Esta é a terceira parte de ‘Os injustiçados, os arrependidos e os resistentes: quando o passado é carregado de opróbrio‘ de Maria Cláudia Badan Ribeiro. O texto está dividido em três:
Quando o passado é carregado de opróbrio (parte 1)
Novamente a criminalização (parte 2)
Gostaria de apontar algumas ressalvas e correções no livro Os Injustiçados. Quero também chamar atenção para o uso neste livro de fontes secundárias, evitando deliberadamente mencionar o livro de Carlos Eugênio Paz, em passagens em que só ele seria capaz de revelar.
Não fica claro no texto de Lucas Ferraz em que ano a guerrilha chegou ao seu fim ou a “sua fase terminal”. Em 1970, 1971 ou 1973? No texto está dito que a decomposição final da Ação Libertadora Nacional (ALN) ocorreu no ano de 1970, após a morte de Marcio Leite Toledo. Ou o “começo do fim” ocorreu após a captura do embaixador norte-americano?
A organização de fato não teve um fim formalizado, sendo dizimada pela repressão. Seus últimos militantes, os que conseguiram deixar o país, chegaram a Lisboa em janeiro de 1974. A morte de Carlos Marighella levou de roldão cerca de mil militantes da organização, a morte de Toledo destruiu parte do Comando Nacional, mas a ALN continuou atuante até julho de 1973. É preciso levar em conta que essas pessoas continuaram a atuar no momento mais agudo da repressão.
O núcleo da geologia da Universidade de São Paulo (USP), sob a batuta de Alexandre Vannucchi Leme e outros, continuou muito ativo na ALN (o professor Kenneth Serbin fez uma pesquisa interessante sobre a figura de Vannucchi Leme).
A ALN continuou atuando no território nacional mesmo depois da morte de seus principais dirigentes. Com toda sorte de dificuldades, a organização ainda recrutava quadros em 1972, em Goiás e Brasília; foi parceira do PCdoB na Guerrilha do Araguaia e seus militantes permaneceram em trânsito pela América Latina e Europa na realização de variadas tarefas.
Houve uma rede proposta desde Havana no ano de 1967 por Che Guevara, em reunião secreta, que passou a atuar no Cone Sul até a ditadura argentina, realizando salvamento, embarcamento e financiamento da guerrilha. A ALN continuou atuante por mais três anos. Num contexto cada vez mais desfavorável, a organização permaneceu por quase um ano sem “quedas”, e com um número de ações bem superior aos seus anos iniciais (me refiro ao período de julho de 1970 a setembro de 1971).
Em 1971 foi realizada a ação contra Henning Albert Boilesen, e a ALN passou a adotar formas inovadoras de ação, como levar a cabo expropriações de frigoríficos e distribuir alimentos e gás nas favelas da cidade de São Paulo (ação, por exemplo, como na Vila Palmares, realizada em 17 de maio de 1971 e que levou à distribuição de produtos do Frigorífico Swift). É necessário, pois, considerar três anos adicionais de atuação naquele período, em que a polícia atirava à queima roupa em ponto de ônibus (como no caso do assassinato de Ronaldo Mouth Queiroz, executado na Avenida Angélica e delatado pelo médico João Henrique Ferreira de Carvalho, conhecido como “Jota”, que atuou como agente infiltrado desde 1972).
E houve também a Campanha do Voto Nulo em 1970, que encontrou amplo apelo popular. Durante a captura de embaixadores para a troca de prisioneiros, se exigia, por exemplo, catraca livre nos trens da Central do Brasil. E quanto não se lutou junto ao movimento contra a carestia de vida, lançado pelas mulheres da Liga Feminina da Guanabara, que depois deixariam o Partido Comunista (PCB) e ingressariam na ALN. Ou seja, a ALN se envolveu com outras lutas sociais. Ela teve seu núcleo armado, mas também teve inserção em outros setores da vida social.
Inseriu-se na luta pela terra indígena junto aos índios Tapirapé contra a empresa Codeara, colaborou com trabalho social junto às catadoras de babaçu no Pará, inseriu-se nas cooperativas de leite e peixe da igreja progressista de São Félix do Araguaia, esteve envolvida em muitos movimentos de bairro e de desfavelamento.
Ferraz afirma: “os quadros que continuavam nos grupos armados, cada vez menores, eram jovens e despreparados que insistiram em levar adiante uma estratégia de enfrentamento irrealista, ‘suicídio revolucionário'”.
Jovens despreparados? Não consigo imaginar “Crioulo” (Luiz José da Cunha), Hélcio Pereira Fortes ou Paulo Tarso Celestino como jovens despreparados. O Comandante “Crioulo” participou do Comitê Secundarista da Guanabara e antes do golpe de 1964 já havia participado, em Moscou, de um curso de política e teoria marxista. Era um quadro politicamente refinado. Treinou guerrilha em Cuba, em 1969, e foi um dos primeiros membros da ALN. Foi o militante de maior estatura para substituir na ALN seus principais dirigentes, assassinados pela ditadura.
