Há 46 anos, em 8 de julho de 1978, um incêndio atingia a sede do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), causando uma perda irreparável ao patrimônio museológico brasileira. O fogo destruiu quase toda a coleção do MAM — então um dos maiores e mais valiosos acervos de arte moderna e contemporânea do continente.
O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi fundado em 1948, em um contexto de consolidação da estética modernista e da expansão das redes de equipamentos culturais no Brasil. Desde a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, e a subsequente crise do modelo econômico liberal, o Brasil iniciou um processo de diversificação de sua matriz econômica, ainda muito dependente da exportação do café.
Assim, a Era Vargas foi marcada pelo desenvolvimento industrial acelerado e por massivos investimentos públicos, que permitiram ao país desfrutar de relativa prosperidade e induziram o surgimento de uma nova burguesia, ainda muito conservadora, porém mais inclinada a apoiar o discurso de defesa da modernização e do desenvolvimentismo. Essa nova burguesia industrial também trocou a emulação da cultura francesa pelas referências culturais norte-americanas, enquanto Nova York gradualmente passava a rivalizar com Paris a posição de mais proeminente centro cultural do ocidente.
Nova York era a sede do primeiro Museu de Arte Moderna fundado no mundo, o MoMA — uma instituição privada dirigida pelo bilionário Nelson Rockefeller, calcada na exaltação do valor cívico da filantropia e na afirmação dos valores culturais e estéticos vinculados à burguesia norte-americana. O MoMA inspirou a criação de diversas instituições congêneres ao redor do mundo, fundadas sob o mesmo modelo. No Brasil, os dois primeiros museus de arte moderna — os de São Paulo e Rio de Janeiro — foram fundados em 1948, ambos com a participação de Nelson Rockefeller, que chegou a doar obras de arte para as duas instituições. Rockefeller, chefe do Escritório de Coordenação dos Assuntos Interamericanos, enxergava a expansão dos museus de arte moderna na América Latina como uma estratégia política de cooptação da elite intelectual.
Em São Paulo, o industrial Ciccillo Matarazzo liderou a iniciativa. No Rio de Janeiro, coube a Raymundo Ottoni de Castro Maya coordenar os esforços de criação do MAM, com apoio de um grupo de empresários e intelectuais cariocas. O contexto geopolítico facilitou enormemente o processo de criação dos acervos dos museus brasileiros. A Europa estava arrasada após o término da Segunda Guerra Mundial e muitas famílias, galerias e instituições passaram a vender suas obras de arte como parte do esforço para captar recursos para a reconstrução do continente. O aumento exponencial da oferta derrubou os preços das obras de arte nos mercados internacionais, tornando-as mais acessíveis aos museus brasileiros. Entre o fim da década de quarenta e meados dos anos cinquenta, o MAM conseguiu amealhar uma das coleções de arte moderna mais valiosas da América Latina. Quase todas as correntes artísticas modernistas e os principais nomes da arte no século XX, de todo o mundo, estavam reunidos no acervo da instituição.
Ao longo das duas décadas seguintes, o museu, já instalado em uma nova sede de linhas arrojadas, projetada pelo arquiteto Affonso Reidy e sediada no Parque do Flamengo, tornou-se palco de diversos movimentos de vanguarda artística, tais como o neorrealismo, o neoconcretismo, a nova objetividade e a tropicália. O MAM sediou exposições e eventos que se tornaram referências da arte contemporânea brasileira, como a “Opinião 65” e o “Salão da Bússola”. Também formou uma vasta cinemateca, inaugurou uma biblioteca com 9.000 volumes e passou a oferecer atividades culturais variadas no campo da música, literatura, dança e artes gráficas, convertendo-se em um dos mais importantes centros culturais do país.
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Após o golpe militar de 1964, entretanto, o apoio governamental para a manutenção das instituições culturais diminuiu sensivelmente. Não houve, tampouco, a renovação do breve surto filantrópico da burguesia industrial gestada nos anos 40, que se revelou apenas um modismo. Com a morte dos antigos patronos, as instituições perderam apoio financeiro. A transferência da capital federal para Brasília retirou do MAM uma de suas últimas fontes de recursos — os repasses do estado da Guanabara —, levando a instituição a uma grave crise e iniciando um processo de arrefecimento de sua atuação cultural e de sucateamento de suas instalações físicas.
A crise do MAM atingiu proporções trágicas em 8 de julho de 1978, quando um grande incêndio destruiu mais de 95% da sua coleção. O fogo começou no segundo andar e em menos de 40 minutos tomou todo o edifício. Duas telas de Pablo Picasso — incluindo-se o famoso “Retrato de Dora Maar”, obra-prima da fase cubista — duas pinturas de Joan Miró, um painel do período mais criativo de Salvador Dalí, obras de Van Gogh, Max Ernst, Henri Matisse, René Magritte, Paul Klee, tudo virou cinzas. Entre os brasileiros, obras primas de Candido Portinari, Di Cavalcanti, Manabu Mabe, Ivan Serpa também foram destruídas. Das mais de mil peças da coleção, apenas cinquenta não foram incineradas. O estrago não se limitou ao acervo do MAM: todas as 80 telas do pintor uruguaio Joaquín Torres-García, que haviam sido emprestadas ao museu por instituições internacionais para uma exposição temporária, foram destruídas.
O incêndio causou consternação e chocou a comunidade artística internacional. Também arranhou profundamente a imagem do Brasil no circuito das artes. O país levaria décadas para voltar a receber empréstimos de obras de arte de instituições estrangeiras. A mobilização dos meios artísticos e intelectuais permitiu ao museu amealhar um novo acervo do zero. Em 1993, o MAM recebeu, em regime de comodato, a Coleção Gilberto Chateaubriand, um dos mais importantes acervos privados de arte moderna do Brasil, logrando readquirir, ao menos, a presença de grandes expoentes da arte brasileira em suas exposições permanentes. Não obstante, a instituição jamais conseguiu se recuperar totalmente da tragédia de 1978 e acumula desde então décadas de crise financeira e uma atuação institucional errante.
Paradoxalmente, enquanto os museus tradicionais do Rio de Janeiro, detentores de alguns dos maiores acervos artísticos e culturais do Brasil, estavam mergulhados em crise e em contínuo processo de sucateamento, o governo fluminense gastou quase 300 milhões de reais para construir os cinematográficos Museu de Arte do Rio e Museu do Amanhã, inaugurados respectivamente em 2013 e 2015.
O Museu Nacional, dono da maior coleção de história natural e antropologia da América Latina, perdeu quase todo seu acervo em outro incêndio ocorrido em 2018, após anos de sucateamento, sobrevivendo com um ridículo orçamento anual de 50 mil reais.
Em 2019, o MAM foi obrigado a leiloar uma das poucas obras-primas que sobreviveram ao incêndio de 1978 para poder pagar suas contas – a tela “Nº 16”, de Jackson Pollock. A obra, remetida para um colecionador estrangeiro após o leilão, era a única pintura de Pollock conservada em um museu do Brasil.