Santos Dumont e a conquista dos ares
Inventor brasileiro venceu Prêmio Archdeacon voando com o 14-Bis em Paris; 1ª vez em que uma aeronave realizava voo após decolar por meios próprios
Há 118 anos, em 23 de outubro de 1906, o inventor brasileiro Alberto Santos Dumont vencia o Prêmio Archdeacon, voando com o 14-Bis em Paris. Era a primeira vez na história em que uma aeronave realizava um voo após decolar por meios próprios — sem a necessidade de rampas, trilhos ou catapultas.
Não existe consenso entre historiadores e aeronautas sobre quem foi o responsável por efetuar o primeiro voo de avião — uma vez que não há sequer consenso sobre o que seria o primeiro avião. Como reflexo do poderio econômico e da grande influência da indústria do entretenimento e dos aparelhos ideológicos norte-americanos, a reivindicação do título de “inventores do avião” pelos irmãos Orville e Wilbur Wright costuma ser mais difundida e naturalizada nos países anglófonos e no Ocidente.
Há, entretanto, uma série de pioneiros da aviação ativos entre o fim do século 19 e a primeira década do século 20 que também reivindicaram a paternidade da invenção.
Os primeiros voos com uma máquina mais pesada do que o ar são atribuídos ao aviador francês Clément Ader, que construiu três protótipos de avião entre 1890 e 1897. Suas máquinas, entretanto, não possuíam estabilidade nem controle e por isso não costumam ser considerados como aviões propriamente ditos. Há relatos de que o indiano Shivkar Bapuji Talpade teria voado a bordo da aeronave Marutsakhā em 1895, porém não existem registros historiográficos ou provas documentais coevas de tal feito.
O alemão Gustave Whitehead também alegou ter voado a bordo de uma aeronave motorizada em 1902, mas não há registro do voo. O neozelandês Richard Pearse voou em um monoplano em março de 1903, mas a máquina também não possuía controle ou estabilidade. O Aerodrome desenvolvido pelo norte-americano Samuel Langley fez duas tentativas de voo em outubro de 1903. A aeronave, entretanto, não se manteve no ar por mais do que alguns poucos metros. Karl Jatho, outro aeronauta alemão, alegou ter voado em 1903, porém só apresentou testemunhas validando sua alegação cerca de 30 anos após essa data.
Santos Dumont iniciou sua incursão na aeronáutica desenvolvendo aeróstatos — balões dirigíveis, mais leves do que o ar. Em 1898, Dumont construiu seu primeiro dirigível, o Nº. 1. O aeróstato era dotado de um motor a explosão, mais leve e eficaz do que os motores a vapor ou eletricidade empregados até então, e era equipado com um balonete de ar para manter a pressão interna e o formato alongado do balão.
A invenção de Dumont revolucionou a aerostação. O motor potente permitia que o dirigível se movimentasse contra o vento, ao passo que a direção era controlada por um sistema de pesos e contrapesos.
Em 19 de outubro de 1901, a bordo de seu Dirigível Nº 6, Santos Dumont fez história ao conquistar o Prêmio Deutsch. A competição havia sido criada pelo magnata do petróleo Henri Deutsch de la Meurthe, que se comprometeu a premiar com 100 mil francos o responsável por inventar uma máquina voadora que conseguisse, em menos de 30 minutos, elevar-se do solo em Saint-Cloud, contornar a Torre Eiffel e retornar ao ponto de partida.
Dumont concluiu o percurso em 29 minutos e 30 segundos, vencendo a competição. O prêmio de 100 mil francos foi dividido em duas partes: 50 mil foram distribuídos aos mecânicos e operários que trabalhavam na equipe de Dumont e os outros 50 mil foram doados para instituições que auxiliavam famílias carentes de Paris.
A conquista do Prêmio Deutsch transformou Santos Dumont em uma das personalidades mais famosas do mundo no início do século 20. O presidente norte-americano Theodore Roosevelt organizou um banquete em sua homenagem na Casa Branca e o inventor Thomas Edison o convidou para uma reunião onde discutiriam sobre patentes. Ele frustrou Edison ao esclarecer que não tinha interesse em patentear sua invenção, por enxergá-la como uma ferramenta para o avanço científico.
Após os dirigíveis, Santos Dumont desenvolveu um modelo de planador de asas fixas e se dedicou a estudar o emprego de asas rotativas em aeronaves — concebendo um dos primeiros protótipos do helicóptero. Em seguida, começou a trabalhar no projeto do 14-bis (“Oiseau de Proie”) — uma aeronave movida a gasolina, dotada de um motor de explosão Antoinette, de 24 c.v. A aeronave pesava 205 quilos, possuía quatro metros de altura, 10 metros de comprimento e 12 metros de envergadura.
No dia 23 de outubro de 1906, Santos Dumont apresentou-se diante de uma multidão no Campo de Bagatelle, em Paris, com uma versão aprimorada do 14-Bis (“Oiseau de Proie II”) para disputar o Prêmio Archdeacon — competição patrocinada pelo advogado Ernest Archdeacon, que prometia conceder 3.000 francos para quem conseguisse criar uma máquina mais pesada do que o ar capaz de voar por, pelo menos, 25 metros.