Por sua vez, Hélcio ocupou o posto de dirigente regional da ALN e discutia política em alto nível com Mário Alves, de quem era amigo íntimo. Numa carta que enviou do exílio para a militante Imaculada Conceição de Oliveira, a grande líder da Greve de Contagem, datada de dezembro de 1971, Hélcio escreveu:
“Companheira
Queria estar aí pessoalmente, te dar pessoalmente o abraço que te mando por carta, discutir contigo, trocar ideias acerca de como fazer avançar a luta de classes em nosso país. Desde aquele dia em que estivemos juntos, muita água correu para debaixo do moinho, e creio que para ambos foram anos difíceis, mas cheios de experiências: é assim que nos temperamos. Você passou por duras provas, quando em poder do inimigo de classe, e soube comportar-se de maneira digna e revolucionária, e eu procurarei seguir com honra este exemplo, que tanto nos dá forças. Vamos, porém, às mais importantes, que são as perspectivas. Como você já deve ter percebido, o trabalho de reconstrução na terrinha não está lá dos mais fáceis, por diversas razões. As quedas atingiram praticamente todos os setores, e profundamente. A traição de elementos da direção foi também um fator de desmoralização que o inimigo soube explorar habilmente. As quedas arrastaram praticamente todos os quadros de maior experiência, impuseram deslocamentos (…) A atuação do inimigo dá um salto de qualidade: passou à fase de utilização de métodos avançados e não convencionais, aumentou seus recursos técnicos e humanos (…) A formação e recrutamento do quadro torna-se mais difícil, exige critérios mais rígidos na nossa atuação em que não existe luta de massas, tornando- se mais difícil os critérios de avaliação. O pessoal que está entrando agora é obrigado a amadurecer mais rapidamente. Você deve imaginar o que significou a perda de comunistas da estatura dos velhos. Em todo caso, temos conseguido alguns avanços: garantia de estabilidade da organização, solidificar a estrutura, diversificar as ações, aumentar a potência de fogo, retomar a imprensa revolucionária (…) com a publicação de jornais, textos, documentos de Marighella e Toledo, inclusive alguns da época da luta interna do PCB. Estamos forçando uma política mais intensa na O. estimulando e organizando cursos, estudos planejados, discussões, etc. dando alguns passos no sentido de avançar a nossa estrutura. Marchamos lentamente com retrocessos e dificuldades de todos os tipos e é nesses momentos, quando estamos fracos, que ganham força os oportunismos de todos os tipos. Desde o aventureirismo, até a vacilação, o derrotismo, a perda de perspectivas que se mascara de uma e mil formas, no que representam no fundo a negação de nossa estratégia e o abandono da luta armada (…) E sobretudo, tenha confiança nos companheiros, na organização, na revolução. Outras derrotas, decepções com pessoas, quedas virão ainda, e as superaremos também, porque somos marxistas (…). Tenha confiança nos companheiros que lutam aqui, é gente inexperiente, mas que está aderindo à revolução num período de descenso e ofensiva da reação: dessa massa é que se formaram os bolcheviques. Bem, estou falando muito, como sempre, aliás, foi meu feitio. Estou bem, saudoso, e ainda nos veremos. Não te esqueças desse melhor amigo e camarada. Ernesto”.
Conceição se lembra muito de Hélcio e de sua participação no movimento operário, em reuniões municipais do Partido Comunista:
“sentado nas calçadas em frente às fábricas mais importantes da região, de marmita em punho, dialogando de igual para igual com os trabalhadores (…) Ele se comunicava muito bem com as pessoas, tinha uma imensa capacidade de aglutinação, um carisma incrível e estava sempre disposto a ouvir os outros. Era um intelectual travestido de operário (…) Hélcio não só acreditava na ideologia que adotou para a sua vida, mas acima de tudo nas pessoas que escolheu para conviver e tentar transformar a sociedade” (Fortes, Délcio Pereira (Org). Hélcio. Belo Horizonte: Usina do Livro, 2017, p. 205-207 e p. 226-230).
Ferraz prossegue: “guerrilheiros preferem evitar o tema [justiçamento]”. Carlos Eugênio jamais o evitou.
Em 1987, dois anos após o final da ditadura, revelou o justiçamento de Márcio numa matéria para o Jornal do Brasil. Atitude saudada pelo poeta drummondiano Affonso Romano de Sant”Anna, que defendeu seu direito de dizer o que disse, ademais de José Genoíno que afirmou: “nesse Brasil todos podem falar, por que Carlos Eugênio não pode?”.
O reconhecimento de Ferraz chega, porém, com ressalvas: “diferentemente da imensa maioria dos guerrilheiros, Clemente nunca deixou de falar sobre as ações do passado e de reconhecer sua responsabilidade nelas, ainda que muitas vezes tenha exagerado na própria atuação”.
Apesar de se referir a uma entrevista de Clemente ao jornalista Geneton de Moraes Neto, Ferraz continuou reafirmando erroneamente que a ideia da execução de Márcio foi apresentada por Clemente, que “seguia seu instinto de sobrevivência animal”. O ato de justiçamento de Toledo não foi uma ação unilateral ou de vingança pessoal de Clemente, como o texto supracitado poderia sugerir.
Clemente não estava sozinho na ação. O justiçamento passou por votação do Comando Nacional e Regional da ALN. Carlos Eugênio Paz disse em entrevista a Geneton Moraes Neto: “foi uma ação da organização (…). Foi um comando de quatro companheiros que participou, não fui eu sozinho, os outros três estão mortos. Nós tomamos aquela decisão, que eu não assumi sozinho, que eu não sou louco, não sou maluco, não sou louco de decidir uma coisa dessas sozinho. Isso era uma direção“.
E reafirmou essas palavras no documentário Codinome Clemente, de Isa Albuquerque, seu último e definitivo depoimento público sobre a questão. Ferraz parece não tê-lo assistido, embora o filme tenha circulado no âmbito universitário e nos muitos debates acadêmicos já havidos.
Carlos Eugênio não teve qualquer influência pessoal na decisão da morte de Márcio, pois a ideia inicial não partiu dele e, por respeito a seus companheiros, nunca revelou de quem foi. Ele jamais teria dito o que Ferraz lhe atribuiu por ocasião de uma conversa realizada em junho de 2012. A entrevista deveria se consolidar em outubro de 2017, mas Clemente acabara de ser diagnosticado com câncer, e o encontro não se concretizou.
Clemente desempenhou integralmente as obrigações inerentes ao seu posto, aquele de comandante militar; tratava-se daquele que numa guerra de guerrilhas, reunia as condições todas para ser um soldado – afinal, ele era um homem treinado militarmente. A ação não foi decidida por Clemente. Clemente não liderava tudo. Era talvez o mais provocador, aquele que se colocava nas situações de maior risco, como ele mesmo afirmou em Codinome Clemente, mas não era o centro de decisão na ALN, apesar de ser um militante muito inteligente e experiente no enfrentamento de cercos.
Ferraz retira também do contexto alguns escritos de Marighella tais como “o centralismo democrático não se aplica à ALN” para corroborar a “falta de critérios” da organização na execução de Márcio Leite de Toledo. Nesses termos, o autor poderá ser interpretado como tendo agido de má fé.
Clemente também não teve influência no justiçamento do português Manuel Henrique de Oliveira, do Restaurante Varella, como afirma o escritor. Ele já havia deixado o país, com passagem pelo Chile em fevereiro de 1973, e em março do mesmo ano já se encontrava em Cuba para um curso do Estado Maior Cubano.
Como afirmou Ferraz:
“não se sabe exatamente como se deu a decisão de eliminar Manuel, mas ela foi referendada pelo Comando da ALN na capital paulista e certamente passou por Carlos Eugênio, líder do grupo no estado e que com a delação do português perdeu um dos amores de sua vida (Ana Maria) e um de seus melhores amigos (Iuri)”.
Por ser ” um livro aberto” sobre os anos de chumbo no Brasil, por assumir as suas responsabilidades na luta contra a ditadura, atribuem a Clemente mais culpas do que ele tem. De todo modo, ele foi capaz de carregá-las, sempre se defendendo e sendo honesto com a sua história.
