“Venham a mim as massas exaustas, pobres e confusas, ansiando por respirar em liberdade. Venham a mim os desabrigados, os escorraçados pela tempestade. Estendo minha tocha sobre o portal dourado”. O poema de Emma Lazarus afixado sobre o pedestal da estátua da Liberdade em Nova York evidencia o esforço empreendido pelo governo norte-americano na projeção de sua imagem como um novo Eldorado, a terra das oportunidades próspera e acolhedora, onde todos teriam seu lugar ao sol. O país era uma potência emergente no início do século 20 e buscava na Europa a mão de obra necessária para operar seu parque industrial em franca expansão. A propaganda foi das mais efetivas, levando milhões de imigrantes a cruzarem o Atlântico para recomeçar a vida em uma terra desconhecida.
Para a população negra que já vivia nos Estados Unidos, a propaganda da “terra próspera e acolhedora” certamente soava como cinismo dos mais perversos. As leis de Jim Crow haviam institucionalizado a segregação racial desde o fim do século 19, negando direitos básicos aos afro-americanos e transformando-os em sub-cidadãos. A desigualdade econômica herdada da escravidão, segregação e falta de oportunidades submeteram a população negra à pobreza e opressão. A violência contra os negros era generalizada e incentivada pelas autoridades, que faziam vista grossa aos linchamentos e à ação das milícias supremacistas e da Ku Klux Klan.
Os conflitos raciais se agravaram ainda mais após a quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929 e o início da Grande Depressão. O colapso do mercado de ações ocasionou quedas drásticas na produção industrial e o aumento exponencial do desemprego e da miséria. Os negros, que já eram preteridos no mercado de trabalho, sofreram ainda mais com a escassez de empregos. A recessão logo se alastrou pelo mundo, contaminando os mercados e causando falências em massa. Mas houve ao menos um país que seguiu imune aos efeitos devastadores da crise. Com sua economia planificada, a União Soviética prosseguiu registrando altas taxas de crescimento econômico, em meio a um acelerado processo de industrialização. E, para suprir a demanda por mão de obra especializada, a URSS resolveu abrir as portas aos desempregados oriundos dos Estados Unidos.
Entre 1930 e 1932, milhares de norte-americanos imigraram para a União Soviética, a fim de colaborar no projeto de transformar o país, ainda predominantemente agrário, em uma superpotência. Boa parte desses imigrantes eram negros, que vislumbravam na mudança não apenas novas oportunidades profissionais, mas também uma chance de fugir da segregação e violência racial nos Estados Unidos. Foi esse o caso de um artista chamado Lloyd Walton Patterson.
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Nascido em Nova York em 1910, Lloyd Patterson era neto de escravizados e filho de Archie Patterson e Margaret Glascoe. Os pais trabalharam duro para garantir que o filho tivesse uma boa educação. Após concluir o ensino básico na Westfield School, Patterson se formou no curso de cenografia do Instituto Hampton, em Virgínia — uma das raras instituições de ensino superior voltadas a atender a comunidade negra. Mas, apesar de seu excelente desempenho curricular, Patterson não conseguia ocupação em sua área. O racismo visceral da sociedade norte-americana combinado à crise econômica havia reservado ao jovem apenas bicos como cortador de grama e pintor. Assim, quando viu um anúncio do governo soviético selecionando jovens negros para participar da produção de um filme, Patterson logo se apresentou como candidato.
Patterson e outros 21 jovens afro-americanos foram selecionados para um projeto pioneiro do governo soviético: um filme criticando o racismo nos Estados Unidos e a luta dos trabalhadores afro-americanos contra a segregação. O grupo incluía nomes que se consagrariam como expoentes da cultura afro-americana, tais como a romancista Dorothy West, o ator Wayland Rudd e o dramaturgo Langston Hughes. Intitulado Preto e Branco, o filme soviético seria a primeira obra cinematográfica da história a denunciar o racismo sob a perspectiva dos próprios cidadãos afro-americanos. Isso em uma época em que o cinema norte-americano estava repleto de filmes racistas, com obras que exaltavam a supremacia branca e ridicularizavam os afro-americanos.
Embora também registrasse problemas raciais, a Rússia, ao contrário dos Estados Unidos, não tinha um histórico de escravização dos povos negros, nem um legado institucional de segregação. E, desde a Revolução de Outubro, o governo soviético havia se esforçado em construir uma percepção de solidariedade baseada na classe e não na identificação étnica. A denúncia do racismo como uma ferramenta do aparato exploratório inerente ao capitalismo se tornou recorrente na produção cultural soviética. Ao longo dos anos 30, o país produziu uma série de livros, cartazes e animações criticando o racismo e a opressão imposta ao povo negro nos Estados Unidos. Além de ser uma forma de responder aos ataques constantes da Casa Branca, o governo soviético também acreditava que a radicalização e o fomento à organização política da população afro-americana teriam efeitos benéficos para a construção do socialismo em escala global.
Após desembarcarem em Moscou, Lloyd Patterson e os demais integrantes do grupo foram bem recebidos e encaminhados para alguns dos melhores hotéis da cidade. O projeto cinematográfico, entretanto, teve curta duração. Poucas semanas após a chegada do grupo, o governo soviético optou por suspender a produção do filme. Parte dos afro-americanos retornou para sua terra natal, mas Patterson decidiu permanecer e começar uma nova vida na União Soviética. Ele aprendeu o idioma russo e teve a oportunidade de exercer o seu ofício, trabalhando com design e decoração de interiores e criando cenários para os espetáculos sediados nos teatros de Moscou.
