O Chile vai às urnas neste domingo (25/10) para a que deve ser a primeira das três votações que podem colocar fim ao último e poderoso resquício da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). O plebiscito constitucional realizado no país permitirá aos cidadãos decidirem se aprovam ou rechaçam a ideia de fazer uma nova carta magna para o país, e qual formato essa nova constituinte deve adotar.
A atual é a décima constituição da história do Chile e a terceira mais longeva. Foi imposta em 1980 pelo ditador Augusto Pinochet – portanto, completou 40 anos de vigência neste 2020.
Ao final do regime, em 1990, houve um processo de transição no país que não incluiu uma nova constituinte, mas sim uma série de reformas à constituição atual. Outra reforma constitucional aconteceu na primeira metade da década de 2000, durante o governo de Ricardo Lagos (2000-2006). Contudo, nenhuma delas alterou os alicerces do modelo de sociedade construído pelos Chicago Boys – grupo de economistas formado na Universidade de Chicago que liderou a economia nos anos Pinochet –, que fazem do Chile berço e símbolo do neoliberalismo até hoje.
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Revolta social
Esse neoliberalismo raiz foi o principal alvo de indignação da revolta social iniciada em outubro de 2019. Depois de um mês de manifestações diárias em todo o país, algumas com mais de 2 milhões de pessoas nas ruas, vários dias de toque de exército nas ruas com toque de recolher incluído e o presidente Sebastián Piñera escondido no Palácio de La Moneda, surgiu a primeira mudança concreta: uma reunião de emergência no Congresso levou os presidentes de quase todos os partidos a realizarem o que chamaram de “Acordo de Paz”, cujo principal aspecto foi a aceitação de todos em realizar um plebiscito constitucional, que é este que está acontecendo neste domingo.
Mas ainda há pontos que causam polêmica. Ainda na época da costura do acordo, em 2019, para definir a realização do plebiscito, o Partido Comunista do Chile (PCCh) alertou para uma questão importante: os partidos que participaram do acordo (o PCCh não está entre eles) definiram que as normas que comporão o novo texto precisam ser aprovadas por 2/3 dos membros da constituinte. Ou seja, se a direita conseguir compor mais de 1/3 da assembleia, pode vetar várias partes da redação.
“Nós seguimos mantendo um ponto de diferença, e é que nos parece que o quorum de dois terços que se acordou para que sejam aprovadas as matérias que se vão discutir e que vão fazer parte da nova Constituição é muito alto. Quer dizer, isso torna muito difícil que se possa passar por cima de algumas questões que estão na atual Constituição. Este é um tema que precisará se resolver de alguma maneira”, afirmou à Rádio Novo Mundo, em novembro de 2019, Guillermo Teillier, presidente do PCCh.
Inicialmente, o plebiscito deveria acontecer no dia 26 de abril, mas a pandemia do novo coronavírus – que teve seus primeiros casos no Chile na primeira semana de março – obrigaram um adiamento por 6 meses.
O que acontece neste domingo
Neste domingo, as cerca de 13 milhões de pessoas com direito a voto poderão comparecer às urnas para escolher o destino do país – ou não, já que o voto no Chile é facultativo. As que decidirem votar receberão duas cédulas, cada uma com uma pergunta diferente.
A primeira cédula terá a seguinte pergunta: “Você quer uma nova Constituição?”. As opções de resposta são “Aprovo” (que significa estar de acordo com que se inicie um novo processo constitucional) e “Rechaço” (que significa manter vigente a atual constituição).
A segunda cédula terá a seguinte pergunta: “Que tipo de órgão deveria elaborar a Nova Constituição?”. Neste caso, as alternativas são “Convenção Constitucional” (onde 100% dos integrantes devem ser pessoas sem cargo público eletivo vigente) e “Convenção Mista” (onde 50% dos integrantes também devem ser pessoas sem cargo público eletivo vigente, enquanto os outros 50%, 77 ou 78 membros, seriam deputados e senadores com mandato vigente atualmente).
