Um bairro negro sob ataque: 40 anos do bombardeio da sede do MOVE
Bombardeio aéreo resultou na morte de 11 pessoas, incluindo cinco crianças, e mais de 60 casas de Cobbs Creek foram destruídas
Há 40 anos, em 13 de maio de 1985, forças policiais dos Estados Unidos bombardeavam o bairro afro-americano de Cobbs Creek, na Filadélfia, visando destruir a sede do MOVE — um movimento negro anticapitalista.
O ataque representou o ápice de um conflito que se arrastava há anos. Alvos frequentes da repressão, os membros do MOVE decidiram se armar para resistir à violência policial. A decisão ocorreu após os agentes assassinarem a filha recém-nascida de uma militante do grupo.
O bombardeio aéreo resultou na morte de 11 pessoas, incluindo cinco crianças. Mais de 60 casas do bairro foram destruídas. O episódio gerou consternação e levantou sérios debates sobre o racismo institucional e o abuso policial, mas nenhum dos envolvidos no ataque foi punido.
O MOVE
O MOVE é um movimento negro de inspiração anarcoprimitivista, fundado na Filadélfia em 1972. Seu criador era John Africa, pseudônimo de Vincent Leaphart, um veterano da Guerra da Coreia.
O grupo surgiu em um contexto de efervescência política do movimento negro nos Estados Unidos, combinando o ideário revolucionário (inspirado nos Panteras Negras e no movimento Black Power), ativismo ambiental e defesa dos animais.
Os membros do MOVE defendiam um estilo de vida comunitário, criticavam o capitalismo e a revolução tecnológica e pregavam a ideia de “regresso à natureza”. A exemplo do fundador, todos os membros do grupo adotam o sobrenome “Africa”, em alusão às raízes ancestrais da comunidade negra.
A princípio, o grupo se estabeleceu em uma residência em Powelton Village, um bairro da Filadélfia conhecido por abrigar galerias, ateliês e eventos artísticos. Os vizinhos logo começaram a se queixar das atividades políticas desenvolvidas no imóvel e da grande quantidade de cães e gatos que os membros do movimento recolhiam das ruas.
Repressão policial e a morte de Life Africa
A postura anticapitalista do MOVE, os protestos contra o governo e a denúncia da violência policial e da opressão contra as minorias também incomodavam as autoridades norte-americanas. Não demorou para que o movimento se tornasse alvo de constante vigilância e repressão, testemunhando a prisão arbitrária de vários de seus membros pela polícia.
Em março de 1976, após serem acionados por vizinhos incomodados com o barulho no imóvel, policiais invadiram a sede do MOVE e agrediram os membros do grupo com chutes, socos e golpes de cassetete.
Entre as militantes agredidas estava Janine Africa, que foi arremessada pelos policiais contra o chão, mesmo carregando em seus braços sua filha recém-nascida, Life Africa. O bebê de apenas três semanas teve seu crânio esmagado na queda e morreu na hora.
Os militantes do MOVE denunciaram a morte da criança, mas a polícia negou tal ocorrência. O bebê havia nascido na própria residência. Não possuía certidão de nascimento ou registro em maternidade. Com o corpo levado pelos policiais, não havia prova de que a criança sequer existia.
Conflitos de 1978
A morte de Life Africa levou o MOVE a se radicalizar. Os membros começaram a adquirir armas e cercaram a sua sede com plataformas de madeira, para dificultar eventuais invasões. A reação alarmou os vizinhos e motivou ataques da imprensa, que alegava que o grupo reunia “fanáticos e criminosos”.
Os conflitos com a polícia se tornaram cada vez mais frequentes. Em 1978, numa tentativa de expulsar o grupo, o prefeito da Filadélfia, Frank Rizzo, ordenou um bloqueio policial à residência que se arrastou por 56 dias.
Em agosto de 1978, a polícia da Filadélfia voltou a atacar a sede do movimento, dessa vez utilizando canhões de água. Quando os policiais tentaram forçar a entrada na residência, entretanto, os militantes reagiram, dando início a um tiroteio que se prolongou por vários minutos e resultou na morte do policial James Rump.
Outras 16 pessoas ficaram feridas. O ataque à residência durou uma hora, até que os militantes se entregassem. Embora o policial morto tenha sido atingido por uma única bala, nove membros do MOVE (Chuck, Delbert, Eddie, Janet, Janine, Merle, Michael, Phil e Debbie) foram acusados coletivamente por homicídio em terceiro grau. Todos foram condenados à prisão, recebendo sentenças de 30 a 100 anos.

