Há 74 anos, em 26 de julho de 1950, o exército dos Estados Unidos iniciava o assassinato em massa de refugiados sul-coreanos durante o Massacre de No Gun Ri. Motivada pela suspeita de infiltração de soldados da Coreia do Norte, a matança foi uma das primeiras atrocidades cometidas pelos Estados Unidos durante a Guerra da Coreia, deixando mais de 400 mortos.
A Guerra da Coreia foi um dos mais violentos conflitos tributários da Guerra Fria, causando uma devastação sem precedentes na península coreana. A gênese do conflito remonta à divisão da Coreia após o fim da Segunda Guerra Mundial. Com a derrota do Japão, — nação que ocupava militarmente a Coreia desde o início do século XX — o território coreano foi dividido ao meio, ao longo do Paralelo 38.
Na Coreia do Norte, instaurou-se um governo socialista, aliado à União Soviética e dirigido pelo revolucionário Kim Il-Sung. Já na Coreia do Sul, criou-se um regime militar sob a tutela dos Estados Unidos, cujo comando foi posteriormente transferido para o ditador Syngman Rhee.
A divisão da Coreia em dois Estados transportou para a península a atmosfera de tensão geopolítica da Guerra Fria, com os dois governos — e as duas potências aos quais estavam vinculados — pressionando pela reunificação do território sob seus respectivos modelos de organização política e econômica.
O triunfo dos comunistas na Revolução Chinesa, em 1949, inflamou ainda mais as tensões regionais. Na Coreia do Sul, Syngman Rhee intensificou a repressão aos comunistas e opositores políticos, enviando centenas de milhares de pessoas para campos de concentração — os reformatórios das Ligas Bodo.
A situação era particularmente tensa na fronteira entre as Coreias, onde escaramuças, provocações e atritos vinham ocorrendo desde 1948. Esses incidentes foram tomando proporções cada vez maiores e os dois lados começaram a se preparar para um conflito que parecia cada vez mais inevitável.
Em 23 de junho de 1950, poucos dias após a visita de autoridades militares norte-americanas, soldados sul-coreanos realizaram um ataque com bombas e morteiros contra uma linha de defesa da Coreia do Norte em Ongjin. Outras hostilidades ocorreram em Kaesong e Ryonchon. Dois dias depois, em 25 de junho de 1950, o exército da Coreia do Norte iniciou uma incursão contra as forças militares da Coreia do Sul, dando início à guerra.
A invasão foi seguida pelo rápido avanço das tropas norte-coreanas, forçando o recuo dos soldados ao Sul. Alarmado com a possibilidade de unificação das duas Coreias sob um regime socialista, o governo dos Estados Unidos decidiu intervir diretamente no conflito. O presidente Harry Truman ordenou o envio de apoio militar para as forças sul-coreanas. A fim de revestir a intervenção com um aspecto de legitimidade e de respaldo da comunidade internacional, os Estados Unidos pressionaram o Conselho de Segurança da ONU a adotar a Resolução 83, que sugeria o envio de tropas militares para “repelir o ataque à Coreia do Sul” e “restaurar a segurança internacional” na região. A resolução foi aprovada em 27 de junho, em uma sessão onde a União Soviética estava ausente.
A resolução permitiu que Truman despachasse tropas militares sob a bandeira das Nações Unidas para atuar na guerra. As tropas da ONU congregavam soldados de 15 países, mas cerca de 90% do efetivo estrangeiro atuante na Coreia do Sul era proveniente dos Estados Unidos. O comando da força expedicionária norte-americana ficou a cargo do general Douglas MacArthur.
No início de julho, tropas internacionais, navios e aviões de guerra começaram a chegar à península. Em 5 de julho de 1950, as tropas norte-americanas travaram seu primeiro grande combate contra as forças da Coreia do Norte — a Batalha de Osan, vencida pelos norte-coreanos.
À medida em que os combates se tornavam mais intensos, o pânico e o caos se espalhavam entre a população civil, resultando em um êxodo massivo de refugiados. Somente nas primeiras semanas de julho, mais de 380 mil pessoas passaram pelas linhas de frente dos soldados norte-americanos, buscando fugir das zonas de conflito. A tolerância em relação aos refugiados, no entanto, seria reduzida a zero após alguns militares norte-americanos sofrerem ataques de retaguarda.
Os oficiais deduziram que soldados da Coreia do Norte estavam se infiltrando entre os refugiados. E para lidar com o problema, o comando militar dos Estados Unidos arrumou uma solução tétrica: ordenou aos soldados que matassem todos os refugiados que se aproximassem da linha de frente.
No dia 26 de julho de 1950, soldados do 7º Regimento de Cavalaria dos Estados Unidos interceptaram um grupo de centenas de refugiados nos arredores de No Gun Ri, uma cidade na província de Chungcheong do Norte. O grupo era composto por cerca de 600 pessoas, incluindo um grande número de crianças, mulheres e idosos. Os refugiados foram revistados e escoltados pelos soldados. Depois, receberam ordem para seguir caminhando pelo leito de uma ferrovia que se estendia rumo ao sul. Poucas horas depois, durante uma pausa para o descanso, os refugiados foram atacados por aviões militares norte-americanos, que sobrevoaram a ferrovia jogando bombas e disparando tiros de metralhadora.
Os aviões retornaram repetidas vezes para atacar os civis. Apavoradas, as pessoas tentaram fugir do leito ferroviário, mas foram cercadas e alvejadas por tropas terrestres. Um grupo de refugiados conseguiu se abrigar sob o vão duplo de uma ponte ferroviária, onde seguiram sob fogo pesado por várias horas. Para tentar bloquear os disparos, os civis improvisaram uma barricada, empilhando os cadáveres na entrada do vão.
