Terrorismo de Estado: O Golpe de 1976 e a Guerra Suja na Argentina
Há 49 anos, presidente argentina Isabelita Perón foi derrubada por um golpe militar que inaugurou a ditadura mais sangrenta da história da Argentina
Há 49 anos, em 24 de março de 1976, a presidente argentina Isabelita Perón era derrubada por um golpe militar. A quartelada inaugurou o chamado “Processo de Reorganização Nacional” — a ditadura mais sangrenta da história da Argentina.
O regime militar argentino foi responsável por uma série de atrocidades, incluindo o aprofundamento da “Guerra Suja” — a política de repressão sistemática à esquerda e aos opositores da ditadura, responsável por prender, torturar e assassinar milhares de pessoas.
Perpetrada com apoio dos Estados Unidos e das demais ditaduras sul-americanas, a “Guerra Suja” evoluiu para um processo genocida. Estima-se que até 30.000 pessoas foram assassinadas pelo governo argentino ao longo de sete anos. Após a redemocratização, vários oficiais argentinos foram julgados e condenados por crimes contra a humanidade.
O fenômeno do peronismo
Poucas figuras tiveram uma influência tão expressiva e duradoura na trajetória política de uma nação quanto Juan Domingo Perón. Alçado aos holofotes pela “Revolução de 1943”, o líder argentino angariou enorme apoio da classe trabalhadora ao encampar uma agenda de ampliação dos salários, dos benefícios sociais e dos direitos trabalhistas.
Eleito presidente em 1946 e reeleito em 1951, Perón buscou promover a doutrina justicialista — movimento que aliava dirigismo econômico, justiça social e soberania política, descrito por Perón como uma “terceira via” entre o capitalismo e o socialismo.
Embora contemplasse alianças com amplos setores da burguesia argentina, o peronismo sofreu crescente oposição das forças conservadoras — em especial os militares e a Igreja Católica. Em 1955, Perón foi derrubado por um golpe militar e forçado a se exilar na Espanha por 18 anos.
Os militares cassaram o registro do Partido Justicialista, mas o peronismo se manteve como a mais poderosa força política da Argentina nas décadas seguintes. A disputa pelo legado peronista fez com que o movimento influenciasse organizações de todos os espectros políticos, da extrema-esquerda à extrema-direita.
A crise política argentina se acentuou no início dos anos 70, com a eclosão de conflitos armados envolvendo os movimentos revolucionários de esquerda e os grupos paramilitares de direita. Com o país à beira da convulsão social, os militares chegaram à conclusão de que somente o retorno de Perón poderia acalmar as massas.
Perón retornou à Argentina em 1973, após ajudar a viabilizar a eleição de Héctor Cámpora. Seu retorno deveria ser celebrado por um grande evento nos arredores do Aeroporto de Ezeiza. Durante a confraternização, entretanto, paramilitares da direita peronista abriram fogo contra os peronistas de esquerda, matando 13 pessoas e deixando centenas de feridos.
Em uma clara indicação de que pretendia se perfilar com os setores conservadores, Perón responsabilizou a esquerda pela matança. O Massacre de Ezeiza dividiu o movimento peronista, marcando o rompimento entre Perón e a esquerda radical.
A terceira Presidência de Perón
Em setembro de 1973, atendendo ao pedido de Perón, Cámpora renunciou à Presidência, abrindo caminho para novas eleições. Perón lançou-se como candidato pelo Partido Justicialista. Sua esposa, Isabelita Perón, integrava a chapa como candidata a vice.
A chapa Perón-Perón foi eleita com mais de 60% dos votos. O terceiro mandato de Perón foi marcado por uma tentativa de retomar o dirigismo dos anos 40. Perón nacionalizou bancos e indústrias, regulou o setor agrícola, tributou as terras improdutivas e impôs fortes restrições ao capital estrangeiro. Também acenou para a classe operária, instituindo novos direitos trabalhistas e fomentando a criação de cooperativas.
A cisão com a esquerda, entretanto, se aprofundaria. Perón apoiou iniciativas de criminalização dos Montoneros e outros grupos da esquerda revolucionária, o que levou à renúncia de ministros e parlamentares de seu partido. O presidente argentino também não fez quaisquer tentativas de restaurar os mandatos dos governadores da esquerda peronista entre 1973 e 1974.
Foi ainda sob a gestão de Perón que o governo argentino passou a financiar as atividades da Aliança Anticomunista Argentina (Triplo A) — organização paramilitar de extrema-direita que seria responsável por cometer atentados terroristas e assassinar centenas de sindicalistas, militantes e líderes políticos de esquerda.
O governo de Juan Domingo Perón seria curto. Sofrendo de uma doença circulatória, o líder argentino faleceu em julho de 1974, vitimado por uma parada cardíaca. Ele foi sucedido no cargo pela vice-presidente Isabelita Perón, sua terceira esposa.
