Um lobista de luxo: Dick Cheney e sua guerra por petróleo
Ex-vice-presidente dos EUA foi o mentor da política de 'guerra ao terror', que resultou na invasão ao Iraque em 2003
“Não me arrependo de nada”. Era assim que Dick Cheney respondia às perguntas sobre as decisões que tomou na Guerra do Iraque. O líder republicano faleceu nessa terça-feira, dia 4 de novembro de 2025, em decorrência de problemas cardíacos e pulmonares. Tinha 84 anos.
Expoente dos neoconservadores, Dick Cheney iniciou sua carreira parlamentar nos anos 70, combatendo os programas sociais e apoiando o regime do apartheid. Como secretário de Defesa de George Bush, o pai, ele ordenou os bombardeios ao Panamá e as ofensivas da Guerra do Golfo.
Cheney também foi vice-presidente no governo de George Bush, o filho, destacando-se como principal articulador da Guerra ao Terror. Foi Cheney quem pavimentou o caminho para a invasão ao Iraque, difundindo a mentira sobre as “armas de destruição em massa”.
A guerra deixou milhões de mortos e um rastro interminável de violações de direitos humanos, mas também gerou bilhões de dólares em lucro para as petrolíferas norte-americanas — em especial a Halliburton, onde Dick Cheney atuou como CEO.
Juventude e formação
Richard Bruce Cheney nasceu em 1941 em Lincoln, Nebraska, em uma família de classe média alta. Era filho de Richard Herbert Cheney, um funcionário público do Departamento de Agricultura, e de Marjorie Lorraine, uma celebridade do softbol dos anos 30.
Após concluir o ensino secundário, Cheney ingressou na Universidade de Yale, mas logo abandonou a instituição, alegando dificuldades para se adaptar ao ambiente acadêmico. Matriculou-se então na Universidade de Wyoming, onde obteve seu bacharelado e mestrado em Ciência Política.
Dick Cheney apoiou com fervor a participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Durante a graduação, ele se perfilou aos grupos conservadores que atacavam as mobilizações pacifistas e exigiam o envio de mais tropas.
Ao mesmo tempo em que apoiava a guerra, Cheney fez tudo que podia para não servir no conflito. Ele obteve cinco adiamentos consecutivos para o recrutamento militar, alegando uma série de problemas e a necessidade de concluir os estudos.
Após a graduação, Cheney se casou com Lynne Vincent, sua namorada do ensino médio, o que possibilitou adiar mais uma vez o alistamento, já que a legislação privilegiava o recrutamento de homens solteiros.
Atuação parlamentar
Cheney iniciou sua carreira política em 1969, como assistente do congressista republicano William Steiger, representante do Wisconsin. Depois, integrou a equipe de Donald Rumsfeld, então Diretor do Escritório de Oportunidades Econômicas no governo de Richard Nixon. Em 1975, durante a presidência de Gerald Ford, tornou-se a pessoa mais jovem a ser nomeada como Chefe de Gabinete da Casa Branca.
Em 1978, Dick Cheney foi eleito deputado pelo Wyoming, permanecendo nessa função por mais de dez anos. Como parlamentar, ele votou contra os projetos de afirmação dos direitos civis. Ele chegou a se opor inicialmente à criação do feriado em homenagem a Martin Luther King e manteve forte apoio ao regime do apartheid.
Cheney foi um dos maiores defensores do veto de Ronald Reagan ao projeto de lei que propunha sanções ao regime supremacista da África do Sul. Ele também votou contra uma resolução do Congresso norte-americano que pedia a libertação de Nelson Mandela da prisão. O parlamentar justificou sua postura afirmando que o Congresso Nacional Africano, o movimento político de Mandela que lutava contra o apartheid, era uma “organização terrorista”.
O republicano também fez forte oposição à expansão dos serviços públicos nos Estados Unidos, em consonância com a agenda neoliberal de Ronald Reagan. Cheney votou contra a criação do Departamento de Educação dos Estados Unidos, afirmando que a existência do órgão seria um atentado à liberdade dos estados. Ele também se opôs ao programa “Head Start”, que oferece serviços de educação, saúde e alimentação para crianças em situação de vulnerabilidade.

