Há 120 anos, em 12 de agosto de 1904, as tropas do Império Alemão iniciavam o assassinato em massa dos povos originários da Namíbia. Entre 1904 e 1908, numa tentativa de consolidar seu domínio colonial na África, a Alemanha conduziu na Namíbia o primeiro genocídio do século XX, exterminando cerca 70% do povo Herero e de 50% do povo Nama.
A expansão colonial alemã teve início na segunda metade do século XIX, após a unificação do país. Incentivado pela burguesia germânica, Otto von Bismarck impôs a “Weltpolitik” — uma agressiva estratégia imperialista que pretendia transformar a Alemanha numa potência colonial, garantindo recursos naturais e mercados consumidores para atender o seu crescente parque industrial.
A África Subsaariana tornou-se o foco desse projeto, recebendo uma quantidade crescente de comunidades missionárias e colonos alemães. Em 1884, após uma série de negociações com o Reino Unido, a Namíbia foi oficialmente convertida em uma colônia alemã.
O Império Alemão incentivou a imigração para a Namíbia e impôs um sistema colonial brutal, baseado na exploração e no confisco de terra dos moradores. As autoridades alemãs tinham um projeto de transformar a Namíbia em uma “Alemanha africana”, tomando posse de suas terras agricultáveis e substituindo a população local por brancos. Os namibianos, conforme esse projeto, deveriam ser realocados em reservas e submetidos ao trabalho escravo. Para facilitar essa empreitada, o Império Alemão adotou diversas estratégias — desde o desmantelamento das hierarquias políticas locais até as chacinas de camponeses, passando pelo estupro em massa.
Reagindo às agressões dos colonizadores, os povos da Namíbia articularam uma rebelião. À frente do movimento estavam os Hereros e os Namas — dois grupos étnicos tradicionalmente dedicados ao pastoreio, que foram muito prejudicados pelo roubo de suas terras e perda de seus rebanhos.
Em 1903, um grupo de guerreiros Namas, liderados por Hendrik Witbooi, destruiu um assentamento alemão. Em janeiro de 1904, os Hereros se juntaram à rebelião. Liderados por Samuel Maharero, os Hereros realizaram um grande ataque aos postos alemães em Okahandja, subjugando as tropas coloniais e cortando a comunicação com a capital, Vinduque. O sucesso dessas ofensivas inflamou a resistência namibiana, fomentando outras insurreições. Poucas semanas após o ataque a Okahandja, os guerreiros Ondonga realizaram outra ofensiva, agora destruindo o Forte Namutoni.
Theodor Leutwein, o governador colonial, solicitou reforços à metrópole. A vitória dos nativos sobre as tropas coloniais constrangeu os oficiais e alarmou a cúpula do Império Alemão. A reação no Reichstag foi histérica, com parlamentares exigindo aos berros o “extermínio total dos Hereros”. A mesma recomendação era compartilhada pelo kaiser Guilherme II, furioso com a insubordinação do que julgava ser “um povo inferior”.
Em junho de 1904, o governo alemão despachou uma gigantesca força expedicionária para esmagar a rebelião dos nativos. Liderando o grupo estava o tenente-general Lothar von Trotha, infame pela brutalidade empregada contra os rebeldes chineses durante o Levante dos Boxers.
Uma carta escrita em 1904 por Trotha não deixa dúvidas sobre o intento genocida de sua campanha militar: “Acredito que a nação [Herero] deve ser aniquilada, ou, se isso não for possível através de medidas táticas, deve ser expulsa do país”, registra o documento.
O assassinato em larga escala dos nativos teve início em agosto de 1904, após os soldados alemães realizarem um cerco a um grupo de 60 mil namibianos abrigados no platô de Waterberg. A maioria dos nativos reunidos no platô não eram guerreiros. Havia um grupo de combatentes liderados por Samuel Maharero, mas mesmo estes não portavam armas de fogo — apenas lanças, bastões e armas brancas. Boa parte dos presentes eram crianças e mulheres. Mas os alemães não viram qualquer dilema ético. Equipados com canhões, metralhadoras e rifles modernos, os soldados iniciaram um verdadeiro massacre.