Isabelita Perón
Isabelita Perón foi a primeira mulher do continente americano a se tornar chefe de governo. Sua Presidência transcorreu em um cenário bastante difícil, marcado por uma grave crise econômica, instabilidade política e aumento da violência.
Sem experiência política, Isabelita se apoiou sobretudo nos conselhos de seu Ministro do Bem-Estar Social, José López Rega. Líder da Aliança Anticomunista Argentina, Rega se tornaria uma espécie de “primeiro-ministro informal”, conduzindo efetivamente os rumos do governo e fomentando sua militarização.
López Rega incitou a ação da Aliança Anticomunista Argentina, estimulando ainda mais a violência política. Ele também implementou uma série de medidas centralizadoras e autoritárias, reforçando o controle sobre a imprensa, intervindo nas universidades e organizações da sociedade civil.
Na área econômica, a Argentina sentia fortemente os efeitos da crise do petróleo, enfrentando uma inflação galopante e o aumento do desemprego. Em junho de 1975, Celestino Rodrigo, o Ministro da Economia, implementou um pacote de medidas que visava “corrigir desequilíbrios”. Entre as medidas estavam a desvalorização da moeda, o aumento de 100% nas tarifas dos serviços públicos e o reajuste de 180% no preço do combustível.
O resultado foi desastroso. O pacote impulsionou a inflação, ao mesmo tempo em que causou enorme descontentamento popular. Sindicatos e organizações do movimento trabalhista romperam com o governo convocaram protestos e paralisações. Pela primeira vez na história, um governo peronista foi confrontado por uma greve geral. A reação foi tão vigorosa que Isabelita viu-se forçada a retirar López Rega de seu governo.
A gestão de Isabelita Perón também foi responsável por lançar a “Operação Independência”, uma ofensiva das Forças Armadas argentinas que visava aniquilar o Exército Revolucionário do Povo — uma guerrilha guevarista que operava na província de Tucumán. A operação estabeleceu uma violenta política de repressão à esquerda argentina, com uso abundante de detenções arbitrárias, torturas e execuções extrajudiciais, tornando-se o marco inicial da “Guerra Suja”.
Em setembro de 1975, Isabelita se licenciou temporariamente da Presidência por motivos médicos, entregando a chefia do governo a Ítalo Luder, presidente do Senado. Luder seria responsável por ampliar a tutela militar sobre o governo civil, dividindo o país em regiões militarizadas e entregando o comando do Conselho de Defesa Nacional e das forças de segurança das províncias para as Forças Armadas.

Emilio Massera, Jorge Videla e Orlando Agosti, líderes da Junta Militar argentina, retratados em 1978
O golpe de 1976
Isabelita retornou ao governo em outubro de 1975, mas enfrentava uma pressão cada vez maior para renunciar. A despeito das inúmeras concessões feitas aos setores reacionários, a presidente argentina era acusada de ser inepta e de operar a “sovietização” do país. Empresários, latifundiários e líderes religiosos se uniram aos oficiais que exigiam a instalação de um regime militar no país.
A conspiração golpista recebeu forte respaldo do governo dos Estados Unidos. Henry Kissinger, então Secretário de Estado da Casa Branca, encontrou-se em inúmeras ocasiões com os oficiais argentinos e ofereceu apoio para viabilizar a mudança de regime.
A primeira tentativa de golpe ocorreu em dezembro de 1975, sob a liderança do brigadeiro Orlando Cappellini. O golpe foi frustrado graças à resistência do Héctor Fautario, o comandante da aeronáutica que permaneceu leal a Isabelita. Fautario, entretanto, seria removido do cargo numa tentativa de acalmar os generais.
Em 24 de março de 1976, Isabelita Perón foi deposta por um golpe liderado pelos três comandantes das Forças Armadas. A quartelada foi justificada como necessária para pacificar o país, combater a “corrupção”, a “demagogia” e a “subversão” e inserir a Argentina no “mundo ocidental e cristão”. A presidente seria posta sob prisão domiciliar e posteriormente processada por desvio de verbas do erário.
Uma junta militar formada pelo general Jorge Rafael Videla, pelo almirante Emilio Massera e pelo brigadeiro Orlando Agosti assumiu o governo argentino. Os golpistas batizaram seu regime como “Processo de Reorganização Nacional”. O Congresso foi dissolvido, a Constituição foi suspensa e os partidos políticos foram banidos. O regime instituiu uma rígida censura da imprensa, interveio nos sindicatos e criminalizou os movimentos de oposição.
Vários empresários e organizações que apoiaram o golpe foram beneficiados com o controle de pastas na nova gestão. O Ministério da Economia, por exemplo, foi entregue a José Alfredo Martínez de Hoz, presidente do Conselho Empresarial Argentino. Já o Banco Central passou à gestão de Adolfo Diz, diretor-executivo do FMI e representante da Associação de Bancos Privados.
