Servilismo fardado: a Escola Superior de Guerra e a submissão dos militares brasileiros aos EUA
Líderes do golpe de 1964 eram egressos da ESG e se guiaram pelas doutrinas da instituição ao formularem as diretrizes do novo regime
Nenhuma organização militar desempenhou um papel tão crucial na articulação do golpe de 1964 e na subsequente consolidação da ditadura militar brasileira quanto a Escola Superior de Guerra (ESG). Os principais líderes do golpe eram egressos da ESG e se guiaram pelas doutrinas da instituição ao formularem as diretrizes do novo regime.
As consequências para o Brasil foram desastrosas. Criada para servir como um “centro estratégico em prol da defesa nacional”, a ESG se estruturou, na prática, como um braço ideológico dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, ajudando a consolidar a subserviência dos militares brasileiros aos ditames de Washington.
Obedecendo às ordens norte-americanas, as Forças Armadas abandonaram a defesa da soberania e dos interesses nacionais, assumindo o papel de prepostos da Casa Branca na luta contra o “comunismo” — e tomando o próprio povo brasileiro como o inimigo a ser derrotado.
O Governo Dutra e a Guerra Fria
Sediada no Rio de Janeiro, a Escola Superior de Guerra (ESG) foi fundada em agosto de 1949, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra. A criação da ESG ocorreu em meio ao processo de reconfiguração do cenário geopolítico internacional, marcado pela emergência da Guerra Fria.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o governo norte-americano buscou reforçar seu domínio político e ideológico sobre a América Latina — e o Brasil, por seu tamanho, população, recursos naturais e potencial econômico, era visto como peça-chave para assegurar o sucesso dessa empreitada.
O governo de Eurico Gaspar Dutra facilitaria bastante a vida dos norte-americanos. Desde o fim do Estado Novo, Dutra havia estabelecido uma inflexão na política externa brasileira, substituindo os princípios autonomistas por uma postura de submissão irrestrita e alinhamento automático ao governo dos Estados Unidos.
Obedecendo às ordens da Casa Branca, o governo Dutra rompeu relações diplomáticas com a União Soviética e criminalizou o Partido Comunista (PCB). Para atender às exigências dos empresários norte-americanos, Dutra operou a “liberalização cambial”, facilitando as importações de bens de consumo dos Estados Unidos — ao custo do esgotamento das reservas cambiais e do enfraquecimento da indústria brasileira.
O governo Dutra também referendou a adesão do Brasil à política de defesa hemisférica dos Estados Unidos através da adesão ao Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). E na iminência da Guerra da Coreia, o presidente brasileiro se ofereceu para enviar soldados brasileiros para ajudar os norte-americanos no conflito — sendo barrado pela vigorosa reação popular.
A fundação da ESG
Foi o presidente norte-americano Harry Truman que orientou Dutra a criar a Escola Superior de Guerra, seguindo o modelo dos “War Colleges” dos Estados Unidos. A criação da escola foi justificada com o argumento de que o Brasil precisava de um centro voltado ao planejamento estratégico em prol da defesa nacional e à formação de uma elite militar intelectual, apta a contribuir com o desenvolvimento do país.
Na realidade, a nova instituição serviria como um instrumento para subordinar as ações das Forças Armadas brasileiras aos interesses do governo norte-americano — centrando suas diretrizes na defesa do conservadorismo e do pensamento anticomunista e na adesão irrestrita às ações de neutralização da esquerda revolucionária empreendidas no âmbito da Guerra Fria.
Por mais de uma década, a ESG esteve oficialmente associada à National War College dos Estados Unidos. Boa parte da estrutura e do conteúdo dos cursos ofertados pela ESG eram elaborados por militares norte-americanos.
Assim, ao contrário das instituições congêneres, a ESG não tinha como enfoque o estudo de táticas e estratégias militares ou assuntos de defesa nacional. Servia antes para consolidar a difusão do pensamento americanófilo e anticomunista junto ao oficialato brasileiro.
O governo dos Estados Unidos manteve uma forte presença de seus oficiais no corpo regular da ESG até a década de 1970. A escola funcionaria por três décadas quase como uma extensão oficiosa do Pentágono no Brasil.