Santos Dumont a bordo do 14-Bis
O 14-Bis cumpriu mais do que o dobro do desafio estipulado — voou por cerca de 60 metros a uma altura média de dois a três metros do solo. Era a primeira demonstração pública na história de um avião capaz de decolar por conta própria, sem auxílio de rampas, catapultas ou outros artifícios.
A aeronave também conseguia se manter no ar por meios próprios, sem necessitar sequer do aproveitamento de ventos contrários. Entusiasmada, a multidão carregou o piloto nos ombros e os juízes ficaram tão surpresos que se esqueceram de cronometrar o voo.
Menos de um mês depois, em 12 de novembro de 1906, Santos Dumont retornou ao Campo de Bagatelle, com uma nova versão do 14-Bis — o “Oiseau de Proie III”, dessa vez para disputar o Prêmio do Aeroclube da França. O prêmio concederia 1.500 francos a quem voasse por pelo menos 100 metros. Novamente, Santos Dumont conseguiu cumprir mais do que o dobro do desafio estipulado, voando por 220 metros, vencendo a disputa.
O voo de Santos Dumont foi homologado pelo Aeroclube da França como o primeiro voo de um aparelho mais pesado do que o ar. A Federação Aeronáutica Internacional o homologou como a primeira atividade esportiva da aviação. Também foi o primeiro voo ser registrado em vídeo, pela companhia cinematográfica Pathé.
Foi somente em 1907, no ano seguinte aos voos públicos de Santos Dumont em Paris, os irmãos Wright entraram em contato com as instituições aeronáuticas europeias apresentando a alegação de que teriam efetuado um voo controlado quatro anos antes, em dezembro de 1903, em uma praia deserta da Carolina do Norte.
Os irmãos Wright apresentaram fotografias não datadas, relatos de algumas testemunhas e notas de diários para reivindicar a paternidade do primeiro voo do “Flyer I”, alçado por intermédio de uma catapulta. A alegação não recebeu muito crédito da comunidade aeronáutica europeia. Os jornais franceses chamavam abertamente os irmãos de “blefadores” e Ernest Archdeacon, fundador do Aeroclube da França, desdenhou publicamente da reivindicação.
A situação começou a mudar em dezembro de 1907, quando a reivindicação dos irmãos Wright foi encampada pelo governo dos Estados Unidos, interessado em estabelecer um contrato para desenvolver aeronaves com fins militares. Após obterem a patente nos Estados Unidos e assinarem uma série de contratos e licitações para construção e cessão de aeronaves para as Forças Armadas, os irmãos Wright ganharam um forte aliado em seu lobby internacional.
Os irmãos Wright também seriam responsáveis por conduzir a infame “guerra das patentes”. Eles processaram o aviador Glenn Curtiss e diversos outros aeronautas norte-americanos, proibindo-os judicialmente de dar continuidade às suas pesquisas ou obrigando-os a pagar licenças. Diversos aeronautas e inventores europeus também foram processados pelos irmãos, incluindo o francês Louis Paulhan.
A situação chegou ao ponto de gerar uma anedota que assegurava que qualquer pessoa que pulasse e batesse os braços no ar seria processada pelos irmãos Wright. Os processos prejudicaram bastante a imagem pública dos irmãos, que passaram a ser descritos como gananciosos “caçadores de níqueis”.
Sufocando a concorrência, impedindo o desenvolvimento de novos projetos e pressionando os órgãos internacionais, os irmãos finalmente conseguiram obter, quase que à força, o reconhecimento de seu alegado pioneirismo — mesmo que somente tenham efetuado um voo público em 1908, com uma outra aeronave, fabricada após vários avanços técnicos desenvolvidos por aviadores do mundo inteiro. Foi somente muitos anos após o voo público do 14-Bis que a Federação Aeronáutica Internacional concederia aos irmãos Wright o título de pioneiros do primeiro voo controlado.
A contribuição de Santos Dumont para a aviação não se encerrou com o 14-Bis. Em 1907, o brasileiro lançou o “Demoiselle”, um pequeno avião de apenas 110 quilos, considerado o primeiro ultraleve da história, capaz de voar a até 96 quilômetros por hora.
Como o objetivo de Dumont era popularizar a aviação, o inventor abriu mão da patente do Demoiselle e disponibilizou os planos a quaisquer interessados. O baixo custo permitiu que a aeronave fosse fabricada em larga escala, ajudando a popularizar a aviação. O projeto do Demoiselle, prático e funcional e acessível, também influenciaria o desenvolvimento de parte substancial dos aviões que o sucederam.
A genialidade do inventor brasileiro foi novamente atestada na primeira década do século XX. Entre 2003 e 2007, uma série de réplicas dos primeiros aviões foram construídas para celebrar os centenários dos voos pioneiros. As réplicas do 14-Bis e do Demoiselle decolaram e voaram com perfeição. Já a réplica da aeronave dos irmãos Wright não conseguiu alçar voo, frustrando o público que foi assistir à celebração do centenário do Flyer I nas areias da Carolina do Norte, em 17 de dezembro de 2003.
Veja o programa SUB40 sobre a vida de Santos Dumont:
