Vala de Perus: o cemitério clandestino onde a ditadura escondeu seus mortos
Pesquisa comprovou que parte das ossadas eram de presos políticos, porém o trabalho de identificação foi permeado por sucessivas interrupções
O Cemitério Dom Bosco, localizado em Perus, na Zona Norte de São Paulo, sediou uma importante cerimônia no último dia 24 de março. Representando o governo federal, a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, formalizou um pedido de desculpas a familiares de desaparecidos políticos vitimados pela ditadura militar (1964-1985).
O pedido de desculpas se referia à negligência do Estado brasileiro na identificação de ossadas encontradas no local. Em 1990, uma vala clandestina contendo os restos mortais de mais de mil pessoas foi descoberta no cemitério de Perus.
A pesquisa posterior comprovou que parte das ossadas eram de presos políticos que foram assassinados pelos órgãos de repressão do regime. O trabalho de identificação, entretanto, ocorre de forma extremamente lenta, permeado por sucessivas interrupções. Quase 35 anos após a descoberta da vala, apenas cinco ossadas foram identificadas.
Os mortos da ditadura
Instaurada após o golpe que derrubou João Goulart em 1º de abril de 1964, a ditadura militar brasileira foi marcada pela repressão sistemática contra os opositores do regime. Os militares promulgaram uma série de leis e medidas que suspenderam os direitos civis e as garantias constitucionais e fortaleceram o aparato repressivo. Órgãos diretamente subordinados aos militares como o DOI-CODI e o DOPS prenderam, torturaram e assassinaram milhares de pessoas.
Um estudo produzido pela Human Rights Watch estima que mais de 20 mil pessoas foram torturadas pela ditadura. Já o número de pessoas que foram assassinadas pelos militares é uma incógnita. Oficialmente, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) reconhece que 434 pessoas foram mortas pelo regime. O número real de vítimas, entretanto, é muito maior.
Isso ocorre porque a relação de mortos e desaparecidos da CNV foi produzida com base nas definições estabelecidas pela Lei sobre Mortos e Desaparecidos Políticos sancionada, em 1995. Negociada com os militares, essa lei estabeleceu critérios restritivos para o reconhecimento das vítimas do regime, exigindo a comprovação de que as mortes estivessem diretamente ligadas a atos de resistência política.
Em outras palavras, a contagem de vítimas da CNV engloba quase que exclusivamente militantes políticos. Cidadãos comuns, trabalhadores, camponeses, indígenas, pessoas em situação de rua, trabalhadoras do sexo e tantas outras categorias que foram reprimidas pelo regime são ignoradas por essa metodologia.
A própria CNV reconheceu que ao menos 8.350 indígenas foram mortos em decorrência de massacres, remoções forçadas e outras ações do regime militar — mas eles não entram na contabilização oficial de vítimas. Em uma entrevista concedida à Agência Pública em outubro de 2024, a presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Eugênia Augusta Gonzaga, afirmou que o número efetivo de mortos e desaparecidos da ditadura militar “passa facilmente dos 10 mil”.
A Vala de Perus
Um dos métodos utilizados pelos militares para esconder os mortos da ditadura foi a criação de valas clandestinas, onde os corpos eram enterrados sem identificação ou registro oficial.
Em São Paulo, havia rumores de que o Cemitério Dom Bosco (ou Cemitério de Perus), inaugurado por Paulo Maluf em 1971 para o sepultamento de indigentes, tivesse servido como depósito secreto dos cadáveres das vítimas do regime. Apesar disso, as condições políticas — e a ditadura ainda em vigor — impediam que fossem realizadas investigações.
Os rumores foram confirmados em 1990, graças a uma investigação conduzida pelo jornalista Caco Barcelos, então empenhado na produção do livro Rota 66: A História da Polícia que Mata. Ao analisar os laudos periciais produzidos pelo IML de São Paulo na década de 1970, Caco notou a presença da letra “T” escrita em lápis em alguns documentos.
Questionando os funcionários do IML a respeito, o jornalista descobriu que a marcação significava “terrorista”, termo usado pela ditadura para rotular seus opositores. Caco passou então a rastrear o destino que esses corpos tiveram — o que o levou ao Cemitério Dom Bosco.