Não houve na ALN uma visceral sede pelo poder, nem “a militarização exacerbou aspectos com o respeito à hierarquia e coesão”. A hierarquia jamais existiu na ALN desde a sua fundação.
Nas palavras de Marighella;
“a antiga hierarquia, à moda da esquerda tradicional em nossa organização está quebrada. Isto significa que, ressalvada a preferência para as tarefas subordinadas ao interesse estratégico, qualquer grupo de fogo pode decidir um assalto a banco, um sequestro, um justiçamento, seja de agente da ditadura, figura identificada de reação ou espião norte americano; pode realizar qualquer tipo de propaganda ou guerra de nervos contra o inimigo, sem necessidade de consultar o comandamento geral. (Mini Manual do Guerrilheiro Urbano).
O acúmulo de experiência levava a uma liderança natural, como foi o caso de seus dois dirigentes, Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. Assim como Pedroso, Ferraz concluiu que a execução de Márcio se deu por disputa de poder na ALN. Ou pelas relações entre Clemente e Márcio terem “azedado”. A justificativa para o recuo de Márcio teria sido, segundo ele, para “evitar as matanças que muitos enfrentavam com resignação”.
Quanto à presumida divergência política de Márcio em relação à ALN, Carlos Eugênio Paz afirmou em uma entrevista realizada em setembro de 2003:
“Se eu estivesse querendo passar para uma outra organização eu nem por isso numa ação largava os meus companheiros na mão, é a resposta que eu tenho, uma coisa é divergência política. Por que vários puderam vir ao Brasil, voltar para o exterior (…). Então porque se agiria tão diferente num caso e no outro? Não existe. Agora uma pessoa que é um dirigente de uma organização e, quando os dirigentes maiores da organização caem, essa pessoa fica quarenta dias desaparecida, porque disse que a gente tem que se acostumar, eu acho que a gente tem que tirar dessa guerra alguns ensinamentos, que é o seguinte, que o povo brasileiro tem muitas guerras e muitas lutas, mas são todas guerras tiradas da memória do nosso povo (…) eu acho que a gente tem que falar, aproveitar a experiência, então veja o seguinte, a guerra que é uma forma de luta mais organizada (…) quando a gente está num estágio como esse existe uma coisa que se chama defesa dos militantes de uma organização, defesa das suas forças. Então todos os exércitos do mundo praticaram isso, todos sem exceção e todas as organizações que chegaram ao poder praticaram isso, os cubanos, os vietnamitas, os soviéticos, os chineses, todos…. Por quê que a ALN seria uma exceção e por que na ALN é que se condena? A resistência francesa com o nazismo, a resistência iugoslava, todos eles tiveram que fazer execuções sumárias, o caso do Márcio foi um desses, execução sumária decidida num momento de guerra por pessoas que formaram uma corte marcial, como em qualquer exército do mundo, (…) e ali nós éramos um exército clandestino que vivíamos numa situação de cerco e que se vivia numa situação que se precisava defender. Se nós tivéssemos feito isso com o Severino, o Toledo não tinha sido morto (…) (Entrevista à autora, São Paulo, setembro de 2003. C. também Serbin, Kenneth. From Révolution to Power in Brazil: how radical leftists embraced capitalismo and struggled with leadership. Indiana: University of Notre Dame, United States of America, 2019, p. 75-93).
Sobre a carta de revisão de rumos produzida por Márcio Leite de Toledo, Ferraz escreve: “os registros da instituição (DOPS) não mencionam a carta de despedida na qual Márcio descreve a situação de ‘completa ofensiva’ dos revolucionários, o que coloca em xeque ‘a própria confiança no método da luta'”. De fato, no laudo da perícia efetuada no local, as únicas coisas encontradas no bolso de Márcio foram uma bomba e um revólver. Esta carta não chegou a ser arrolada como material presente na cena do justiçamento nem em seu “aparelho” estourado pela repressão.
Injustiçados mostra uma versão mentirosa sobre a morte de Ari da Rocha Miranda, com base numa matéria do jornalista Reinaldo Azevedo. Este jornalista, que em tom jocoso chamou Carlos Eugênio Paz de “assassino confesso”, afirmou que Clemente “falava em tom lírico sobre suas execuções”, e tratava da morte como quem diz: “está frio e hoje é sexta-feira”. Azevedo também faz parte da claque para a qual Carlos Eugênio Paz foi o militante que não apenas montou o tribunal de morte de Márcio Leite de Toledo, mas que convenceu o restante da “cúpula” da ALN da sua necessidade.
Ari não foi justiçado em 11 de junho de 1970. Foi um acidente provocado na ação pelo militante “Justo”, esse sim, que abandonou seus companheiros e correu em direção à Operação Bandeirantes. Como disse Percival de Souza, “aquilo que seria arrancado com carnes dilaceradas e urros de dor poderia ser contado agora num clima mais cordial”.
No seu depoimento ao DOPS, em setembro de 1970, ficou registrado “em suas declarações mostra-se arrependido de ter se ligado a organizações subversivas terroristas. Declara estar disposto, através dos meios de divulgação, a confessar seu arrependimento e a aconselhar os operários a se afastar das organizações subversivas terroristas”.
No inquérito policial, “Justo” afirmou que o tiroteio do qual fez parte serviu para “eliminar alguém da organização, pois nesse momento Ari da Rocha Miranda foi alvejado e morto”, fato que a repressão soube explorar como “verdade”, atribuindo ao acidente, um caso de execução no interior da luta armada (AEL-BNM, Processo n° 162, p. 240-147). O militante abandonou o local e se entregou à Oban às 8h40, do mesmo dia, 11 de julho de 1970, pouco após a ação de expropriação.
“Justo” também não deixou de escrever uma carta a seu cunhado no mesmo mês, estimulando a sua deserção:
“Em primeiro lugar aceite um abraço do seu cunhado (X), o baixinho de pernas tortas, cabeça chata, feio pra peteco como você costuma chamar. Soube atrás das autoridades que você deseja se entregar, eu não sei porque, mas se você está complicado a melhor coisa que faz, pois eu já o fiz e estou sendo bem tratado. Fiquei sabendo que o que falam sobre torturas, uma mentira, eles da organização que tentam me moitar. Se você quer realmente se entregar, faça o mais rápido possível pois só terá a ganhar. Não é covardia se entregar, é apenas uma maneira de se libertar das garras de um erro cruel. Veja como eu quase assassinei a minha família que com grande sacrifício construí como você é sabedor. Telefone número 71064 identifique-se dizendo onde, isto é local e a hora do dia e com que roupa se encontra. Não fale a ninguém pois só a você interessa”.