Sede da Escola Superior de Guerra na Urca
A Doutrina de Segurança Nacional
A Doutrina de Segurança Nacional (DSN), elaborada pela ESG nos anos 1950, é o exemplo mais claro dessa subserviência. Diferente das doutrinas tradicionais de defesa, que eram voltadas às ameaças externas, a DSN tinha como prioridade o conceito de “segurança hemisférica” — a crença de que a mais importante missão institucional das Forças Armadas brasileiras era colaborar com os Estados Unidos para combater o comunismo “onde quer que ele fosse percebido”.
Com base na Doutrina de Segurança Nacional, os militares brasileiros passaram a priorizar o combate ao “inimigo interno”. Ecoando a paranoia anticomunista dos Estados Unidos, os oficiais brasileiros passaram a rotular os sindicatos, os movimentos camponeses, os intelectuais de esquerda, os políticos progressistas como “perigos à ordem”.
Essa percepção de que os “verdadeiros inimigos” eram uma parte do povo brasileiro também serviria como justificativa para reforçar a intervenção dos militares sobre a política nacional. As Forças Armadas atribuíram a si mesmas o direito de tutelar o povo brasileiro e impor as decisões que julgassem mais corretas — ao mesmo tempo em que passavam a considerar a soberania popular e os princípios democráticos como obstáculos aos seus interesses.
Em outras palavras, ao mesmo tempo em que orientava seus oficiais a se submeterem de forma acrítica à agenda de Washington, a ESG incentivava a desvalorização das instituições nacionais e a desconfiança em relação à população civil. Não eram as potências imperialistas que eram vistas como inimigos potenciais dos militares brasileiros, mas sim as instituições nacionais e o seu próprio povo.
A ESG e a articulação golpista
Malgrado a debilidade de suas pautas em relação à política de desenvolvimento nacional, a ESG assumiu o posto indisputado de centro de formação do pensamento do oficialato militar e de boa parte da elite empresarial brasileira.
A ESG teve grande participação no movimento que levou à deposição de João Goulart em 1964 e à instauração subsequente da ditadura militar brasileira. Ecoando a visão das elites brasileiras e do governo norte-americano, que enxergavam Goulart e as reformas de base como ameaças, a instituição se converteu em um dos principais centros de articulação da conspiração golpista.
Os três principais atores militares envolvidos no golpe eram todos oriundos da ESG — Humberto Castelo Branco, Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel.
Castelo Branco seria o primeiro general presidente da ditadura, responsável por implementar uma seria de medidas diretamente influenciadas pela ESG. Ernesto Geisel seria o quarto general presidente, responsável por operar o processo de distensão. Já Golbery se destacaria como um dos principais ideólogos do regime e idealizaria a criação do Serviço Nacional de Informações, peça central do aparato repressivo do governo.
A ESG e a ditadura
Após a concretização do golpe, apoiado militarmente pelo Pentágono através da “Operação Brother Sam”, o regime ligado à ESG imediatamente instituiu um projeto de incorporação das pautas ditadas por Washington.
Da reforma educacional às políticas de saúde, passando pela agenda econômica e política ambiental, os militares da ESG trataram de garantir que o Brasil cumprisse todas as ordens advindas da Casa Branca — pensamento sintetizado na conhecida frase do embaixador brasileiro Juraci Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.
Durante toda a ditadura, a ESG funcionaria como um dos principais núcleos ideológicos do regime. A Doutrina de Segurança Nacional evoluiu para uma concepção de “guerra total” contra o inimigo interno, justificando a criação de aparatos repressivos como os Destacamentos de Operações de Informações – Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) — responsáveis por torturar e assassinar centenas de opositores.
A ESG também intermediou uma série de acordos de cooperação que facilitaram o financiamento Washington ao aparato repressivo, através do envio de equipamentos e armas, criação de sistemas de vigilância, treinamento de militares em técnicas de repressão e controle social.
A redemocratização permitiu neutralizar em parte a influência da ESG sobre os rumos da política nacional, mas as doutrinas formuladas pela instituição continuam influenciando a visão de mundo dos oficiais — e a formação de militares que seguem até hoje como atores políticos relevantes.
O processo de militarização da política e das instituições do Estado, acelerado durante o governo de Jair Bolsonaro, — e massificado ao ponto de naturalizar o processo de militarização das escolas públicas — é uma evidência clara de que as ideias da ESG continuam vivas.
A disposição do ex-presidente em prestar continência à bandeira norte-americana e a empolgação de muitos militares com Donald Trump também sugerem que a americanofilia da caserna permanece intacta.