Os civis permaneceram encurralados na ponte por três dias. Para sobreviver, tiveram de beber a água de um pequeno riacho que passava sob a ponte, já misturada ao sangue dos mortos. Sempre que um refugiado tentava deixar a ponte, os soldados disparavam. A matança somente foi interrompida no dia 29 de julho, graças ao avanço das tropas da Coreia do Norte, que forçaram os norte-americanos ao recuo. Ao término do massacre, havia pouco mais de 20 sobreviventes — a maioria crianças. Eles foram socorridos pelos soldados norte-coreanos e levados de volta às suas aldeias.
Estima-se que mais de 400 refugiados foram assassinados durante o Massacre de No Gun Ri. Outras dezenas de pessoas ficaram feridas durante a ação. A matança foi relatada por jornalistas da Coreia do Norte ainda em agosto de 1950, mas a notícia foi completamente ignorada pela imprensa ocidental. Os governos dos Estados Unidos e da Coreia do Sul atuaram para abafar a chacina e os sobreviventes, vivendo sob um regime ditatorial subserviente à Casa Branca, tinham medo de sofrer retaliações caso denunciassem o ocorrido.
As primeiras denúncias dos sobreviventes do massacre somente foram feitas em 1960, durante a efêmera abertura política propiciada pela Revolução de Abril, que derrubou o governo de Syngman Rhee. Ao longo das décadas seguintes, mais de 30 petições solicitando a investigação do massacre foram apresentadas aos governos da Coreia do Sul e dos Estados Unidos, mas todas foram sumariamente rejeitadas.
Em 1994, o ex-policial Chung Eun-Yong publicou o livro “Você Conhece a Nossa Dor?”, em que trata sobre a matança que ceifou a vida de sua esposa e de seus dois filhos. O livro difundiu o conhecimento sobre o Massacre de No Gun Ri, que ainda era largamente ignorado na Coreia do Sul, e ajudou a fomentar a pressão por investigações.
Em 1998, o Conselho Nacional de Igrejas da Coreia do Sul requisitou ao Pentágono uma investigação sobre o massacre. O exército dos Estados Unidos respondeu ao pedido afirmando que havia realizado uma investigação nos registros operacionais do 7º Regimento de Cavalaria, mas que não havia encontrado nenhuma evidência sobre a matança. A afirmação era falsa. Ao pesquisar esses mesmos registros operacionais, um grupo de jornalistas da Associated Press (AP) encontrou documentos em que oficiais norte-americanos ordenavam o assassinato dos civis.
Foram descobertas ordens dos generais Hobart Gay e William Kean instruindo os combatentes norte-americanos a considerarem todos os sul-coreanos dentro da zona de guerra como “agentes inimigos” e “neutralizá-los”. Um outro registro do 8º Exército ordenava uso de força letal contra os civis.
Em setembro de 1999, a AP publicou um relatório com documentos, memorandos e registros de gravações que comprovavam a veracidade do massacre, acrescidos de testemunhos de sobreviventes e até mesmo da confissão de Norman Tinkler, um dos soldados que atuaram na chacina. No ano seguinte, a CBS News divulgou um outro memorando da Força Aérea dos Estados Unidos, confirmando a existência de uma ordem para metralhar colunas de refugiados.
Foi somente após a divulgação dessas informações pela grande imprensa que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos e o governo da Coreia do Sul determinaram a abertura de investigações. No relatório oficial publicado em 2001, o exército norte-americano admitiu que o massacre existiu, mas tentou justificar as mortes afirmando que houve um “tiroteio” com os refugiados — alegação desmentida tanto pela investigação da AP quanto pelo relatório sul-coreano. O relatório norte-americano também estava repleto de omissões e distorções, ignorando os principais documentos trazendo instruções explícitas para a condução da matança — incluindo um memorando escrito em julho de 1950 por John Muccio, embaixador dos Estados Unidos na Coreia do Sul, informando ao governo norte-americano sobre a decisão do comando militar de assassinar deliberadamente os refugiados que se aproximassem das linhas de frente.
A despeito da gravidade das revelações, o presidente norte-americano Bill Clinton se recusou a pedir desculpas pelo massacre. O governo norte-americano também rejeitou o pedido para indenizar as vítimas da matança e seus descendentes. Os sobreviventes sul-coreanos requisitaram a abertura de uma ação no Tribunal Internacional de Justiça em Haia, mas o governo da Coreia do Sul recusou o pedido.
A partir de 2009, a Comissão da Verdade e Reconciliação da Coreia do Sul iniciou mais uma investigação sobre o caso, baseada na análise de documentos que perderam a classificação de confidencialidade. A investigação comprovou a existência de uma série de ataques indiscriminados realizados pelos militares norte-americanos contra refugiados sul-coreanos — incluindo o bombardeio intencional de um campo de refugiados no litoral por um navio de guerra e o ataque com napalm a um esconderijo de civis situado dentro de uma caverna.
Duas valas comuns contendo restos mortais dos refugiados já foram descobertas. As ossadas foram transportadas para um cemitério-memorial em homenagem às vítimas do Massacre de No Gun Ri, inaugurado em 2009. Nesse mesmo ano, a chacina foi tema do filme “Um pequeno lago”, dirigido por Yi Sang-Woo. Apesar dos reiterados apelos, nenhuma ação de compensação ou pedido formal de desculpas foi oferecido pelo governo norte-americano até o presente momento.