Bacuri não foi responsável por nenhum justiçamento. Ao explorar a morte de um companheiro tal qual fazia a propaganda ideológica da ditadura, alardeando que Ari pudesse ter sido “executado pelos seus próprios pares”, endossando ou não a opinião do jornalista Reinaldo Azevedo, Ferraz cometeu um equívoco. Outros também agiram, ao se referirem a Carlos Eugênio Paz como sicário.
A uma comissão examinadora configurada na Universidade de Brasília (UNB), um candidato aparentemente defendeu o qualificativo no decorrer de sua defesa na área de relações internacionais:
“Com efeito, em uma entrevista com a historiadora Maria Cláudia Badan Ribeiro, o militante e sicário Carlos Eugênio – um dos homens mais importantes da ALN – afirma que entre 1969 e 1970 a ALN chegou a enviar representantes aos Estados Unidos para fazer contato e articular ações conjuntas com os Panteras Negras”.
O que o doutorando não disse é que os militantes enviados aos Estados Unidos pediram à organização autorização para saírem do país, temendo por suas vidas. Nem por isso foram considerados “vacilantes” ou, transformados em alvos de execução. Deveriam, por “coerência” da organização, ter sido fuzilados?
Quando Monir Tahan Saab se entregou à repressão, em novembro de 1971, em situação dramática, seu irmão, que era advogado, solicitou “que lhe fossem reconhecidos os direitos de um combatente ferido, na impossibilidade de tratamento clandestino”. Não soube que tratamento Monir recebeu, mas sei que cumpriu muitos anos de pena.
Segundo Percival de Souza, em fevereiro de 1972, Monir assinou um documento para justificar o abandono da organização. DOPS e DOI-Codi aproveitaram a oportunidade para divulgar um outro documento, sob o título “Órgãos de segurança protegem terroristas”, no qual se afirmava que Saab fora ferido durante uma ação armada e teria sido abandonado pelos companheiros de grupo. Decidiu, então, “arrepender-se de seus atos subversivos” e se entregar à Operação Bandeirantes, que “vem dando toda a assistência possível e tem se esforçado ao máximo no sentido da minha recuperação, além da proteção que me oferece”.
Outros, como Zé Pereira, da ALN, assim se manifestaram a propósito de se entregar à polícia:
“Saí de lá pensando. O que estou fazendo? O Mariga dizia que o dever do revolucionário é fazer a revolução, eu não estava fazendo. Estava esperando ser preso e morto, já que fazia parte dos condenados à morte por ter pertencido ao III Exército da ALN. A Gastone estava presa e não conseguia ter qualquer notícia a respeito. Botei na cabeça que ia fazer muito melhor tentando localizar a Gastone do que ficar esperando a minha hora de ser preso e morto. Meu pai falou para eu me entregar através de um amigo nosso, um médico bem relacionado com os generais. No início não aceitava nem pensar num absurdo destes, depois comecei a achar que seria a única forma de fazer a Gastone aparecer, nem que fosse para sermos torturados juntos. Assim me entreguei no dia 08/05/72, dizendo que a guerra para mim tinha acabado e que a única coisa que queria era saber da Gastone. Fiquei preso no Batalhão de Guardas, fui muito ameaçado e tratado como terrorista filho da puta (…). Na primeira visita que tive dos meus pais, uns 15 a 30 dias depois de preso, recebi das mãos de meu pai um pedaço de papel onde trazia “Cemitério de Perus – Sepultura ……, Quadra……..”. Passei os meus 3 meses de isolamento chorando, tentando conversar com Gastone e amaldiçoando a burrada que havia feito. Não tinha como retroceder” (Entrevista à autora, Rio de Janeiro, 10 de outubro de 2009).
Como assinalou Ferraz, sem vasculhar o assunto, “houve quem auxiliasse o interrogatório de outros presos”. Esse foi o caso de Gilberto Telmo Sidney Marques, a quem entrevistei no ano de 2007.
Em matéria de Adriana Nicácio para a Revista IstoÉ lê-se que Telmo foi um colaborador eficiente do capitão Ênio Pimentel Silveira, torturador conhecido como “Dr. Ney”, que manteve, segundo a jornalista, um “canil” com 12 agentes.
“Quando foi preso em janeiro de 1972, no período de um mês, Telmo “prestava depoimento no DOI-Codi delatando nada menos de 192 pessoas”. “Ele é o Cabo Anselmo da ALN”, acusa a auditora fiscal aposentada Maria do Carmo Serra Azul, uma das dezenas de militantes presas graças ao dedo indicador de Gilberto Telmo. “Ele não foi um militante que fraquejou sob tortura”, diz Maria do Carmo. “Foi um colaborador que passou para o outro lado. ” (..), Jerônimo de Oliveira, também ex-militante da ALN, confirma as acusações de Maria do Carmo. “Este sujeito contava tudo, não exatamente sob tortura”. (https://istoe.com.br/230618_O+DELATOR+QUER+DINHEIRO/ 17/08/2012).
Carlos Eugênio Paz (Clemente) também deixou por escrito seu depoimento sobre este delator em agosto de 2012:
“No dia 23 de julho de 1974, dia do meu aniversário, colocaram Gilberto Telmo na cela ao lado da de minha mãe, Maria da Conceição Sarmento Coelho da Paz, militante da ALN. Sua missão era tentar desestabilizá-la, pois resistia às torturas de Sérgio Fleury e sua equipe. Telmo passou um dia inteiro tentando convencer Maria a entregar o que sabia, entre outras coisas aonde eu me encontrava. Dizia coisas horríveis contra a ALN e contra mim, ao mesmo tempo em que louvava a ditadura e a repressão”. (Depoimento escrito, agosto de 2012).
