Há 42 anos, em 16 de setembro de 1982, milícias cristãs maronitas, auxiliadas pelo exército de Israel, iniciavam o assassinato em massa de civis palestinos nos campos de Sabra e Chatila, em Beirute. A matança se estendeu por dois dias e deixou milhares de mortos. O Massacre de Sabra e Chatila foi uma das atrocidades mais hediondas ocorridas no contexto da Guerra Civil Libanesa. A matança recebeu a classificação de ato de genocídio da Assembleia-Geral da ONU. Os responsáveis, entretanto, jamais foram punidos.
A Guerra Civil Libanesa tem suas raízes nas disputas políticas entre as comunidades étnico-religiosas que compõem o país. Desde a independência em 1943, o sistema político do Líbano seguia a distribuição estabelecida pelo Pacto Nacional — um acordo não escrito, que atribuía funções com base na estrutura demográfica libanesa.
Os cristãos maronitas, à época o grupo mais numeroso, receberam a presidência e o comando das principais instituições nacionais. Para os muçulmanos sunitas, reservou-se o cargo de primeiro-ministro. Aos xiitas, foi designada a presidência do parlamento. Essa divisão passou a ser contestada após as alterações demográficas do país, que levaram ao rápido crescimento da comunidade muçulmana.
As tensões no Líbano se acirram enormemente após a fundação do Estado de Israel, que foi seguida pela expulsão em massa dos palestinos de suas terras e pela eclosão de uma série de conflitos no Oriente Médio. O Líbano passou a abrigar numerosas comunidades de refugiados palestinos.
No início dos anos 70, a própria Organização para a Libertação da Palestina (OLP) — principal frente dos movimentos armados que lutavam contra a ocupação israelense— estabeleceria suas bases no Líbano, após ser expulsa da Jordânia.
A crescente influência da OLP, por vezes se sobrepondo à autoridade do governo libanês, geraria profundo incômodo entre os cristãos maronitas, que passaram a enxergar a organização como uma ameaça ao seu domínio político.
A intensificação das disputas sectárias minou gradualmente a autoridade do governo central do Líbano e os grupos rivais começaram as iniciar a formação de suas próprias milícias. Dentre os grupos paramilitares maronitas, se destacavam as milícias das Falanges Libanesas — partido político de extrema-direita, fundado nos anos 30 por Pierre Gemayel e inspirado pelas ideias nazifascistas.
Em 1975, as tensões evoluíram para uma guerra civil. O estopim do conflito foi um ataque contra um ônibus palestino perpetrado pelas Falanges, que resultou em 27 mortes. Seguiu-se uma espiral de violência, com combates opondo as milícias maronitas à OLP e seus aliados libaneses — nomeadamente o Movimento Nacional Libanês (MNL).
A guerra civil logo se internacionalizou, com a intervenção de Síria, Israel, Estados Unidos e outras nações. Em março de 1978, após lançar a Operação Litani, o exército israelense invadiu o sul do Líbano, com o objetivo de eliminar as bases da OLP no país. Os invasores foram apoiados pelo Exército do Sul do Líbano, outra milícia cristã, liderada por Saad Haddad. A ofensiva israelense matou cerca de 2.000 palestinos e libaneses e forçou centenas de milhares de civis a se deslocarem. O Conselho de Segurança da ONU aprovou duas resoluções determinando o cessar-fogo, assinado duas semanas após a invasão.
A cooperação entre Israel e as milícias maronitas seria fortalecida a partir de 1978. Grupos paramilitares libaneses passaram a ser treinados, armados e financiados por Israel. Com auxílio do Mossad, Israel também conduziu um plano para ampliar o domínio dos milicianos maronitas sobre o governo libanês.
Teve início, assim, uma articulação para conduzir Bashir Gemayel à presidência do Líbano. Filho de Pierre Gemayel, o fundador das Falanges, Bashir liderava a Frente Libanesa — um agrupamento de milícias cristãs. Ele havia sido responsável pela matança de mais de 200 palestinos nas chacinas do chamado “Sábado Negro”, ocorrido ainda no início da guerra civil.
Definida a estratégia, restava colocá-la em prática. Israel intensificou os bombardeios e ataques aéreos contra o Líbano, tentando provocar uma resposta que lhe desse uma justificativa para invadir o país. Um dos piores ataques ocorreu em julho de 1981, quando um violento bombardeio atingiu o centro de Beirute, matando cerca de 300 pessoas. O governo israelense finalmente enxergaria uma oportunidade em junho de 1982, quando Shlomo Argov, o embaixador israelense no Reino Unido, foi alvo de uma tentativa de assassinato.
O ataque a Argov foi perpetrado pela Organização Abu Nidal, uma dissidência do Fatah. A OLP não teve qualquer envolvimento na ação e chegou a emitir uma nota condenando o atentado. O pretexto, entretanto, estava dado. Dois dias após o ataque, as tropas israelenses invadiram o Líbano. Israel tinha três objetivos em sua campanha: destruir a infraestrutura militar da OLP, expulsar o exército sírio do território libanês e garantir a posse de Bashir Gemayel como presidente do Líbano. O principal arquiteto da operação foi Ariel Sharon, então ministro da Defesa no gabinete do premiê Menachem Begin.
Ainda em junho de 1982, as forças israelenses iniciaram o cerco à Beirute, o novo centro de operações da OLP, e submeteram a capital libanesa a uma intensa campanha de bombardeios. O cerco sobre a cidade foi mantido até o mês de agosto, quando foi proposta a criação de uma Força Multinacional para supervisionar a evacuação dos combatentes da OLP e garantir a segurança dos refugiados palestinos — o que foi aceito pelos dois lados em disputa.