No caso da primeira pergunta, se ganha a opção “Rechaço”, a Constituição atual continua vigente e até a segunda pergunta do plebiscito se tornaria inútil. Porém, se a opção “Aprovo” vencer, o governo chileno ficaria obrigado a oficializar, já na semana seguinte, a instalação de um processo constituinte no país, para realizar a 11ª carta magna do Chile.
Vale recordar que, mesmo antes da Constituição de 1980, todas as constituições chilenas foram escritas pelos chamados “grupos de notáveis”. O Chile nunca teve uma assembleia constituinte e jamais uma mulher participou da elaboração das leis fundamentais do país.
A vitória do “Aprovo” também faria com que o resultado da segunda pergunta ganhe relevância, já que também obrigaria o processo constituinte a adotar o formato escolhido pela maioria.
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Chilenos vão às urnas neste domingo para decidir se querem uma nova Constituição
Segundo os detalhes do “Acordo de Paz” de 2019, a assembleia que realizará a próxima Constituição teria que ser conformada por 155 membros – quantidade que ainda poderia estar sujeita a mudanças, segundo alguns juristas.
É importante destacar que haveria uma regra de gênero para a formação da Assembleia Constituinte. Isso porque, em março, o Congresso do Chile aprovou uma lei que obriga a assembleia a ter metade de participação masculina e metade feminina: ou seja, 77 ou 78 dos 155 integrantes terá que ser de mulheres.
Assim, o Chile passaria de ser um país onde jamais uma mulher participou de um processo constituinte a ser o primeiro da história a ter uma constituição elaborada em igualdade de gênero.
Porém, isso ainda não está garantido. Isso porque a Convenção Mista não permitiria uma igualdade entre homens e mulheres, já que não há mulheres suficientes no parlamento chileno para gerar essa igualdade – a não ser que se estabeleça que todos os representantes com mandato vigente sejam homens, que são maioria abundante em ambas as câmaras do Congresso, e todas as representantes sem mandato vigente sejam mulheres.
O que acontece depois
Caso vença o “Rechaço”, nada acontece. No caso de vitória do “Aprovo”, e uma vez oficializado o início do processo constituinte, os partidos e organizações sociais passam a trabalhar nas campanhas visando o dia 11 de abril.
Neste dia, serão escolhidos os representantes da assembleia que vai elaborar a nova Constituição. Em um princípio, as candidaturas poderiam ser postuladas entre dezembro e fevereiro, mas essas regras específicas ainda estão sujeitas a mudanças – e, na verdade, a própria data de votação dos representantes, assim como aconteceu com este plebiscito, está à mercê de como evolua a situação da pandemia de coronavírus no país.
Seja como for, uma vez eleitos, esses 155 assembleístas terão um prazo máximo de 9 meses – a contar de maio de 2021, embora esta data esteja sujeita a mudanças – para elaborar a nova carta magna.
A questão é que 2021 também é ano de eleições gerais no Chile. O país escolherá o sucessor de Sebastián Piñera, e também renovará metade do Senado e a totalidade da Câmara de Deputados.
Isso quer dizer que os candidatos à presidência do país terão o cenário pitoresco de fazer campanha sem saber ainda quais serão as regras vigentes no país depois que um deles for eleito.
No caso de a opção “Convenção Mista” vencer o plebiscito deste domingo, haverá outras duas situações complicadas. Uma delas é que os congressistas que forem eleitos para a assembleia não perderão suas responsabilidades no Congresso, e terão que se dividir entre a assembleia e as votações regulares no Senado e na Câmara.
A outra complicação é que, no segundo semestre, muitos deles terão que revalidar seus mandatos. Portanto, também estarão em campanha, além de participarem da assembleia e das votações regulares no Congresso.
Finalmente, depois de tudo isso, no primeiro semestre de 2022, quase coincidindo com a posse do novo presidente, a nova constituição deverá ser entregue. Mas, para entrar em vigor, ainda precisaria ser aprovada em um novo plebiscito, cuja data ainda não foi especificada.
Tampouco há uma definição sobre o que aconteceria se essa nova Constituição for rejeitada no segundo plebiscito, se haveria uma nova constituinte ou se a atual Constituição pinochetista renasceria das cinzas. Segundo a maioria dos juristas, essa decisão caberia à pessoa que substituirá Piñera na presidência, a partir de 2022.