Autor desconhecido / Wikipedia
Cobbs Creek
Em meados dos anos 80, os membros remanescentes do MOVE estabeleceram uma nova sede, dessa vez no bairro de Cobbs Creek, uma área residencial na Zona Oeste da Filadélfia predominantemente habitada por afro-americanos.
Filadélfia era então administrada pelo democrata Wilson Goode, o primeiro prefeito negro da cidade. A eleição de Goode gerou muitas expectativas. A comunidade negra há muito tempo pressionava para que as autoridades agissem contra a brutalidade policial e o perfilamento das minorias.
Goode, entretanto, estava mais interessado em agradar o eleitorado conservador, que exigia pulso firme no combate à criminalidade. Ele logo se somou aos críticos do MOVE, defendendo a repressão contra o grupo e o acusando de ser uma “perigosa organização terrorista”.
Os relatórios produzidos pela polícia exageravam a periculosidade do movimento, descrevendo-o como uma organização fortemente armada. Os agentes intensificaram o assédio contra o MOVE, aumentando a vigilância e submetendo a sede do movimento a um verdadeiro cerco.
O bombardeio
No dia 13 de maio de 1985, o Departamento de Polícia da Filadélfia enviou um contingente de 500 policiais armados com metralhadoras para o bairro, a fim de executar mandados de prisão contra os integrantes do movimento. A ação foi coordenada pelo comissário Gregore Sambor. Os militantes do MOVE eram acusados de crimes como violação de liberdade condicional, desacato, posse ilegal de armas de fogo e ameaça terrorista.
O grupo se recusou a sair e a polícia passou então atacar a sede com bombas de gás lacrimogênio. Após a reação de militantes armados, a polícia abriu fogo contra o grupo, descarregando mais de 10 mil cartuchos de munição no edifício ao longo de 90 minutos.
Diante da resistência dos militantes, o comissário Sambor ordenou o bombardeio do imóvel. Um helicóptero da Polícia Estadual da Pensilvânia jogou um quilo de bombas de nitrato de amônio sobre a sede da organização. As bombas foram cedidas pelo FBI.
Os dispositivos atingiram um gerador movido a gasolina que se encontrava no telhado do edifício, aumentando o potencial destrutivo da explosão. Em poucos minutos, um enorme incêndio se espalhou pelo bairro, destruindo dezenas de moradias. A polícia impediu a ação dos bombeiros, permitindo que o incêndio se alastrasse. O fogo destruiu 65 casas, deixando centenas de pessoas desabrigadas e dezenas de feridos.
Onze pessoas que estavam dentro da sede do MOVE morreram no ataque: seis adultos (incluindo o fundador do grupo, John Africa) e cinco crianças, com idades entre 7 e 13 anos.
Dentre as crianças mortas na ação estavam os filhos de Janine (que já havia perdido seu bebê na agressão policial de 1976) e Delbert Africa, ambos cumprindo pena pelo tiroteio de 1978. Somente duas pessoas que estavam no edifício sobreviveram ao bombardeio — Ramona Africa e um menino de 13 anos, Birdie Africa (Michael Moses Ward). Ramona foi presa após a ação e cumpriu sete anos de prisão.
Reações
O uso desproporcional da força e a brutalidade policial geraram diversas críticas e indignaram as organizações do movimento negro. O ataque foi comparado ao massacre racial de Tulsa, ocorrido em 1921. Grupos como a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP) e a Liga Urbana Nacional (NUL) realizaram atos e protestos exigindo uma investigação federal.
Em resposta à pressão pública, o prefeito Wilson Goode criou a Comissão de Investigação Especial da Filadélfia. Ao longo de várias semanas, a comissão realizou audiências públicas, entrevistou testemunhas, policiais, bombeiros, membros do MOVE e residentes do bairro.
O relatório final, divulgado em março de 1986, reconheceu que as ações da polícia foram “desproporcionais”, “imprudentes” e “mal planejadas”, mas nenhuma acusação criminal foi registrada contra os agentes e autoridades responsáveis pelo bombardeio. Os membros do MOVE permanecem até hoje como os únicos punidos pelo episódio.
O caso retornou às manchetes na imprensa norte-americana em 2021, quando foi relevado que restos mortais das vítimas do bombardeio, incluindo a ossada da menina Delisha Africa, de 12 anos, haviam sido remetidos para o Museu Penn, da Universidade da Pensilvânia, para a realização de “pesquisas antropológicas”, sem o consentimento dos familiares.