Ainda em agosto de 1982, Bashir Gemayel foi eleito presidente do Líbano pelo parlamento libanês. Fortemente apoiado por Israel e Estados Unidos, ele era o único candidato do pleito. A eleição ocorreu sob intensa pressão militar, acusações de coação e boicote dos parlamentares muçulmanos. O fato do governante eleito ser alinhado aos interesses de Israel provocou enorme insatisfação nas comunidades muçulmanas e drusas do Líbano.
Bashir Gemayel, entretanto, nem chegaria a tomar posse. Ele seria assassinado em 14 de setembro de 1982, junto com outros 23 militantes das Falanges, em um atentado a bomba na sede da agremiação. O autor do ataque foi Habib Shartouni, um cristão maronita de extrema-direita, membro do Partido Social Nacionalista Sírio, que estava contrariado com a subserviência de Bashir ao governo de Israel. A responsabilidade pelo ataque, no entanto, foi falsamente atribuída aos palestinos. O boato foi amplamente difundido, visando gerar indignação — e o desejo de vingança — entre os maronitas.
O governo israelense imediatamente deu início aos preparativos para uma ofensiva em Beirute. Um dia após o atentado, o comandante das forças armadas de Israel, Rafael Eitan, reuniu-se com Ariel Sharon e com os líderes falangistas e ordenou a preparação das tropas. As forças israelenses cercaram os campos de refugiados de Sabra e Chatila ainda no dia 15, controlando todas as entradas e saídas, e realizaram ataques aéreos. A incursão terrestre, entretanto, foi deixada a cargo das milícias maronitas. Conforme relatado por Linda Malone, foram os próprios líderes israelenses que convidaram e incitaram as Falanges a atacarem os campos de refugiados.
O massacre teve início no dia seguinte, 16 de setembro de 1974, sob o comando de Elie Hobeika, líder das Forças Libanesas. A operação mobilizou mais de 1.500 milicianos falangistas. Eles receberam armas e veículos do próprio exército israelense para realizar a operação. A primeira unidade, composta por 150 homens, ingressou nos campos de refugiados por volta das 18 horas, dando início às atrocidades.
Os falangistas percorreram quadra por quadra, casa por casa, executando todos os palestinos que encontravam pelo caminho, com tiros à queima-roupa e golpes de armas perfurantes. As ruas ficaram repletas de cadáveres. Famílias inteiras foram encontradas mortas dentro de suas casas. Eram civis — crianças, mulheres, idosos e homens desarmados.
Inúmeras vítimas foram estupradas, torturadas e mutiladas. O relato de Janet Lee Stevens, jornalista norte-americana que inspecionou o local após o massacre, dá uma dimensão do terror vivido pelos palestinos: “Vi mulheres mortas em suas casas com as saias levantadas até a cintura e as pernas abertas; dezenas de jovens baleados após serem enfileirados contra a parede de um beco; crianças com suas gargantas cortadas, uma mulher grávida com a barriga aberta, os olhos arregalados, o rosto gritando silenciosamente de horror; inúmeros bebês e crianças pequenas que foram esfaqueados ou dilacerados e jogados em pilhas de lixo.”
O jornalista israelense Amnon Kapeliouk também fez um relato angustiante na obra “O Massacre de Sabra e Chatila”: “Os assassinos não se contentaram em matar. Em diversos casos, cortaram os membros de suas vítimas antes de liquidá-las. Esmagaram contra a parede a cabeça das crianças e dos bebês. Mulheres e até meninas foram violadas, antes de serem assassinadas a golpes de machado.
No bairro de Horch Tabet, em Chatila, toda a família Mikdad foi assassinada. Seus 45 membros, homens, mulheres e crianças, executados sem exceção, alguns degolados, outros estripados. Entre eles, uma mulher de 29 anos, chamada Zeinab, no oitavo mês de gravidez. Abriram-lhe o ventre, tiram-lhe o feto e o colocaram nos braços de sua mãe morta. Matam seus outros sete filhos.”
A matança se estendeu por 43 horas, com o consentimento, patrocínio e apoio logístico do governo israelense. Não há um número oficial de vítimas, mas as estimativas variam entre 2.000 e 3.500 mortos. A Cruz Vermelha/Crescente Vermelho apontou 2.400 mortos. O governo israelense afirma que morreram “apenas” 800 pessoas, mas esse dado é desmentido até pelos registros cartoriais — foram emitidos mais de 1.200 certificados de óbito por requisição de familiares das vítimas, por exemplo. O historiador Bayan Nuwayhed e o jornalista Amnon Kapeliouk defendem que a cifra deve se aproximar de 3.500 mortos.
O Massacre de Sabra e Chatila provocou perplexidade e indignação, levando à eclosão de protestos em dezenas de cidades. Em dezembro de 1982, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução condenando o massacre como um ato de genocídio, mas não determinou nenhum tipo de punição ao governo israelense. Houve manifestações também em Israel. Um enorme protesto reuniu mais de 400 mil pessoas em Tel Aviv — um dos maiores atos públicos já registrados no país. A manifestação forçou o premiê Menachem Begin a instaurar uma comissão para investigar o caso — a Comissão Kahan.
O relatório final da comissão apontou a responsabilidade de Ariel Sharon no massacre. Sharon foi afastado do cargo de ministro da Defesa, mas permaneceu compondo o gabinete presidencial e não respondeu a nenhum inquérito. Em 2001, ele se tornaria primeiro-ministro de Israel. Elie Hobeika, o comandante das Falanges que liderou o massacre, também nunca foi punido. Ele construiu uma bem sucedida carreira política no Líbano, sendo eleito para o parlamento e ocupando a chefia de vários ministérios na década de 1990.