Há 244 anos, em 4 de novembro de 1780, os povos indígenas da América Andina davam início à “Grande Rebelião” — a maior insurreição anticolonial da história das Américas, responsável por mobilizar mais de 100 mil indígenas na luta contra o império espanhol e a escravidão. O levante foi liderado pelo revolucionário peruano Túpac Amaru II, descendente do último soberano do Império Inca e um dos maiores expoentes da resistência indígena.
Túpac Amaru II nasceu em 19 de março de 1738 em Surimana, na região de Cusco, Vice-Reino do Peru. Batizado José Gabriel Condorcanqui, adotou o nome de Túpac Amaru II em homenagem ao seu acenstral — Túpac Amaru, último imperador inca, executado em 1572 após conduzir uma revolta contra o domínio espanhol. Na condição de descendente da nobreza inca, Túpac herdou terras, cabeças de gado e um plantel de mulas e lhamas utilizadas no transporte de mercadorias. Herdou igualmente o título de cacique de Tungasuca, Surimana e Pampamarca, função que lhe granjeou enorme prestígio entre as comunidades indígenas. Túpac cursou o ensino básico em um colégio jesuíta e posteriormente ingressou na Universidade de San Marcos, onde estudou sobre a colonização espanhola no Peru e teve contato com obras de filósofos iluministas como Voltaire e Jean-Jacques Rousseau.
Os estudos na Universidade de San Marcos e o convívio com as dificuldades enfrentadas pelas comunidades indígenas aguçaram a percepção crítica de Túpac sobre os efeitos nocivos da colonização. Após destruírem o Império Inca e dizimarem parte substancial das comunidades indígenas, os espanhóis submeteram os nativos à mita — regime de trabalho compulsório análogo à escravidão. Os indígenas eram empregados como mão de obra nas plantações, na extração de minérios e nas manufaturas. A exploração era particularmente brutal nas minas de prata e mercúrio de Potosí e Huancavelica. Os indígenas eram forçados a se deslocarem para as regiões mineradoras, onde viviam em condições extremamente insalubres. Africanos escravizados também eram utilizados nas minas peruanas em menor proporção.
Para além da exploração inclemente das comunidades indígenas, as mudanças introduzidas nas colônias espanholas pelos Bourbon causaram grandes prejuízos às camadas médias — comerciantes, profissionais liberais e parte da chamada “elite criolla” (descendentes de espanhóis nascidos na América). A criação dos vice-reinos de Nova Granada e Rio da Prata resultou no fim do monopólio comercial de Lima, ao passo que a reforma fiscal provocou um aumento expressivo de impostos, dificultando a vida dos comerciantes e mesmo de comunidades que não podiam arcar com a pesada carga tributária. Somava-se ao quadro o descontentamento com a gestão dos corregedores, que administravam os povoados de maneira autoritária, com recurso frequente à violência. Possuindo bom trânsito entre indígenas e os “criollos”, Túpac logrou aglutinar a insatisfação generalizada em torno de um movimento reivindicando a reforma da administração colonial.
O líder indígena encaminhou aos tribunais de Lima uma petição solicitando mudanças no regime fiscal, a substituição do cargo de corregedor por prefeitos eleitos nas províncias e povoados e o fim do trabalho compulsório dos indígenas nas minas, relatando as condições desumanas e os riscos a que os nativos estavam submetidos. Ignorado, voltou a apelar para o bom senso das autoridades coloniais em Tinta e Cusco, também sem sucesso. Túpac decidiu, então, partir para uma ação mais enérgica, mobilizando as lideranças indígenas em prol de uma insurreição. Em 4 de novembro de 1780, o corregedor Antonio de Arriaga, infame pelo tratamento desumano dispensado aos indígenas, foi capturado e enforcado por um grupo de nativos sublevados. Ostentando o tradicional ornamento inca do Sol Dourado no peito, Túpac convocou indígenas, mestiços e negros a lutarem contra a dominação espanhola, dando início à chamada Grande Rebelião.