Dick Cheney discursa na Base Aérea de Balad, no Iraque, em 2008
Wikimedia Commons
Invasão ao Panamá e Guerra do Golfo
Dick Cheney foi nomeado como Secretário de Defesa em 1989, no primeiro ano do governo de George H. W. Bush. Sua gestão foi marcada pela reestruturação do aparato militar, buscando adaptar as Forças Armadas ao cenário de transformações políticas, marcado pela dissolução da União Soviética e pela transição dos antigos governos socialistas europeus para a economia de mercado.
O republicano defendeu a reformulação e o fortalecimento da OTAN e a integração gradual das nações do Leste Europeu, preparando o terreno para as futuras expansões da aliança militar nos anos seguintes. Ele também promoveu a redefinição dos conceitos estratégicos da OTAN, que passou a monitorar as “ameaças difusas”, como o terrorismo, a instabilidade política e os conflitos étnicos. Essa nova diretriz substituiria o discurso da “ameaça anticomunista” e serviria de base para as intervenções lançadas sob o pretexto da “Guerra ao Terror”.
Ainda em dezembro de 1989, Cheney conduziu sua primeira intervenção militar, enviando 27.000 soldados para invadir o Panamá na chamada “Operação Justa Causa”. O objetivo da operação era derrubar o ditador Manuel Noriega, um antigo aliado do governo norte-americano e colaborador da CIA no recrutamento de milícias anticomunistas. Noriega havia se tornado um incômodo para Washington após a exposição de seus laços com o narcotráfico, esquemas de lavagem de dinheiro e contrabando de armas.
Alegando a necessidade de “proteger os cidadãos norte-americanos”, os Estados Unidos começaram uma campanha de bombardeios contra alvos no Panamá. Os ataques se estenderam às áreas civis, em especial o bairro popular de El Chorrillo, que foi completamente devastado. Testemunhas relataram que os soldados norte-americanos cometeram centenas de execuções sumárias contra civis e dezenas de estupros, mas nenhuma investigação foi aberta. Cerca de 4.000 pessoas foram mortas durante a ofensiva.
A invasão foi amplamente condenada — sobretudo na América Latina, onde diversos governos e órgãos internacionais denunciaram a política intervencionista dos Estados Unidos. A Assembleia Geral da ONU e a Organização dos Estados Americanos (OEA) declararam que a operação era ilegal e violava o direito internacional.
No ano seguinte, Cheney comandou as tropas norte-americanas em mais uma ofensiva: a Guerra do Golfo. O conflito teve início após as tropas do Iraque invadirem o Kuwait, em função de uma longa série de desentendimentos sobre cotas de exportação de petróleo na OPEP.
Alegando que as ações de Saddam Hussein ameaçavam a paz e comprometiam o suprimento global de petróleo, Cheney lançou a “Operação Tempestade no Deserto” — uma violenta campanha de bombardeios e incursões terrestres que forçou o Iraque a recuar.
A Guerra do Golfo deixou mais de 40.000 mortos, mas os efeitos mais devastadores vieram depois do conflito. Os Estados Unidos impuseram sanções extremamente severas contra o país, incluindo um embargo econômico que provocou escassez de comida e remédios, matando mais de 500 mil crianças.
A Halliburton e o Novo Século Americano
Após o término do governo de George H. W. Bush, Dick Cheney seguiu como uma liderança política influente. Ele assumiu a direção do Conselho de Relações Exteriores e se tornou membro do American Enterprise Institute, um think tank conservador voltado à articulação dos interesses corporativos na arena política.
Cheney também assumiu importantes cargos no setor privado. Entre 1995 e 2000, ele atuou como CEO da Halliburton, uma das maiores companhias petrolíferas do mundo. Sua gestão na empresa foi bastante controversa, marcada por denúncias de manipulação contábil, fraudes no mercado de ações e, sobretudo, uso de informações privilegiadas e da influência no setor público para obter vantagens e contratos lucrativos.
Cheney chegou a ser diretamente implicado em um caso de corrupção na Nigéria, quando uma subsidiária da Halliburton admitiu o pagamento de propina para funcionários públicos em troca de isenções fiscais.
O papel de Cheney como articulador da confluência obscura entre interesses públicos e privados atingiria seu ápice a partir de 2001, quando o republicano retornou à Casa Branca na condição de vice-presidente de George Bush, o filho. Articulador hábil e incisivo, Cheney acumulou mais poder do que qualquer outro vice-presidente nos Estados Unidos, eclipsando o próprio Bush.