Levantaram-se suspeitas a respeito da possibilidade de Natanael Moura Giraldi ter fornecido informações à repressão. Em carta a Dom Paulo Evaristo Arns, constante do acervo do Comissão de Justiça e Paz, faz-se um apelo sincero por sua vida e uma denúncia sobre as manobras da repressão para desmoralizar o militante e sua convicção política:
“Como deve ser do seu conhecimento, foi noticiado em todos os jornais no dia 2 de novembro, a morte de Antônio Benetazzo e João Carlos Reis (ambos tremendamente torturados e João Carlos dos Reis torturado até a morte). Nessa mesma notícia foi dito que Natanael Moura Giraldi havia sido ferido, fugindo ao local do tiroteio. Mais uma vez constatamos e denunciamos, através desta carta, que as notícias publicadas pela imprensa nada mais são do que histórias montadas pelos carrascos da Operação Bandeirantes. Pois sabemos que Natanael se encontra preso junto com mais quatro pessoas (4 mulheres) correndo grave risco de vida. Mas o que pretendem os órgãos de repressão? Sabendo da forma como eles agem, podemos deduzir duas coisas: ou montaram toda essa história para depois torturá-lo e interrogá-lo (pois sabemos que eles não têm o mínimo de respeito pelas pessoas feridas, como o caso de Artur Scavone que foi torturado no Hospital Militar, depois de ter sofrido uma séria operação) para poderem matá-lo, dizendo que foi morte em tiroteio ou que não resistiu aos ferimentos recebidos e, provavelmente alegarão ter ele sido abandonado por seus companheiros. E como segunda alternativa podem eles alegar que Natanael se entregou à repressão, colocando-o assim como um colaborador e traidor. De qualquer jeito é importantíssimo que o senhor, que sabemos ser um homem honesto e principalmente um homem que se preocupa com a vida humana, com o respeito aos princípios de humanidade e com a situação do seu povo, procure através de posições que ocupa conseguir interceder junto à ditadura (que muitas vezes tem cedido não por respeito, mas por medo à sua denúncia) pela vida de Natanael e para que se esclareça a sua situação. Só assim poderemos salvar a vida de Natanael e impedir mais um crime da ditadura. Contando com a sua colaboração, dividimos com o senhor e todo o povo brasileiro, a responsabilidade sobre a vida de mais esse patriota. Contra a violência e os crimes da ditadura! Todo apoio aos presos políticos! Pela salvação de Natanael Moura Giraldi. Comitê contra a violação dos direitos humanos. SP, 9 de 11 de 1972″. (http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/COMISS_JUST/8).
Laisa Beatriz/Opera Mundi
Carlos Eugenio Paz, em 2015, durante entrevista a Opera Mundi
Em informações reservadas do DOPS consta o depoimento de um militante ligado ao Molipo e que havia emprestado a Antônio Benetazzo e José Carlos o quintal de sua casa para a impressão de documentos falsos. Diz ele: “havia então optado por viver somente para os seus, sem se meter em tais atividades”, afirmando, ao final, que “se for procurado por algum subversivo, comunicará, sigilosamente, esse feito ao Dr. Barreto, SP, 06/06/1973”.
Um militante do Ceará, também em fase de inquérito, deu longo depoimento e chegou a ser reinquirido várias vezes indicando em pormenores todos os participantes da ALN daquele estado e suas respectivas ações. Afirma-se em juízo que o militante deixou-se corromper pela repressão, assinando vários documentos para a polícia. Sua atitude foi a de colaboração, segundo outros militantes da ALN, e sua morte por afogamento, numa situação suspeita de suicídio, parece traduzir seu arrependimento.
Houve casos de militantes que, ao serem presos pelo DOI-Codi, entraram em “surto” como, por exemplo, uma cuja mulher foi presa e estuprada por um agente da repressão. Depois de ter ganho a liberdade condicional, esta militante se matou na casa de sua mãe. Provavelmente a Justiça Militar o soltou para livrar o Estado da responsabilidade sobre sua morte.
É sabido que um militante da ALN ajudou a levar, entre janeiro e março de 1972, muitos de seus companheiros para o pátio do DOI-Codi. Foi barbaramente torturado, tendo tentado posteriormente o suicídio. Saía num veraneio identificando militantes em pontos escolhidos para encontros. Estima-se que com ele 12 pessoas foram presas.
Hoje sua atuação em prol da memória e da verdade mostra porque “fraquejou” diante da barbárie. Mas, num documento reservado do DOPS, datado de 18/19 de janeiro de 1972, consta:
“Declarou que confirma suas declarações anteriores, acrescentando que hoje saiu com a Turma de Busca e Apreensão C/4 em ronda pelo Ipiranga, com o objetivo de localizar militantes da ALN, que utilizavam aquela área. Por volta das 11h30, ao trafegarem pela rua Gama Lobo, nas proximidades de um posto de gasolina, cruzaram com um Volkswagen marrom, placa AO-2911, ocupado por três indivíduos. Apesar de não identificá-los, notou que o motorista observava atentamente a viatura deste DOI, o que despertou suspeitas. Imediatamente alertou os policiais, que iniciaram a perseguição (…). Que o veículo em fuga entrou na Avenida Água Funda e em seguida rumou à direita. Que a viatura deste DOI, desenvolvendo grande velocidade, capotou duas ou três vezes e os terroristas conseguiram fugir. Declara que o indivíduo que dirigia o Volkswagen em referência seria Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz (Clemente), isto baseado nas fotografias e tipo físico, pois não o conhece pessoalmente”.