As suspeitas de Caco aumentaram após conversar com Antônio Pires Eustáquio, o administrador da necrópole. Antônio confirmou que existiam evidências de que nem todos os sepultados no local eram indigentes. Durante obras no cemitério, Antônio já havia se deparado com arcadas dentárias com incrustações em ouro e platina — que dificilmente pertenceriam a pessoas vivendo em situação de pobreza extrema.
Com base nessas informações, a prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, determinou que os funcionários do município escavassem o local. Em 4 de setembro de 1990, a gigantesca vala foi encontrada. Era um buraco com 30 metros de extensão, 50 centímetros de largura e 2,70 metros de profundidade. Em seu interior, estavam sacos plásticos contendo 1.049 ossadas humanas.

Ossadas escavadas no Cemitério de Perus
Identificação das ossadas
Erundina determinou então a instalação da Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus. Os restos mortais foram transferidos provisoriamente para a sede do Ministério Público Federal (MPF) e posteriormente encaminhados para análises conduzidas pelos pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Das 435 ossadas analisadas pela Unifesp, concluiu-se que 80% eram de pessoas do sexo masculino, 15% do sexo feminino e 5% de crianças. Boa parte das ossadas possuíam traumas derivados de tortura, violência e sinais de execução sumária, incluindo perfurações a bala.
As pesquisas indicam que ao menos 42 das pessoas sepultadas na vala são presos políticos e desaparecidos que foram torturados e mortos nos porões e centros de repressão da ditadura (DOPS, DOI-CODI, OBAN) — estudantes, militantes de esquerda, sindicalistas, integrantes da luta armada, etc.
Cinco ossadas de opositores do regime foram identificadas: os irmãos Dênis Casemiro (militante da Vanguarda Popular Revolucionária) e Dimas Antônio Casemiro (membro do Movimento Revolucionário Tiradentes), Frederico Eduardo Mayr (do Movimento de Libertação Popular), Flávio de Carvalho Molina (da Ação Libertadora Nacional) e Aluísio Palhano Pedreira Ferreira (da Vanguarda Popular Revolucionária).
A maior parte das ossadas, entretanto, são de vítimas não registradas da ditadura: pessoas pobres, moradores de rua, camponeses, indígenas, minorias perseguidas, pessoas executadas por agentes da repressão e por esquadrões da morte por serem consideradas “indesejáveis”. Acredita-se também que parte dos sepultados sejam vítimas da epidemia de meningite dos anos 70, que a ditadura tentou abafar.
As reações à descoberta da vala
Após a remoção das ossadas, a gestão Erundina mandou instalar junto à vala clandestina um monumento projetado por Ruy Ohtake — um painel onde se lê: “aqui os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do Estado policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos”.
Um segundo monumento às vítimas da repressão da ditadura foi erguido pela prefeitura de São Paulo no Cemitério de Vila Formosa.
O trabalho de identificação das ossadas prosseguiu por quase 10 anos e incentivou a instalação de novos grupos de pesquisa em outros locais do Brasil, causando incômodo entre os militares, policiais e setores reacionários, alarmados com a possibilidade de responsabilização pelos crimes cometidos.
Jair Bolsonaro, então deputado federal, chegou a lançar uma campanha pedindo a suspensão dos trabalhos de pesquisa das ossadas da Guerrilha do Araguaia, sob o mote “quem procura osso é cachorro”.
No ano 2000, ao fim do mandato do prefeito Celso Pitta, herdeiro político de Paulo Maluf, a identificação das ossadas e as pesquisas no cemitério de Perus foram interrompidas. Os trabalhos somente foram retomados em setembro de 2014, na prefeitura de Fernando Haddad, em parceria com a Comissão Estadual da Verdade e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e apoio dos peritos da Unifesp.
Pesquisas com radares revelaram que há a possibilidade de existir uma segunda vala clandestina no Cemitério de Perus, onde mais corpos estariam enterrados. As últimas gestões na prefeitura de São Paulo, entretanto, não se interessaram em retomar os trabalhos.
Em abril de 2019, o então presidente Jair Bolsonaro baixou decreto extinguindo os grupos de trabalho de Perus e do Araguaia, encerrando oficialmente as buscas por novas ossadas e o esforço de identificação dos restos mortais já localizados. Bolsonaro também extinguiu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, responsável por investigar, identificar e localizar as vítimas do regime.
Em julho de 2024, um ano e maio após seu retorno à Presidência da República, o presidente Lula recriou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. No mesmo ano, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania assinou acordo de cooperação técnica com a Unifesp para a retomada dos trabalhos de investigação.