A Guerra Suja
O regime instituído após o golpe de 1976 converteu-se na ditadura mais sangrenta da história da Argentina. Os militares instituíram uma política de terrorismo de Estado, cometendo o extermínio de opositores em larga escala. A “Guerra Suja”, a princípio limitada a aniquilar os movimentos da esquerda radical em Tucumán, tornou-se generalizada.
A política de repressão da ditadura argentina esteve intimamente vinculada ao Plano Condor — uma operação clandestina de cooperação entre as ditaduras militares da América do Sul, visando o extermínio de opositores. O Plano Condor foi elaborado, financiado e coordenado pelo governo dos Estados Unidos, como parte de sua “doutrina de segurança nacional”, que visava eliminar os movimentos populares e os partidos de esquerda durante a Guerra Fria.
O regime argentino instalou centros clandestinos de operação por todo o país, onde os presos políticos eram submetidos a espancamentos, torturas, abusos sexuais e execuções sumárias. Entre os métodos frequentemente utilizados pelo regime estavam os “voos da morte”, em que prisioneiros eram drogados e atirados ao mar a partir de aviões militares.
O assassinato de opositores foi tão generalizado que se converteu em um processo genocida. Estima-se que 30.000 pessoas foram assassinadas pelos militares argentinos durante a “Guerra suja”. A maioria das vítimas eram estudantes, sindicalistas, militantes de esquerda, professores e ativistas de movimentos sociais.
A ditadura argentina também cometeu sequestro sistemático de bebês. Mulheres grávidas presas pelo regime eram forçadas a dar à luz em cativeiro. Após o parto, as mães eram assassinadas e os bebês eram entregues para serem criados por famílias vinculadas ao regime. Esse episódio motivou a luta das Avós da Praça de Maio, movimento que busca localizar e identificar as crianças que foram sequestradas.
Outras medidas da ditadura
O modelo econômico adotado pelo regime argentino foi fortemente influenciado pelos preceitos liberais da Escola de Chicago, centrando-se na desregulação dos mercados e nas políticas de livre comércio. A ditadura privatizou diversas estatais e promoveu corte de gastos com programas sociais. Também eliminou a política de controle de preços, o regime de controle cambial e as tarifas de importação e exportação.
As medidas econômicas geraram desindustrialização e o aumento expressivo da inflação e da dívida externa. O poder de compra dos trabalhadores despencou para o nível mais baixo desde a década de 1930. Os salários reais sofreram perdas de 40% em relação ao último governo de Perón. A concentração de renda e a pobreza cresceram de forma acelerada. A quantidade de argentinos vivendo abaixo da linha da miséria passou de 4,6% em 1974 para 21% em 1982.
A ditadura argentina também promoveu enormes retrocessos no sistema educacional do país. O modelo de “escola única” foi abolido em favor de um sistema excludente e elitizado, que precarizou a qualidade do ensino ofertado às classes populares. Esse processo atingiu sobretudo as províncias mais pobres, que sofreram com o corte de recursos.
Na área cultural, a ditadura instituiu políticas de censura prévia e de perseguição aos opositores. Foram cridas amplas listas de artistas e intelectuais considerados “subversivos”. Os alvos eram proibidos de exercer atividades na Argentina e suas obras eram banidas ou tiradas de circulação. Os militares também promoveram a queima de livros, destruindo mais de 1,5 milhão de volumes.
O fim do regime
O péssimo desempenho econômico da ditadura militar e as medidas impopulares geraram o descontentamento generalizado da população. Em uma tentativa de recuperar apoio popular, os militares decidiram invadir as Ilhas Malvinas — território historicamente reivindicado pela Argentina, mas sob domínio do Reino Unido desde o século XIX.
A derrota da Argentina na Guerra das Malvinas tornou a situação dos militares insustentável. Sob crescente pressão interna e externa, os oficiais se viram forçados a convocar novas eleições. Em dezembro de 1983, Raúl Alfonsín foi empossado como presidente, encerrando formalmente o regime ditatorial.
Em 1985, a Argentina deu início ao julgamento das Juntas Militares, que resultou na condenação de vários líderes do regime. Entre os condenados estavam Jorge Rafael Videla e Emilio Massera, que receberam penas de prisão perpétua. Também foram condenados à prisão o general Roberto Viola (17 anos), o almirante Armando Lambruschini (8 anos) e o general Orlando Agosti (4 anos e meio).
Cerca de 600 militares foram denunciados, mas conseguiram escapar da punição graças à Lei do Ponto Final — instituída por pressão do oficialato, que ameaçou concretizar um novo golpe de Estado. Os militares argentinos pressionaram fortemente pela concessão de anistia. A partir de 1990, o presidente Carlos Menem iniciou a concessão de indultos aos golpistas condenados.
Em 2003, durante o governo de Néstor Kirchner, a Lei do Ponto Final foi revogada, o que permitiu a retomada dos julgamentos dos militares golpistas. Até hoje, a Argentina é o único país latino-americano a ter instituído um processo permanente de responsabilização dos militares golpistas da Guerra Fria.