Em depoimento de Pedroso, “já nos anos de 1969 e 1970, Hans [Rudolf Manz] e [José Batista] Spanier da ALN (…) haviam traído a causa e entregado companheiros para a repressão (…)”. Na chamada guerra psicológica, a carta de um pai foi explorada pelos setores de informação, e os acordos entre algumas famílias e a repressão foram mantidos sob sigilo:
SP, 02 de agosto de 1971,
Prezado Amigo, Major (nome riscado no original)
Como posso agradecer-lhe? Como posso agradecer a todas as Auditorias Militares? Como posso agradecer a sábia orientação do Governo que, em tão pouco tempo para tão imensa dimensão do problema, está catalisando a nossa juventude, conscientizando-a para a verdadeira luta pela legítima emancipação econômica e social brasileira? Creio que jamais conseguirei transmitir todo o meu reconhecimento. Acho que somente outros pais que, como eu, viveram o drama de ter uma filha ou um filho, ainda crianças, maldosa, implacável, fria e vergonhosamente aliciadas pelos sequazes da subversão é que poderão compreender-me. Que acontece a um pai quando certa noite ele abre a porta de sua casa e se vê diante de uma equipe de busca que veio para prender sua filha? Que pensamentos lhe acodem ao cérebro e ao coração? Que tantas e estranhas perguntas ele se faz? É um pesadelo ou realidade? E por que essa sinistra realidade? É realmente a minha filha que procuram? Mas, ainda agora ela era uma criança, magrinha, frágil, de grandes olhos curiosos, engatinhando seus primeiros passos, balbuciando ainda as primeiras palavras, rabiscando os primeiros desenhos, tentando as primeiras letras, conseguindo as primeiras notas, vencendo com incrível força de vontade todos os obstáculos para colocar-se sempre como a primeira da classe. É mesmo a minha filha que procuram? (…). Hoje, passado quase um ano desde aqueles tenebrosos dias de setembro, posso pensar mais calmo e confiantemente. Como minha pobre filha foi enganada! Tenho diante de mim dois retratos de minha filha: um do ano passado e outro bem recente, um dos tempos tumultuosos em que estava sendo iludida e outro em que ela, agora livre, aproveita com toda a sua sinceridade a maravilhosa oportunidade que lhe concederam. A menina inflamada; de cabelos descuidados, nem pintura, que se negava a ir à manicure, que só usava “ blue-jeans”, que recusava roupas novas e um novo sapato, foi substituída por uma moça madura, adulta, tranquila, de cabelos cuidados e unhas pintadas, embora sem exagero; que briga com a costureira quando o vestido não sai direito, que é exigente na escolha do modelo do sapato novo, que voltou ao antigo namorado e pretende ficar noiva nos próximos meses (…) Como ela entendeu finalmente o espírito de luta pelo nosso mar de 200 milhas, a guerra pelo nosso café solúvel, a batalha dos fretes marítimos, a necessidade de ocupação a curto prazo dos nossos grandes espaços vazios através de projetos grandiosos tal como a Transamazônica, o valor do incrível progresso de nossas telecomunicações, a inadiável urgência da alfabetização em massa, a necessidade de dar agora prioridade à formação de técnicos para atender às exigências da expansão da indústria e racionalizar a agricultura. O grande fator responsável por essa gradativa, porém firme, revisão de ideias verificadas nos últimos doze meses deve-se indubitavelmente à série de leituras orientadas pelo (nome suprimido no original), na 5ª Secção do 2º Exército de São Paulo, que se propôs e conseguiu mostrar à minha filha, “o outro lado do governo” (…) A grande oportunidade que lhe foi concedida está sendo aproveitada em todos os seus sentidos, durante todos os segundos”. (Assinatura riscada no original). Arquivo Público de São Paulo, APESP, 50Z921089)
Falar pouco ou falar muito, como no caso de alguns militantes da ALN ou de outros tantos que foram acareados com outros presos políticos, ou retornaram para interrogatórios “adicionais”, poderia comprometer a organização na igual proporção das ações do próprio jogo da repressão.
Era a chamada “luta de inteligência”, conforme ouviu Marcelo Godoy do agente Chico do DOI-Codi, “os presos todos eram mais inteligentes que o interrogador e isso era compensando com a pressão física” (Godoy, Marcelo. A casa da Vovó: uma biografia do DOI-Codi (1969-1991), São Paulo: Alameda, 2014, p. 241).
Há casos de mulheres presas que, para não cederem informações ao torturador, simularam acessos de loucura como se passou Lays Machado (Entrevista à autora, abril de 2010) ou por meio de mentiras, como afirmou Dilma Rousseff, respondendo à provocação do senador Agripino Maia (DEM):
“A prisão é uma coisa que a gente se encontra nos limites da gente. […]. Eu fui barbaramente torturada e qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para interrogadores compromete a vida dos seus iguais, entrega pessoas para serem mortas. Eu me orgulho muito de ter mentido, porque mentir na tortura não é fácil. Na democracia se fala a verdade, na tortura quem tem coragem, dignidade fala a mentira […]. O que estava em questão era a minha vida e a de meus companheiros. Não há espaço para a verdade, é isto que mata na ditadura. O que mata na ditadura é que não há espaço para a verdade, porque não há espaço para a vida” (ROUSSEFF, 2008).
Tania Fayal, do setor armado da ALN, quando foi presa no Rio de Janeiro em 1969, simulou inocência e relatou a necessidade de manter essa versão,
“(…) só que eu era uma inocente, eu fui traída, o que que você está com essa arma? E porrada e pendura na janela do décimo primeiro andar, todo tipo de pressão possível (…) [A versão contada era de que] depois que eu me casei, é que eu descobri que ele [Domingos Fernandes] era envolvido com alguma coisa, alguma coisa que ele não queria me dizer. (…) Mas, eles acharam outros apliques, acharam uma peruca enrolada, eu fui muito real, que a primeira verdade que você tem que estabelecer é a seguinte, quando você está contando uma mentira sobretudo dessa grandeza você tem que acreditar no que você está dizendo. (…) E eu estava convencida de que eu era isso, eu sofri por ser aquela pessoa abandonada, estou te falando a realidade, faço questão de que isso seja registro, eu não estava revolucionariamente, ideologicamente, mas eu estava me defendendo como eu sei me defender na vida, eu não ia ter reação pra outra coisa a não ser pra mostrar se era verdade ou não, porque se eu mantenho uma história dessas … E quis Deus que de alguma forma o Domingos dissesse que eu era uma inocente.[ Eu estava] com essa maletinha, acho que tinha dois 38, munição e um aplique, coisa de moça, minha mãe me deu, e as perucas que estão lá dentro? Não faziam parte do meu acervo (…)”. (Entrevista à autora, março de 2010).
Alguns desses exemplos mostram as ações autoritárias da ditadura e ademais como cada militante respondeu a elas individualmente, para o bem ou para o mal. De fato, a violência da resistência não atingiu todas essas pessoas. A propósito, num documento da ALN repassado à organização tratou-se dos “arrependidos”:
“ELES
Eles. Os traidores. Os Massafumis, Lungaretis etc. Que mais baixo desçam em sua derrota frente à repressão. O aparecimento de traidores e afins é inevitável em todo processo revolucionário. No nosso, eles já surgiram antes, surgem agora e surgirão mais adiante. É normal que sejam mais numerosos e adquiram relevância em momentos como este, em que reconhecidamente nossos inimigos têm a iniciativa. Suas vitórias e nossas derrotas aliadas à permanente pressão política, ideológica e propagandística fazem aparecer no seio dos vacilantes estes elementos. Entretanto, mesmo em momentos de ascensão do movimento revolucionário eles existem, e assim não só não devemos perder muito tempo com eles próprios, porque mesmo a ditadura, em toda a sua euforia propagandística, sabe que isso não dura nem resiste muito. Estas verdades, contudo, não nos impedem de aproveitar as lições destes exemplos. Necessitamos melhorar continuamente nosso nível, reduzindo assim as possibilidades de surgimento de traidores. O cuidado com os combatentes começa a apreciação e recrutamento. Ao ingressar na Organização, precisa conhecer e ter consciência dos objetivos e riscos da luta. Devemos ampliar paulatinamente seu comprometimento e participação para que não haja choques, dilemas ou vacilações (…). Para que saiba por que e por quem luta, contra que e contra quem luta, como e com o que luta. Adquirir confiança e certeza. Preparar-se para o combate à repressão quando preso. Saber que armas eles utilizam, quais as que podemos usar e como utilizá-las neste embate especial. A educação política é assim, não só a forma de melhor desenvolver e levar a aproveitar os combatentes, como também prepará-los para enfrentar a ditadura em suas masmorras. E nunca será demais dizer que estes traidores, mesmo vivos, estão mortos. Perderam o que de melhor tem o Homem e receberam o que este tem de mais ignóbil. Seus nomes não ficarão. E se forem lembrados, o serão como símbolo e produto de tudo aquilo que queremos destruir. Ficarão, sim, os nomes dos que souberam confrontar e vencer a reação em sua própria fortaleza. São o símbolo de tudo aquilo que queremos construir”.
