Na última semana, um Tribunal de Apelação de Bruxelas proferiu um veredito histórico. Pela primeira vez, o Estado belga foi condenado por crimes contra a humanidade.
A Corte sentenciou o governo da Bélgica a pagar indenizações a cinco mulheres congolesas que, ainda na infância, foram arrancadas de suas famílias pelas autoridades belgas e internadas à força em reformatórios e orfanatos.
Dezenas de milhares de crianças belgas passaram pela mesma experiência.
Colonização belga
E, ainda assim, esses sequestros em massa são apenas uma pequena ponta de um iceberg de atrocidades cometidas pelos belgas durante o período em que colonizaram o território hoje pertencente à República Democrática do Congo.
O processo brutal de exploração implementado pela Bélgica entre os séculos 19 e 20 resultou na morte de até 10 milhões de congoleses.
Um dos maiores genocídios da história, cuidadosamente esquecido, relativizado e omitido na historiografia do Ocidente.
Majoritariamente ocupada por povos bantos e abrigando importantes reinos pré-coloniais, tais como o Reino Luba e o Império Lunda, a região do Congo foi explorada pelas nações europeias desde o início da Idade Moderna e convertendo-se na maior reserva de mão de obra escrava do continente africano.
Entre os séculos 16 e 19, os europeus escravizaram mais de quatro milhões de nativos da Bacia do Rio Congo e os enviaram para executar trabalhos forçados nas colônias americanas.
Com a decadência do tráfico de escravizados em meados do século 19, os europeus passaram a centrar os esforços na exploração dos recursos naturais do Congo, iniciando a usurpação territorial da região.
Domínio belga sobre o Congo
Visando expandir os domínios coloniais da Bélgica, o rei Leopoldo II fundou em 1876 a Associação Internacional Africana (embrião da Associação Internacional do Congo).
Apresentando-se como uma “organização filantrópica”, alegadamente interessada em “fomentar o desenvolvimento” do território africano e levar a “civilização, o cristianismo e o comércio” aos povos locais, a associação incumbiu o explorador galês Henry Morton Stanley de fundar entrepostos comerciais ao longo do Rio Congo.
Em nome da coroa belga, Stanley estabeleceu mais de 400 tratados diplomáticos e comerciais com os chefes locais, pavimentando o caminho para a colonização.
O domínio da Bélgica sobre o Congo foi referendado durante a Conferência de Berlim de 1884-1885, quando as potências europeias acordaram a Partilha da África.
Em 1885, Leopoldo II fundou o “Estado Livre do Congo” como um reino privado — uma propriedade particular da família real belga, formalmente constituída como uma empresa.
O gigantesco território, equivalente a 76 vezes o tamanho da Bélgica, é um dos mais ricos do mundo em recursos naturais.
O Congo detém reservas estimadas em 24 trilhões de dólares em ouro, diamante, cobalto, cobre e tantalita.
Além das pedras preciosas e minerais raros, os belgas também se interessavam pela extração do marfim e, sobretudo, pela produção de borracha.
Com florestas ricas em lianas, o Congo se converteria em um dos maiores produtores mundiais de látex.
A descoberta dos novos usos industriais da borracha na última década do século 19 havia feito o preço do polímero disparar no mercado internacional, gerando enormes lucros para a coroa belga.
A fim de maximizar os ganhos com a exploração da borracha e dos demais recursos naturais do Congo, o Rei Leopoldo II ordenou o confisco das terras dos nativos.
Foi criado um sistema de concessões, com a distribuição de terras para companhias privadas, autorizadas a administrar sua força de trabalho como bem quisessem, sem qualquer tipo de interferência ou regulação judicial.
O território do Congo foi dividido em distritos, governados por gestores imbuídos de poderes ditatoriais para manter a região sob absoluto controle.
Leopoldo II também instituiu o uso de mão de obra escrava e autorizou o assassinato dos nativos que se recusassem a realizar trabalho forçado.
Também criou a “Força Pública”, uma milícia composta por mercenários incumbidos de garantir o cumprimento das suas ordens em toda a colônia.