Os rebeldes saquearam os depósitos, armazéns e arsenais e distribuíram as armas para as comunidades indígenas. O prestígio de Túpac e sua identificação como descendente da linhagem imperial dos incas facilitou a adesão dos caciques peruanos à sublevação, que logo ultrapassou as fronteiras do vice-reino, atingindo os altiplanos bolivianos e se estendendo até o norte da Argentina. Micaela Bastidas, esposa de Túpac, se engajou diretamente no recrutamento de combatentes. Em pouco tempo, o exército revolucionário já contava com dezenas de milhares de soldados voluntários. Os indígenas marcharam pelo Peru obtendo sucessivas vitórias, tomando em pouco tempo as províncias de Quispicânchi, Tinta, Cotabambas, Calca e Chumbivilcas. Tropas coloniais despachadas por Cusco tentaram debelar o levante, mas sofreram uma fragorosa derrota na Batalha de Sangarará.
O exército de Túpac seguiu marchando por mais de 1.500 quilômetros, angariando em seu ápice mais de 100 mil combatentes. À medida em que avançavam, os revolucionários atacavam as propriedades dos colonizadores, destruíam os campos de trabalho forçado e libertavam os indígenas e negros escravizados. Também confiscavam e distribuíam para os populares os bens dos colonizadores e os fundos do erário real. Alarmada com os desdobramentos da insurreição e com o impacto da libertação dos escravos para os seus negócios, a elite criolla retirou o apoio inicial que dera ao movimento e se aliou às forças coloniais. Túpac ainda tentou obter apoio da Igreja Católica, mas foi excomungado como “rebelde traidor do Rei Nosso Senhor, (…) perturbador da paz e usurpador dos Direitos Reais”.
Preocupado com o avanço da insurreição e com a possibilidade de perder o controle de suas colônias, o rei Carlos III ordenou o envio de uma gigantesca expedição para debelar o levante indígena. Ciente dos reforços enviados por Madri, Túpac decidiu adiantar o plano de tomar Cusco, antiga capital do Império Inca. Em dezembro de 1780, 40 mil rebeldes liderados por Túpac iniciaram a investida ao norte de Cusco, na região de Cerro Picchu. O irmão de Túpac, Diego Cristóbal, por sua vez, comandou as tropas pelo leste. A batalha se estendeu por uma semana, mas as tropas espanholas, armadas com canhões e protegidas pelas fortificações que cercavam a cidade, conseguiram repelir os invasores, obrigando o exército de Túpac a recuar até Tinta.
Após receberem um reforço de 17 mil soldados fortemente armados, as tropas espanholas iniciaram uma campanha para esmagar de forma definitiva a rebelião indígena. Visando enfraquecer as tropas de Túpac, os espanhóis ofereceram anistia aos combatentes indígenas que deserdassem. Em abril de 1781, o exército de Túpac sofreu uma derrota decisiva e quase foi aniquilado. Traídos por dois de seus oficiais, Ventura Landaeta e Francisco Cruz, os rebeldes foram cercados entre Tinta e Sangarará. Em 6 de abril de 1781, Túpac foi capturado. Acorrentado e enviado a Cusco, o líder indígena ficou preso na Capela de San Ignacio. Túpac foi torturado por 35 dias seguidos para que revelasse o nome dos outros líderes da rebelião, mas manteve-se calado até o fim.
Túpac Amaru II foi condenado a morte e sofreu uma execução cruel. O líder indígena foi forçado a presenciar a tortura e morte de sua mulher, de seus filhos e amigos. Depois, teve seus membros atados a quatro cavalos dispostos em direções opostas para ser desmembrado. Ainda vivo após a tentativa de desmembramento, foi decapitado. Sua cabeça foi cravada em uma lança e exposta à execração pública e as partes do seu corpo esquartejado enviadas às províncias que seu exército havia conquistado. A rebelião indígena ainda prosseguiu por mais dois anos em duas frentes distintas, comandadas por Túpac Katari e Diego Cristóbal, até ser finalmente debelada em 1783. Milhares de indígenas foram mortos durante a repressão perpetrada pelas autoridades coloniais.
Túpac Amaru II converteu-se no símbolo máximo da resistência indígena à opressão colonial. É considerado o fundador da identidade nacional peruana e o inspirador de inúmeros movimentos emancipacionistas e anti-imperialistas que o sucederam, tendo influenciado gerações de revolucionários latino-americanos ao longo dos séculos, de Simón Bolívar a Che Guevara.