Cheney seria o arquiteto por trás de uma aliança que uniu os neoconservadores, o complexo militar-industrial e as empresas petrolíferas. Para viabilizar o projeto, ele montou um gabinete repleto de “falcões” — partidários da política externa agressiva e intervencionista, sempre engajados na busca por oportunidades de negócios para o setor bélico. Cheney trouxe Rumsfeld para a Defesa e colocou Paul Wolfowitz no Pentágono.
Ao menos dez membros da cúpula do governo Bush, incluindo Cheney, Rumsfeld e Wolfowitz, eram integrantes de um think tank neoconservador chamado “Projeto para o Novo Século Americano”. A organização buscava criar um plano para consolidar a influência geopolítica, econômica e militar dos Estados Unidos.
No ano 2000, o think tank chegou a divulgar um relatório onde afirmava que, para viabilizar “a construção da dominação vigorosa do amanhã”, seria necessário um catalisador, um “evento catastrófico como um novo Pearl Harbor”. A oportunidade veio menos de um ano depois, com os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, imediatamente atribuídos à Al-Qaeda.
A Guerra ao Terror
Ainda em outubro de 2001, os Estados Unidos invadiram o Afeganistão, alegando a necessidade de capturar Osama bin Laden. Enquanto as bombas despencavam sobre Cabul, Dick Cheney iniciava a articulação para levar a ofensiva ao Iraque. O país era dono da quinta maior reserva de petróleo do mundo — e toda essa fortuna estava nas mãos do Estado.
Para justificar a proposta de invasão ao Iraque, Cheney difundiu a narrativa de que o governo de Saddam Hussein estava fabricando armas de destruição em massa. Ele ordenou a fabricação de relatórios de inteligência para serem usados como evidências e liderou um programa secreto para neutralizar e marginalizar especialistas e autoridades públicas que contestassem suas alegações.
As armas de destruição em massa nunca foram encontradas, mas serviram de pretexto para justificar mais uma guerra. Em março de 2003, os Estados Unidos deram início à Operação Libertação do Iraque, com uma campanha de bombardeios que reduziu o país a escombros.
A Guerra do Iraque foi marcada por atrocidades e graves violações de direitos humanos, do uso de fósforo branco e estupro em massa de mulheres até o bombardeio deliberado de alvos civis. Mais de 1,2 milhão de pessoas morreram no conflito. E esse montante é apenas uma parte do saldo sanguinolento da “Guerra ao Terror” articulada por Dick Cheney.
Conforme um estudo da Brown University publicado em 2023, mais de 4,5 milhões de pessoas já morreram em função das intervenções norte-americanas no Oriente Médio e no Norte da África desde o 11 de setembro.
Cheney também foi responsável pela implementação das “técnicas aprimoradas de interrogatório” pelos órgãos de segurança dos Estados Unidos — um eufemismo para a institucionalização da tortura. Milhares de pessoas foram torturadas nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, submetidas a práticas como choques elétricos, espancamentos, privação do sono, abuso sexual e “waterboarding”. A Cruz Vermelha estima que mais de 90% dos iraquianos presos em Abu Ghraib eram inocentes.
Os ataques aos direitos e garantias constitucionais também ocorreram dentro dos Estados Unidos. Cheney impulsionou a vigilância em massa, ordenando a coleta de dados de milhões de norte-americanos. Aprovado em 2001, o “Patriot Act” deu ao governo norte-americano o direito de invadir casas, interceptar ligações telefônicas, e-mails e correspondências sem mandado e de deter suspeitos por tempo indeterminado sem acusação formal.
Os abusos cometidos por Cheney foram tão generalizados que ele se tornou o vice-presidente mais impopular da história: apenas 13% dos norte-americanos aprovavam sua gestão ao término de seu segundo mandato.
Dick Cheney, no entanto, nunca se arrependeu das decisões que tomou. “Eu faria tudo de novo” foi a frase que usou ao ter suas ações questionadas pelo Comitê de Inteligência do Senado em 2014.
As dezenas de milhões de dólares acumulados na forma de patrimônio pessoal talvez expliquem a resistência de Cheney à autocrítica. No setor petrolífero, certamente não há arrependidos. As reservas do Iraque finalmente foram privatizadas e agora geram lucros bilionários para as corporações do setor.
A Halliburton foi uma das maiores beneficiadas. A companhia recebeu mais de US$ 39 bilhões em contratos federais relacionados à Guerra do Iraque. Ao menos entre os acionistas da empresa, talvez haja quem sinta falta de Dick Cheney.