Patterson estabeleceu uma carreira de grande sucesso na União Soviética. Ele foi contratado para decorar o suntuoso Hotel Metropol e o próprio Kremlin — a residência oficial do governo soviético. Também foi convidado para expor suas obras de arte e criações em mostras individuais na sede do Exército Vermelho e no Teatro da Juventude Operária. Dotado de uma bela voz, Patterson foi chamado para trabalhar como locutor de rádio. Ele foi um dos pioneiros nas transmissões em língua inglesa do “All Union” — um histórico e influente programa de rádio voltado a assuntos sindicais e sócio-políticos.
Bem estabelecido em sua nova vida, Patterson iniciou um namoro com a atriz de teatro ucraniana Vera Aralova, que havia conhecido uma festa. Os dois se casaram e tiveram três filhos — James, Tom e Lloyd Junior. Já viúva, a mãe de Patterson, Margaret, também se mudou para a União Soviética, onde trabalhou em uma fábrica de autopeças. A família dividia seu tempo entre o apartamento confortável em Moscou e uma bela casa
de campo. Em 1936, Patterson concedeu uma entrevista para o jornal Chicago Defender, onde afirmou estar plenamente satisfeito com a sua nova vida e negou ter a intenção de retornar aos Estados Unidos: “a vida e o trabalho na União Soviética me proporcionam as mais amplas oportunidades e a liberdade para usar minha profissão ao máximo”, declarou, contrapondo a situação com os Estados Unidos, onde o racismo havia limitado sua ascensão profissional.
“Estou muito feliz por viver na sociedade livre na Rússia Soviética e por participar da construção do socialismo e de uma sociedade sem classes. A vida de um homem negro na Rússia Soviética não pode ser comparada com a vida dos negros na América supostamente livre”, assegurou.
Ainda em 1936, um dos filhos do artista, James Patterson, foi convidado para estrelar o filme O Circo, outra obra cinematográfica soviética criticando o racismo nos Estados Unidos. O filme conta a história de uma branca norte-americana que engravida de um homem negro e precisa fugir para a União Soviética para escapar de um linchamento após dar à luz. Chantageada por seu empresário alemão, a mulher tenta esconder a criança para que não descubram que o pai do bebê é negro — até se dar conta de que os locais, ao contrário dos norte-americanos, não ligavam para isso. O filme se tornaria um grande sucesso no país e o bebê James encantaria gerações inteiras de soviéticos.
O lançamento de O Circo simbolizava um marco representativo da história nacional. Em 1936, a União Soviética havia se tornado o primeiro país do mundo a criminalizar o racismo, promulgando em sua Constituição que todos os cidadãos eram “iguais em direitos, independentemente de sua nacionalidade ou etnia” e determinando que as ações motivadas por ódio racial deveriam ser punidas. A postura antirracista da União Soviética conquistou o apoio de personalidades renomadas da comunidade afro-americana, tais como o poeta Claude McKay e o ator e cantor Paul Robeson, e contribuiu para uma visão positiva do socialismo no movimento negro.
A vida tranquila dos Patterson na União Soviética somente seria abalada pela ameaça nazista. Após a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a invasão da União Soviética pelas tropas do Eixo, a família de Patterson foi evacuada para a Sibéria, mas ele permaneceu em Moscou para auxiliar na comunicação em inglês via rádio com os aliados ocidentais. Patterson foi gravemente ferido durante um bombardeio conduzido pelas nazistas. Ele foi socorrido e levado para os Urais, mas acabou falecendo alguns meses mais tarde, em março de 1942, em decorrência das complicações.
Os três filhos de Patterson cresceram na União Soviética. Lloyd Junior seguiu a carreira artística e trabalhou como designer. Ele faleceu precocemente em um acidente de automóvel nos anos 60. Tom se tornou piloto da Força Aérea soviética e também trabalhou como cinegrafista. Ele faleceu em 2023, aos 86 anos de idade. O filho mais famoso de Patterson, James, a estrela de O Circo, não quis seguir a carreira cinematográfica. Ele se formou na Academia Naval de Riga Nakhimov e se tornou oficial na Frota do Mar Negro. James também se dedicou à carreira literária, escrevendo poemas e textos sobre questões raciais. Em 1963, ele publicou uma coletânea de poemas intitulada Rússia – África. No ano seguinte, lançou Crônicas da Mão Esquerda, um compilado de memórias da sua família desde a era da escravidão.
James ingressou no Instituto de Literatura Maxim Gorky em 1967 e se tornou membro da União Soviética de Escritores. Ele trabalhou como colunista de jornal e colaborador de revistas literárias nas décadas seguintes e escreveu uma série de artigos sobre a segregação racial e o movimento dos direitos civis. Na década de 1990, fugindo das dificuldades econômicas e da turbulência política em que a o país mergulhou após a dissolução da União Soviética, James e sua mãe, Vera, se mudaram para os Estados Unidos. Vera faleceu em 2001. James está com 90 anos e hoje vive em Washington.