Referindo-se ao livro de Renato Guimarães, Travessia: da tortura e dos meios de se resistir a ela, o jornalista Godoy em A Casa da Vovó, destaca o que a convicção política implicava:
“Um prisioneiro tem deveres para consigo mesmo e para com os companheiros, além das obrigações que o prendem à família. Esses deveres incluem o de permanecer vivo e sair da cadeia no mais breve prazo possível, sempre que o preço pago não seja a sua desonra. Daí a importância vital que assume a noção limite de honra pessoal, esse último reduto da dignidade, para cuja defesa um homem sacrifica até a vida, pois nele bate a fronteira do autorespeito, sem o qual não vale a pena viver nem tem sentido a liberdade” (Godoy apud Guimaraes, p. 243).
Ferraz, autor de Injustiçados, foi “cobrado” pelo jornalista Eduardo Reina sobre a ausência da história dos “infiltrados” num livro que tratou dos militantes mortos pela guerrilha, ainda mais considerando-se que o interesse do autor pelo tema foi despertado pela figura de Cabo Anselmo, com quem ele se encontrou pessoalmente no ano de 2009. Aliás, como afirmou Ferraz: “nenhum dos delatores da esquerda foi alvo de um tribunal revolucionário, nem mesmo os que foram descobertos durante a luta armada, quando os atos faziam algum sentido na lógica guerrilheira”.
Esse, entretanto, não foi o caso de Cabo Anselmo, que foi não só denunciado por Carlos Eugênio Paz como agente da repressão, gerando o rompimento entre a ALN e a VPR em maio de 1971, como foi identificado pela militante Inês Etienne, que soube de sua “virada” na Casa da Morte de Petrópolis. Há indícios de que o PCBR aventou também o seu justiçamento, e em depoimento de Anselmo a Percival de Souza, o Cabo confirma que sua execução foi decidida em votação e comunicada a ele pessoalmente:
“A suspeita de que eu estivesse colaborando com a repressão se tornou uma realidade, não é? Tinha gente que fazia de tudo para provar que depois de algum contato com o Anselmo lá em São Paulo, uma parte das pessoas “caiu”. Isso foi uma sequência que determinou que eles tivessem certeza disso. Então veio uma ordem de Cuba: julga o traidor. Acredito que a ordem, a carta com a ordem que veio para o Brasil, foi de Shizuo Ozawa ou de quem estava em Cuba, e que eram muitos elementos de peso da ALN. Não acredito que Onofre Pinto tenha participado disso (…). Veio numa carta codificada. Só que eu tinha a chave para ler o código. Veio endereçado ao grupo. Quem recebeu a carta foi a Soledad. Como eu tinha a chave do código, eu e ela traduzimos, decodificamos a carta. E ela continha essa ordem. A carta codificada era pequena, uma coisa curta. Dizia que havia comprovação de que realmente Jonatas estava trabalhando para a repressão e que era urgente julgá-lo e tomar as providências necessárias para afastá-lo da atividade. Significava: “olha, mata o cara”. Por que não tinha alternativa, não é? (…) Era um comando dando uma ordem de execução. Foi uma coisa muito rápida e daí o veredito foi aquele. Eu fiquei sob guarda para ser executado (…). [Seria] num sítio em Abreu e Lima”. (Souza, Percival. Eu, Cabo Anselmo. São Paulo; Globo, 1999. P.197-206).
O ato de execução só não se concretizou, pois Cabo Anselmo emboscou seus ex-companheiros antes, no Massacre da Granja São Bento, em 1973. (Cf. Campos, Luiz Felipe. O Massacre da Granja São Bento. Pernambuco: Editora CEPE, 2017. Conferir série Em busca de Anselmo do diretor Carlos Alberto Jr. HBO Max, 2022 e a entrevista do diretor a Opera Mundi).
Ferraz apresentou em seu livro uma versão um pouco diferente do justiçamento de Carlos Alberto Maciel Cardoso que até então se conhecia, sem relacioná-lo ao relato existente do marinheiro Pedro Viegas, que narrou a esse respeito ao jornalista Percival de Souza em 1999 e novamente em 2004 com a publicação de seu livro Trajetória Rebelde.
