Há 63 anos, em 17 de outubro de 1961, a Polícia Nacional Francesa iniciava o assassinato em massa de imigrantes argelinos que viviam em Paris. Os imigrantes foram atacados durante uma manifestação organizada pela Frente de Libertação Nacional — movimento que lutava pela independência da Argélia. Centenas de argelinos foram espancados até a morte ou jogados no Rio Sena com os braços amarrados, para que morressem afogados. Estima-se que até 300 pessoas foram assassinadas durante o Massacre de Paris. As autoridades francesas levaram décadas para reconhecer oficialmente a matança.
Invadida pela França em 1830, a Argélia foi submetida a um projeto colonial dos mais opressivos. O governo francês confiscou as terras dos nativos e as redistribuiu entre os colonos europeus, levando ao empobrecimento e à marginalização do campesinato. O regime de segregação étnica imposto pela França destituiu a população autóctone de seus direitos civis e políticos, ao mesmo tempo em que as tradições culturais e religiosas dos nativos foram fortemente reprimidas.
A crescente insatisfação dos argelinos insuflou o surgimento de um movimento nacionalista nos anos 30, levando à criação do Partido do Povo Argelino. O movimento emancipacionista se intensificou após o início da Segunda Guerra Mundial. Em 1943, Ferhat Abbas publicou o Manifesto do Povo Argelino, conclamando a população à rebelião. Dois anos depois, um grande movimento insurrecional eclodiu nas cidades de Sétif e Constantina. E em 1954, as organizações autonomistas se uniram para criar a Frente de Libertação Nacional da Argélia (FLN), que logo se tornaria o principal movimento ativo na luta pela independência.
A Guerra de Independência Argelina teve início ainda em 1954, quando a FLN lançou uma série de ataques contra postos militares e administrativos franceses. A resposta francesa foi brutal, com a mobilização de centenas de milhares de soldados e o estímulo à formação de milícias de colonos. O conflito foi caracterizado pela violência extrema, com a ocorrência de sucessivos massacres contra a população argelina. Os soldados franceses fizeram uso abundante de tortura, estupro e assassinato em massa de civis. A fim de limitar o recrutamento de combatentes pela FLN, os franceses confinaram a população rural argelina em campos de concentração.
A guerra dividiu a população francesa, com setores progressistas condenando o colonialismo e a brutalidade das operações militares e os conservadores exigindo que a Argélia permanecesse como uma colônia. O conflito político em torno da guerra levaria ao colapso da Quarta República Francesa e ao retorno de Charles de Gaulle ao poder. A princípio, de Gaulle tentou manter a Argélia sob controle francês, prometendo a concessão de certo nível de autonomia aos argelinos, mas a proposta foi prontamente rechaçada pela FLN. Sob crescente pressão internacional e doméstica, o líder francês seria forçado a reconhecer o direito dos argelinos à autodeterminação.
A mudança de postura de de Gaulle enfureceu setores do exército e os colonos franceses, levando à criação da Organização do Exército Secreto (OAS) — um grupo paramilitar de extrema-direita, que tentou assassinar de Gaulle e realizou uma série de chacinas e ataques terroristas contra a população argelina. Os combates entre franceses e argelinos também seriam travados em solo francês. Em 1955, foi fundada a Federação Francesa — um destacamento da FLN atuante na própria França, destinado a mobilizar a comunidade de imigrantes argelinos na luta pela independência.
Em 1958, após a realização de uma ofensiva da FLN que matou três policiais em Paris, as autoridades francesas iniciaram uma campanha de repressão à comunidade argelina da cidade. Mais de 5.000 argelinos foram encarcerados em campos de concentração e outros milhares foram submetidos à prisão domiciliar.
A Polícia Nacional Francesa era particularmente violenta com os imigrantes. A corporação abrigava um grande número de agentes egressos do regime de Vichy, que colaboraram ativamente com a Gestapo e as demais organizações nazistas — a começar pelo chefe da polícia parisiense, Maurice Papon. Simpatizante do ideário nazista, Papon seria futuramente condenado por crimes contra a humanidade, por ter auxiliado no envio de judeus para campos de extermínio durante a Segunda Guerra.
Os agentes franceses iniciaram uma verdadeira caçada aos argelinos, aterrorizando os bairros de imigrantes durante as batidas e patrulhas policiais. Prisões arbitrárias, espancamentos, torturas, desaparecimentos e execuções sumárias tornaram-se comuns. Iniciou-se nessa época o hábito dos policiais jogarem imigrantes com as mãos amarradas no Rio Sena, para que morressem afogados. Os abusos não se limitavam aos argelinos — outros imigrantes oriundos do Magreb, sobretudo tunisianos e marroquinos, também eram alvos da polícia.
A repressão à comunidade argelina se intensificou a partir de agosto de 1961, quando a FLN realizou uma campanha de bombardeios contra instalações policiais. Na ocasião, o chefe da polícia, Maurice Papon, prometeu que para cada agente francês tombado, dez argelinos seriam mortos. Pouco tempo depois, Papon impôs um toque de recolher específico para os argelinos e muçulmanos, proibindo-os de saírem às ruas das 20h30 às 5h30 da manhã.