Os congoleses eram forçados a trabalhar até a morte na extração da borracha, nas plantações e minas de ouro e diamante.
Atrocidades contra congoleses
Açoitamentos, torturas, estupros, mutilações e assassinatos tornaram-se formas rotineiras de punir ou de pressionar os trabalhadores.
Os nativos também recebiam cotas de produção. Os que não conseguissem bater as metas de extração de látex, marfim ou pedras preciosas, por exemplo, tinham como castigo a amputação de uma das mãos.
Caso o escravizado fugisse para evitar a punição, quem tinha as mãos ou pés decepados era a esposa ou os seus filhos.
As mutilações eram incentivadas por um infame sistema de recompensas. Os mercenários da Força Pública que apresentassem mais membros decepados eram agraciados com bônus ou com a concessão de folgas extras.
Como meio de coagir os nativos a cumprirem as cotas, os colonizadores instituíram a prática de sequestrar as famílias dos trabalhadores e enviá-las para campos de concentração.
Os reféns eram submetidos a todo tipo de tortura e abuso até que as cotas fossem cumpridas. Caso os nativos não conseguissem cumprir a cota, a família era assassinada.
As crianças que se tornassem órfãs, por sua vez, eram encaminhadas para colônias infantis, onde recebiam treinamento para o trabalho ou para se tornarem soldados.
As taxas de letalidade das colônias eram extremamente elevadas — mais da metade das crianças morriam durante o treinamento.
Além das atrocidades levadas a cabo pelos colonizadores, os congoleses ainda sofriam com a fome e com as péssimas condições sanitárias.
Epidemias grassavam e milhões foram vitimados por doenças como varíola, gripe suína, disenteria amébica e a tripanossomíase africana (a doença do sono).
Estima-se que até 10 milhões de nativos morreram durante a gestão de Leopoldo II no Estado Livro do Congo — o equivalente a metade da população do país.
Repercussão internacional
No começo do século 20, as denúncias sobre as atrocidades cometidas no Congo se espalharam pelo mundo.
Relatórios e fotografias comprovando os abusos cometidos pelos colonos belgas foram difundidos por missionários, jornalistas e ativistas como Edmund Dene Morel e Roger Casement.
As denúncias chocaram a opinião pública e geraram um movimento exigindo o fim das atrocidades.
Na Bélgica, o líder socialista Emile Vandervelde, presidente da Segunda Internacional, articulou uma campanha política contra o domínio absoluto da coroa belga sobre o Congo.
Diante da crescente pressão interna e externa, o Parlamento belga decidiu intervir e afastou o rei Leopoldo II do controle direto da colônia em 1908.
A mudança, entretanto, não garantiu o fim das violações de direitos humanos. As estruturas de poder e boa parte das práticas estabelecidas durante o regime de Leopoldo II foram mantidas pelo governo belga.
Muitas das pessoas envolvidas nas atrocidades permaneceram em posições de poder.
Os deslocamentos forçados, a desapropriação de terras, repressão violenta aos trabalhadores e o rígido sistema de segregação racial permaneceram intocados até que o Congo conseguisse obter sua independência nos anos 60.
Em muitas regiões, o trabalho escravo, as punições cruéis e até mesmo as mutilações continuaram ocorrendo.
A família real belga se beneficiou enormemente do empreendimento macabro. O rei Leopoldo II obteve um lucro pessoal de aproximadamente um bilhão de dólares com a exploração do Congo.
Os recursos africanos foram utilizados na construção de projetos faraônicos na Bélgica, incluindo suntuosos edifícios da realeza, nomeadamente o Palácio de Tervuren.
O rei Leopoldo II recebeu tratamento de herói nacional na Bélgica. Seu corpo foi sepultado no interior da Igreja de Nossa Senhora de Laeken.
Uma estátua equestre foi erguida em sua honra na cidade de Bruxelas e diversos outros monumentos o homenageiam em todo o país — um deles, localizado na cidade de Arlon, traz uma inscrição o exaltando por seus esforços em “levar a civilização para o Congo.”