Os nativos que tentaram fugir da matança em Waterberg foram perseguidos pelos soldados alemães e forçados a se deslocarem até o Deserto de Kalahari. Trotha bloqueou todas as rotas de acesso, impedindo que os Hereros retornassem. Presos no deserto, sem água e comida, milhares de nativos morreram.
Em outubro de 1904, Trotha publicou um ultimato aos Hereros que ainda permaneciam na Namíbia: “Todos os Hereros devem abandonar esse país. (…) Qualquer Herero encontrado dentro das fronteiras alemãs, portando uma arma ou não, será executado. Não pouparei nem mulheres nem crianças”. O governador Leutwein argumentou que tais ações feriam a Convenção de Genebra e teriam impacto negativo para a imagem internacional da Alemanha. Os oficiais alemães replicaram dizendo que a convenção não aplicava aos Hereros, pois não eram “humanos de verdade”.
As tropas alemãs varreram o território em busca dos Hereros e Namas. Os homens eram assassinados — muitas vezes por perfuração ou enforcamento em árvores, para economizar os gastos com munição. As mulheres e crianças eram banidas para o deserto, onde também acabavam morrendo.
Ainda em 1904, os alemães inauguraram campos de concentração para encarcerar os nativos sobreviventes. Nesses campos, os namibianos eram identificados por número e submetidos ao trabalho escravo. Eram forçados a trabalhar em obras do governo colonial e para os próprios colonos. Também eram alugados como mão de obra por empresas privadas ativas na África Meridional. A maioria dos cativos eram mulheres e crianças.
Os campos de concentração eram, na prática, campos de extermínio. Os prisioneiros eram forçados a trabalhar até a morte por exaustão. Sofriam com doenças, fome e desnutrição e eram submetidos a um tratamento cruel, com rotinas de agressões, espancamentos e torturas. No campo de concentração de Shark Island, o maior da colônia, a taxa de letalidade ultrapassava os 80%. A certeza da morte era tanta que os funcionários dos campos emitiam certidões de óbito assim que os cativos chegavam.
Os prisioneiros também eram utilizados como cobaias humanas em experimentos médicos repulsivos. Há registros de um médico chamado “Dr. Bofinger” que fazia experiências injetando substâncias como arsênico e ópio em Hereros no campo de Shark Island. Desmembramentos também eram comuns. Mais de 300 crânios de namibianos e partes de corpos foram remetidos à Alemanha para uso em pesquisas.
Os campos de concentração permaneceram ativos até 1908. Os poucos sobreviventes foram posteriormente entregues para serem usados como escravos por colonos alemães. Os Hereros passaram a ser obrigados a usar acessórios de metal para serem publicamente identificados. Também foram proibidos de possuir terras ou gado.
Estima-se que até 100.000 pessoas tenham morrido durante o genocídio na Namíbia, incluindo cerca de 70% do povo Herero e 50% do povo Nama. O tenente-general Trotha, principal responsável pelo genocídio, foi condecorado como herói. Suas ações foram efusivamente elogiadas por Alfred von Schlieffen, chefe do Estado-Maior alemão, que rotulou a campanha de extermínio como uma necessária “guerra racial”.
Muitas das práticas empregadas durante o extermínio dos nativos namibianos seriam reaproveitadas décadas mais tarde pelo regime nazista — do funcionamento dos campos de concentração e sistema de hierarquização de raças ao uso de cativos como cobaias em experiências médicas infames. Da mesma forma, muitos alemães que atuaram na gestão do genocídio na Namíbia também participaram da estrutura administrativa do Terceiro Reich, tais como o médico eugenista Eugen Fischer e o oficial Franz Ritter von Epp, um dos responsáveis pelo extermínio dos judeus e ciganos na Baviera. O extermínio dos nativos namibianos foi oficialmente reconhecido como genocídio pela ONU em 1985, após a publicação do Relatório Whitaker.