Reagindo à crescente violência policial e ao cerceamento dos direitos dos imigrantes argelinos, a FLN conclamou toda a comunidade argelina a comparecer a uma grande manifestação para protestar contra o toque de recolher e exigir o fim da repressão. O protesto foi marcado para o dia 17 de outubro de 1961. As autoridades francesas não autorizaram a realização do ato, mas os argelinos compareceram em peso mesmo assim. A manifestação mobilizou cerca de 40 mil pessoas — homens, mulheres e crianças, vindos dos subúrbios e dos bairros de lata, desarmados e marchando pacificamente pelas ruas da região central de Paris.
A reação policial foi bestial. Papon instigou abertamente os policiais a matarem os argelinos, garantindo imunidade processual aos agentes. A operação foi informalmente apelidada de “Ratonnade”, ou “caça aos ratos”. Os policiais arquitetaram emboscadas, bloqueando estações de metrô e trem e fechando as ruas e avenidas que serviam de acesso para os locais dos atos. Quando se deparavam com os bloqueios, os manifestantes argelinos eram violentamente espancados — em muitos casos, até à morte. Dezenas de pessoas, incluindo crianças, foram mortas a coronhadas e a golpes com objetos perfurantes. Houve até mesmo registro de argelinos sendo enforcados em árvores.
As forças policiais atacaram as colunas de manifestantes que marchavam pelo Quartier Latin e pela Champs-Élysées. Um grupo com aproximadamente cinco mil manifestantes conseguiu furar o bloqueio e marchar rumo à Ópera Garnier. Eles foram interceptados pelos policiais, que abriram fogo contra a multidão, matando várias pessoas.
Uma das cenas mais tétricas ocorreu junto à Ponte de Neuilly, onde os policiais encurralaram um grupo de manifestantes. Todos os argelinos capturados na ponte foram nocauteados ou amarrados para serem atirados no Rio Sena. O mesmo ocorreria com os argelinos levados à sede da polícia parisiense. Após passarem por longas sessões de tortura, onde sofreram mutilações e todo tipo de abuso, as vítimas foram jogadas no rio.
Cerca de 14 mil argelinos foram presos e levados para o Parc des Expositions e para o Estádio Pierre de Coubertin. Nesses locais, os imigrantes foram novamente torturados e espancados. Muitos tiveram seus dedos cortados por um “comitê de boas-vindas” ao chegarem nas instalações. Outros foram sumariamente executados ou morreram em função dos maus-tratos.
Inúmeros cadáveres foram encontrados boiando nas águas do Sena nas semanas seguintes. A repressão aos argelinos continuou ao longo de todo o mês de outubro. Os imigrantes eram interceptados no transporte público ou em suas próprias residências e levados aos centros de detenção. Alguns foram deportados para a Argélia e jogados em campos de concentração, administrados pelas autoridades coloniais.
Não se sabe o número exato de vítimas do Massacre de Paris. Estima-se que entre 200 e 300 imigrantes argelinos foram assassinados. O governo francês se esforçou para ocultar os registros documentais da matança. No relatório policial divulgado no dia 18 de outubro, a polícia francesa afirmou que apenas três pessoas morreram durante os protestos — dois argelinos e um francês. Essa versão seria incorporada pela historiografia oficial francesa e imposta pelos órgãos de censura. Todos os documentos sobre o massacre foram postos sob sigilo. A imprensa francesa também contribuiu para ocultar os acontecimentos, corroborando o relato oficial do governo e apontando os argelinos como os incitadores da violência.
Foi somente na década de 1990 que o massacre voltou a ser discutido, quando documentos policiais perderam a classificação de confidencialidade e historiadores como Jean-Luc Einaudi e Jean-Paul Brunet trouxeram à tona as atrocidades. O livro “La Bataille de Paris”, publicado por Einaudi em 1991, despertou grande interesse pelo massacre, forçando a reabertura dos registros originais, que, por sua vez, derrubaram a versão oficial sustentada pelo governo francês.
Em outubro de 2001, a prefeitura de Paris reconheceu oficialmente a existência do massacre e instalou uma placa memorial em homenagem às vítimas junto à Pont Saint-Michel. Em 2012, no 51º aniversário do massacre, o presidente François Hollande reconheceu a responsabilidade do Estado francês pelas mortes. Mais recentemente, em 2021, Emmanuel Macron também condenou formalmente o massacre, mas se recusou a emitir um pedido formal de desculpas em nome do Estado francês. Nenhuma investigação ou punição foi aberta contra os responsáveis — todos protegidos pelo decreto de anistia emitido após a Guerra de Independência Argelina.
O massacre foi rememorado pelos atletas da Argélia em julho de 2024, durante a abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Enquanto navegavam pelo Sena, os argelinos atiravam rosas, homenageando seus compatriotas que foram jogados para a morte no rio.