologia de Mísseis, através do qual o Brasil abria mão de adquirir ou fabricar mísseis de longo alcance. E em 1998, o Brasil aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear.

Governo Lula e o reavivamento do programa nuclear

Após se aposentar da Marinha em 1994, Othon abriu uma empresa de consultoria para projetos na área de energia. Onze anos depois, entretanto, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, Othon seria convidado a retomar suas pesquisas no setor público.

Durante os primeiros governos petistas, houve um esforço significativo para revitalizar o Programa Nuclear Brasileiro, com foco na expansão da matriz energética, no desenvolvimento tecnológico e na afirmação do Brasil como um ator relevante no cenário internacional.

Othon seria chamado para presidir a Eletronuclear — uma subsidiária da Eletrobras responsável por projetar, construir e operar usinas nucleares. Em sua gestão, o almirante foi incumbido de retomar a construção da usina nuclear de Angra 3.

As obras da usina ficaram paralisadas por 23 anos, em grande parte graças à pressão dos Estados Unidos e das nações europeias, que bloquearam financiamento internacional para o projeto e tentaram obstruir sua construção, utilizando-se de artigos do acordo firmado com a Agência Internacional de Energia Atômica.

Além de retomar a construção de Angra 3, Othon coordenou a construção do reator nuclear do Centro Tecnológico da Marinha, responsável por gerar o combustível para o submarino nuclear brasileiro que será construído em cooperação com a França.

Ainda no governo Lula, o Brasil alcançou marco significativo em 2009, quando começou a enriquecer urânio em escala industrial nas instalações da INB, em Resende. A tecnologia de ultracentrifugação desenvolvida pela Marinha foi aperfeiçoada, consolidando a posição do Brasil como um dos únicos 13 países que dominam o processo de enriquecimento de urânio.

O reavivamento do Programa Nuclear Brasileiro foi alvo de críticas e gerou desconfiança do governo norte-americano. As críticas se avolumaram após o episódio do acordo de enriquecimento de urânio que Lula firmou com o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, e com o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, em maio de 2010.

A intervenção do Brasil, que visava criar uma alternativa ao impasse do programa nuclear iraniano, então sob ameaças constantes de Barack Obama, gerou incômodo evidente entre os burocratas do governo norte-americano — além de especulações na imprensa de que o governo brasileiro pretendia fabricar armas nucleares.

Em paralelo ao seu trabalho na retomada do Programa Nuclear Brasileiro, Othon também iniciou um projeto de desenvolvimento de tubos geradores aptos a produzir eletricidade com quedas d’água de apenas um metro de altura — uma fonte de energia complementar que poderia beneficiar dezenas de milhares de pessoas.

A Lava Jato

A retomada dos investimentos em tecnologia nuclear, essenciais para assegurar a soberania energética, política e científica do Brasil, sofreria um duro revés a partir de 2015, quando Programa Nuclear Brasileiro entrou na mira da Operação Lava Jato — conjunto de investigações conduzidas em estreita colaboração com Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

Em abril de 2015, almirante Othon, amplamente reconhecido como o mais importante cientista nuclear do Brasil, foi acusado pela Operação Lava Jato de ter recebido 4,5 milhões de reais em propina da construtora Andrade Gutierrez em troca de vantagens na construção da usina nuclear Angra 3.

O cientista foi alvo de uma delação premiada feita pelo ex-presidente da Andrade Gutierrez, Rogério Nora de Sá, que afirmou que Othon teria pedido 1% do valor de contrato em propina para repassar para PT, PMDB e projetos científicos.

Othon negou a acusação e disse que os valores que recebeu (um terço do que o Ministério Público alegou) são relativos a serviços de consultoria que foram prestados à Andrade Gutierrez desde 2004. Othon também lembrou que a construtora já possuía o contrato para a construção da usina há vinte anos (antes, portanto, de seu ingresso na Eletronuclear) e afirmou que sua prisão obedece a interesses geopolíticos internacionais que visam impedir que o Brasil se tornasse uma potência nuclear.

Em julho de 2015, o então juiz Sergio Moro decretou a prisão preventiva do almirante Othon no âmbito da Operação Radioatividade. O cientista voltaria a ser preso em julho de 2016, durante a Operação Pripyat, um desdobramento da ação anterior.

Em agosto de 2016, Othon foi condenado a 43 anos de prisão pelo juiz Marcelo Bretas, pelas acusações de corrupção e lavagem de dinheiro. Sua filha, Ana Cristina da Silva Toniolo, também foi presa. O cientista tentou se suicidar na prisão, mas foi impedido pelos agentes penitenciários.

A ação da Lava Jato interrompeu a retomada do programa nuclear brasileiro e a construção de Angra 3 e do reator nuclear do Centro Tecnológico da Marinha.

A prisão de Othon seria revogada em outubro de 2017, por decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Em 2022, a justiça reduziu a pena do almirante de 43 anos para 4 anos e 10 meses de prisão. A pena de reclusão foi substituída por medidas restritivas. Sua filha, Ana Cristina, seria posteriormente absolvida.

Em setembro de 2024, o Conselho Nacional de Direitos Humanos deliberou em favor da admissão de denúncia de perseguição da Lava Jato contra o almirante Othon. Bretas, o juiz que o condenou, seria posteriormente punido pelo Conselho Nacional de Justiça com aposentadoria compulsória.