Embora Viegas tenha afirmado que “as traições são, por princípio e definição, abomináveis”, e tenha discordado do ato de execução, o marinheiro escreveu:
“(…) o que parece mais lógico é que o recrutamento de Anselmo pelos órgãos de repressão tenha ocorrido em maio de 1971 (…). Negociou a preservação da sua vida em troca de outras, a começar pela de Edgar Aquino. Essa versão foi passada por Hélcio Pereira Fortes, da direção da ALN, para José Raimundo da Costa, o Moisés, outro ex-marinheiro do comando da VPR. Ambos estão mortos. Igualmente importante é o fato de que naquela época os organismos de repressão costumavam fazer propostas a militantes caídos como a fizeram a Anselmo. Um exemplo, Carlos Alberto Maciel Cardoso (também marinheiro e da ALN) foi um deles. Preso, os repressores levaram para ele sua cartilha e lhe ofereceram uma chance de continuar vivendo, desde que aceitasse virar a casaca. Queriam, de saída, a cabeça de Hélcio Fortes. Maciel disse estar de acordo. Foi solto o mais rapidamente possível para que sua detenção não fosse percebida pelos companheiros de organização. Levou um telefone para passar informações. Havia confessado que tinha ponto marcado com Hélcio. Forneceu local e horário. A repressão o instruiu para ir no ponto, normalmente, e montou uma emboscada. Mas, houve um contratempo: Hélcio amanheceu no dia seguinte com problemas intestinais e por isso designou-se outra pessoa para cumprir em seu lugar aquele compromisso com Maciel. Foi o que lhe salvou a vida desta vez. No ponto, muito nervoso, Maciel pediu ao contato que o retirasse dali rapidamente porque, dizia, estava sendo perseguido. A militante que substituía Hélcio o levou para seu carro e partiu. Depois de rodarem algum tempo, Maciel contou à moça o que havia se passado e pediu para ser retirado do país. O caso foi levado à direção da ALN. Houve julgamento e Maciel foi considerado culpado de traição porque o ponto que havia passado à repressão era real e Hélcio só não caiu nele porque não pode cobri-lo. Dias depois, Maciel foi executado por um comando da ALN designado para isso. Ser preso no auge da repressão em 1971, tempo de tortura e assassinatos, com a clara política ditatorial de aniquilamento do inimigo, não era o mesmo que em 1964. Além do mais, e apesar de o “pau” (tortura) ser geral, cair naqueles dias com a sigla da VPR, à qual a repressão dedicava um ódio especial, era algo de extremo peso. Daí que a proposta de negociação era uma das iscas penduradas na linha de pesca dos repressores. Anselmo, tido como peixe grande, não resistiu à tentação”. (Souza, Percival. Eu, Cabo Anselmo, São Paulo: Globo, 1999, p. 233-234. Cf. também Viegas, Pedro. Trajetória Rebelde. São Paulo, Cortez, 2004).
Segundo Rômulo Noronha, militante da ALN, o ponto de encontro aberto por Maciel era com Hélcio Pereira Fortes e não com Flávio Leão Salles, como consta na narrativa de Os Injustiçados. Maciel insistira muito no ponto com o militante, o que começou a levantar suspeitas na organização. O acerto de contas foi realizado com a participação do próprio Hélcio:
“Porque [ele] foi cobrir o ponto aberto e como membro da Direção Nacional da ALN seguiu a norma da organização explicitada no Mini Manual do Guerrilheiro Urbano [que orientava que] qualquer justiçamento [deveria] ser julgado pela Direção Nacional. Naturalmente que uma ação desta natureza é uma medida extrema que só é executada em situações excepcionais que [coloquem] em risco a vida de militantes, mesmo porque causa sequelas nos revolucionários responsáveis pela tarefa. Isto se deu com o Hélcio, que ficou emocionalmente abalado”.
Uma fonte anônima revelou que Hélcio foi o militante responsável pelo tiro de misericórdia na ação de execução, o que lhe deixou respingado de sangue. Ilma Noronha, que dividia o aparelho com Hélcio no Rio de Janeiro, foi testemunha de sua roupa ensanguentada ao chegar em casa após o justiçamento, apressando-se em lavá-la.
O episódio foi marcante para Hélcio, que passou a dar sinais de mudança de comportamento, tornando-se irritadiço com facilidade, inclusive com Tânia Noronha, filha de Ilma e Rômulo, ainda bebê, que vivia no “aparelho”. Hélcio chegou ao ponto de suspender a criança pela roupa dizendo: “faça essa menina parar de chorar, caso contrário, vou largá-la!”.
Rômulo não tem mesuras em chamar Maciel de traidor, nem razões para duvidar do relato de sua companheira Ilma, muito assustada com a reação de Hélcio (depoimento de Rômulo Noronha à autora, outubro de 2021).
Esse exemplo mostra como o rigor da guerra revolucionária também deixou marcas nos próprios militantes que se viram compelidos a justiçar seus companheiros. Como Rômulo Noronha afirmou: “[revelo isso] por ser verdade e porque os militantes da guerrilha urbana eram seres humanos passíveis de atos de grandeza, mas também sujeitos às consequências da guerra revolucionária. (…) É necessário que sejamos fiéis aos fatos como se deram no contexto histórico”. (Depoimento de Rômulo Noronha à autora, outubro de 2021).
Hélcio era bastante odiado pela repressão. Ligava para o delegado Fleury dizendo: “esses caras pendurados nos postes, não nos enganam, sabemos que é gente sua!”. No depoimento disponível no livro Trajetória Rebelde, de Pedro Viegas, Hélcio Pereira Fortes diz que havia escutado do próprio Anselmo que o Cabo “havia sido preso e ludibriara a repressão”.
Sua confidência, segundo Viegas, “tinha um sentido claro: criar álibi para o caso de ter sido visto na prisão, como de fato aconteceu. Hélcio, entre suspeitas e preocupações, procurou José Raimundo da Costa, outro ex-marinheiro integrante da direção da VPR, a quem passou essa informação. Não se sabe o que conversaram, mas o certo é que ambos foram assassinados pela repressão” (José Raimundo da Costa em agosto de 1971 e Hélcio Pereira Fortes em janeiro de 1972).
Defendo Carlos Eugênio Paz.
Não defendo o indefensável: uma morte. Mas sei que sua luta não foi fruto de um romantismo ingênuo. Ferraz impôs a Clemente uma narrativa que não é a dele, legitimada como foi até aqui por outros veículos de comunicação. A verdade é cruel e incomoda. Que sentido pode ter a vida de um militante sem se compreender a militância? Qual é a verdadeira inscrição ideológica dos chamados “justiceiros”? Não seria o seu compromisso militante? Principiar pela carnadura humana é um bom modo de começar este debate, sobretudo ao se resgatar o legado deste revolucionário. Não há um único lugar de enunciação, e o autor sabe bem disso.
Na Colônia Dignidad chilena havia a seguinte frase na entrada: “o silêncio é fortaleza”, e assim se esconderam suas maiores violências. Cabo Anselmo disse que seu ato não foi de “traição”, mas de “tomada de consciência”. E assim ajudou a matar centenas.
Podemos repetir ad nauseam os fatos do passado, na intenção de ocultá-los. Mas podemos transformar as recordações em chaves de interpretação do nosso presente.
Num curso que segui no Memorial da Resistência, uma frase me chamava a atenção todos os sábados: “que seu coração recorde com menor dor e com o maior compromisso possível”. Ela embala continuamente aquilo que eu não vivi e a honestidade e a dedicação que tenho em contar essa história.
(*) Maria Cláudia Badan Ribeiro é historiadora e viúva de Carlos Eugênio Paz (Clemente). Autora de Mulheres na Luta Armada: protagonismo feminino na Ação Libertadora Nacional (ALN) (Alameda Editorial).
(*) Leia as partes um e dois do texto de Maria Cláudia Badan Ribeiro.