O trabalho de pesquisa da artista plástica e galerista argentina Daniela Luna tornou-se metalinguístico quase sem querer. Entre março e dezembro de 2011, ela esteve em Pequim, capital da China, investigando como a obra de jovens artistas é influenciada pela censura do Partido Comunista, que governa o país sob a figura do presidente Hu Jintao. Ao investigar o assunto, a galerista viu-se tolhida, indiretamente, por seu objeto de estudo. A censura que limita o trabalho dos artistas também impõe dificuldades a Daniela e lhe exige cautela ao penetrar os bastidores da produção cultural daquele país. “É muito mais complicado do que eu pensei que fosse ser. Se tiver algum problema com a censura na China, corro o risco de não poder voltar lá. Então tenho que fazer tudo com muita calma”, ela diz, sem revelar, por motivos óbvios, as articulações feitas para sair de Buenos Aires e ir mexer num vespeiro no extremo leste do mundo.
Autumn Sonnichsen
Daniela Luna é a criadora da galeria de arte contemporânea Apettite instalada em 2005 na capital argentina, e que agora tem sua base principal em Pequim. Uma das responsáveis por transformar o bairro de San Telmo em referência para a arte contemporânea em Buenos Aires, a Appetite atraiu e repeliu atenções no mundo das artes por conta de uma constante disposição de empurrar para mais longe da curva da normalidade os limites estéticos e conceituais das obras.
A galerista, ela própria a alma da Appetite, com um estilo underground e provocativo – especialmente sobre temas relacionados ao sexo –, não raro tem problemas com a censura em países onde é convidada. Natural, portanto, que o tema lhe interesse mais como um campo de pesquisa a ser vasculhado do que um campo minado do qual tenha que desviar. “Estive em Pequim de março a dezembro de 2011. Sabia que lá havia muita censura para falar sobre sexualidade e contra o governo. Comecei a pesquisar um pouco para saber como vivem e trabalham os artistas dentro desse formato, já que uma das coisas mais interessantes da arte é poder dizer tudo o que se pensa”, ela conta. Naquela primeira parte de sua pesquisa, Daniela entrevistou e trabalhou com artistas chineses como Shu Yong, Wang Quinsong e Zhou-Yilun-pooh, e estrangeiros, como a japonesa Megumi Shimizu.
O medo bem construído
O cerceamento ao trabalho de pesquisa da artista não foi direto e nem explícito. O controle do governo chinês sobre os cidadãos, para além da restrição ao uso da internet, por exemplo, está mesmo é arraigado na alma das pessoas. O simples fato de os chineses se recusarem a falar sobre a censura é a prova de que é bem sucedido o trabalho constante e incisivo do Estado para oprimir – inclusive com prisões – aqueles que lhe manifestam alguma oposição ou tentam “contrabandear” a cultura ocidental para as terras do partido. “Uma coisa que vários chineses me disseram é que, mesmo em uma conversa de bar, as pessoas nunca podem dizer sua opinião porque não sabem quem as está escutando, quem está passando ao lado ou está na mesma mesa. Há muitas pessoas que pertencem ao partido, ou que são da polícia, e falar algo pode trazer graves consequências”, relata Daniela.
A galerista fez uma experiência em uma rede social chinesa chamada Beijing Stuff (www.bjstuff.com). Lá, Daniela criou um perfil e postou um comentário dizendo que buscava pessoas que fizessem sexo com ela para um vídeo de arte. O cerceamento veio dos próprios usuários da rede. “As pessoas me diziam que, como estrangeira, poderiam me expulsar da China e eu não voltaria a entrar”, relembra.
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O artista e ativista chinês Ai Weiwei, de 54 anos, um dos maiores expoentes da arte contemporânea naquele país e um dos principais críticos do partido comunista, é um dos alvos prediletos da censura do Estado e um bom exemplo (passivo) de como este último age. Weiwei já teve seu estúdio demolido pelo governo, suas obras confiscadas, ficou preso em regime domiciliar em 2010 e, em 2011, foi detido pela polícia sem ordem judicial e levado a um lugar secreto onde permaneceu por três meses sem que ninguém tivesse notícias suas. A pressão popular internacional em defesa de Weiwei e a exposição midiática da perseguição que sofre foi o que lhe tirou da prisão e, de alguma forma, é o que o livra de sofrer ainda mais represálias.
Florescer da arte contemporânea
Contraditoriamente – ou talvez por isso mesmo –, a censura do partido faz florescer a arte contemporânea na China, especialmente em Pequim, capital cultural do país. Há uma profusão de galerias de arte e espaços de criação, como a vila de Caochangdi (onde Daniela Luna tem hoje sua Appetite) e a 798 Art Zone. “Ai Weiwei foi o arquiteto de quase toda a zona de Caochangdi e também tem sua casa lá. Songzhuang é uma zona afastada onde vivem mais de 2000 artistas. Há também a 22nd Art Zone, onde está o Today Art Museun, que é excelente, e alguns outros espaços. Esses lugares são bastante ativos, há muitos opennings; em geral, eles se organizam para inaugurarem juntos em cada zona, e nesses dias os esses lugares ficam cheios de gente”, informa Daniela.
Efe
O artista plástico Ai Wei Wei, que projetou o famoso Ninho de Pássaro, é um dos principais contestadores do regime chinês
Dois temas sobressaem e unificam o discurso dos artistas. O primeiro deles é a política, que pode vir criticada tacitamente, com o recurso da ironia contrapondo comunismo ao capitalismo e consumismo, ou enaltecida, por meio da propaganda. Acima de tudo, o importante é que não se fale mal do governo e de suas políticas. O segundo tema é a fascinação dos chineses pelo luxo e pelas coisas do ocidente que o partido tenta esconder e combater. “Há muitas coisas relacionadas com certas marcas que mais os agradam. Louis Vuitton, por exemplo, é a marca que mais querem ter e a que mais copiam. A forma deles de comprar arte também é muito diferente. Não são como os colecionadores do ocidente que entendem muito de arte e compram porque gostam, porque se interessam por arte e o investimento é só uma parte do jogo. Na China, colecionar arte contemporânea não se dá, na maioria das vezes, por gosto, mas mais como uma forma de o comprador mostrar o dinheiro que possui. Compra-se arte contemporânea como mais um objeto de luxo”, explica.
Morde e assopra
O governo chinês, diz Daniela, é um dos maiores financiadores da arte e dos artistas no país, inclusive das galerias e espaços de arte. Por isso mesmo nem faz falta um censor formal, um agente do Estado que chancele ou proíba uma obra antes que ela vá a público. “Ninguém corre o risco de fazer algo que sabe que não pode fazer”, conta a artista. E esta parece ser a tacada de mestre do Estado no que se refere ao controle da produção cultural: ao promover a arte, o partido comunista chinês consegue censurá-la pela raiz.